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A invisibilidade: superpoder ou maldição?

A pandemia por Covid-19 nos mostrou a realidade da saúde do nosso país. Falta de equipamentos, medicamentos, profissionais treinados, políticas públicas consistentes, e aí vai. Até dia 17 de março de 2022, o painel Coronavírus do Ministério da Saúde totalizou mais de 29,5 milhões de pessoas confirmadas e 656 mil mortos (2,2% de letalidade).

Por trás desses números temos pessoas e suas famílias, que vivenciaram essa sombra coletiva de forma individualizada. E por trás dessas pessoas temos os profissionais de saúde, que desde o início da pandemia, arriscaram suas vidas para cuidar e experimentaram toda essa situação de forma mais intensa, acompanhando o sofrimento, a dor e a morte de milhares de pessoas.

Em geral, as pessoas que escolhem estudar e trabalhar na área da saúde sentem fascínio pelos mistérios da vida e da morte, e um desejo de se tornar imune a ela. O deus Asclépio, pai da medicina é um exemplo. Ele começou a ressuscitar os mortos causando desconforto no submundo, então Hades se queixa a Zeus sobre o esvaziamento de almas em seu domínio fazendo com que Zeus puna Asclépio fulminando-o com um raio (FILHO & BURD, 2010).

Apesar da atração pelo mórbido, o confrontar a terminalidade da vida não é um assunto muito abordado pelas universidades da área de saúde e, diversos autores relatam que uma das dificuldades em lidar com os pacientes terminais é o sentimento de despreparo. O foco fica na doença, no cuidar e salvar o paciente até o último minuto, como uma espécie de negação da finitude da vida. Ziegler (2012) menciona a necessidade de uma relação mais natural com o sofrimento, com a mortalidade e com a natureza mórbida da própria vida.

Em face da situação epidemiológica, não somos capazes de mensurar o tamanho do sofrimento e dor que esses profissionais de saúde que trabalharam e se dedicaram para cuidar dos pacientes mais graves infectados com Covid vivenciaram? Essa é uma dor que fica invisível, assim como esses profissionais. Normalmente, o foco se volta para aqueles que estão infectados e internados na rede de saúde. Quantos não eram os antigos cuidadores que sucumbiram a doença e possivelmente perderam a vida.

Estudo realizado pela Fiocruz em todo o território nacional, mostrou que a pandemia alterou de modo significativo a vida de 95% desses trabalhadores da saúde. Os dados revelam que quase 50% admitiram excesso de trabalho ao longo desta crise mundial de saúde, com jornadas para além das 40 horas semanais, e um elevado percentual (45%) deles necessita de mais de um emprego para sobreviver (BRASIL, 2021).

Esses profissionais lidam em sua vida cotidiana com sombras importantes do ser humano: dor, sofrimento, doença e morte. É antiga a visão sobre a morbidade como algo pecaminoso, castigo ou reparação de um carma, mesmo na cultura oriental. Contudo, podemos olhar para a doença como um desafio que nos impõe desconforto, mas também oportunidade de aprendizados e autoconhecimento. Segundo Ramos (2018, pág. 76-77), os sintomas, sejam físicos ou psíquicos, têm sua origem nos complexos, e a doença é um símbolo que revela a disfunção no eixo ego-Self. O sintoma-símbolo compensa o desvio e aponta sincronicamente para a correção a ser feita (integração do conteúdo inconsciente à consciência).  

Uma outra relação possível aos profissionais de saúde é a do sacerdócio, inclusive historicamente, foram os detentores desses conhecimentos por muitos séculos no ocidente. O sacerdote é aquele que se sacrifica, que se oferece a Deus, como prova de dependência, obediência, arrependimento ou amor. “O sacrifício é um símbolo da renúncia aos vínculos terrestres por amor ao espírito ou à divindade”, segundo Chevalier & Gheerbrant (2020). Enatiodromicamente, a sombra que se constela a essa vontade de ajudar primordial é o desejo de poder e alegria em despotencializar o “cliente/paciente” (GUGGENBUHL-CRAIG, 2004).

Não podemos esquecer que o tratamento de qualquer doença passa em primeiro lugar pela vontade do chamado “paciente”, que não é tão passivo quanto imaginamos. Estudos sobre a epigenética, a relação mente-corpo e os aspectos energéticos relacionados aos organismos são fontes de diversas pesquisas nas últimas décadas, se contrapondo ao domínio fármaco-cirúrgico. Os estudos clínicos, em geral, têm como grupo controle um medicamento ou intervenção placebo, que surtem efeitos benéficos em uma boa parte dos pacientes. Contudo, o foco dos estudos é na eficácia medicamentosa, e pouco se questiona sobre o efeito placebo e sua viabilidade de tratamento. Esse ponto é importante para refletirmos sobre a falibilidade do profissional. Será que o sucesso ou fracasso de um tratamento são de responsabilidade exclusiva dos profissionais da saúde? 

Não podemos deixar de dialogar com a morbidade. A doença está a serviço de quê ou de quem? Que complexo está atuando no momento e nos clama por atenção. Hillman (2011) menciona que a energia psíquica precisa de alternância, ora está mais voltada para o ego e a consciência, e ora está mais voltada aos conteúdos do inconsciente. O que reforça a importância de aprendermos a ouvir nossa voz interior, nossos sonhos, nossas intuições. A doença nos leva ao movimento para baixo, mais ctônico, para cama e para dentro, ou seja, é uma oportunidade de introspecção e busca por sentidos.

A habilidade de transitar por todos os mundos, seja o céu, a terra ou o subterrâneo pertence a Hermes, deus mensageiro do Olimpo e relacionado ao processo terapêutico. Ele mostra flexibilidade suficiente para olhar para todas as polaridades, a dor não é apenas um aprisionamento e sofrimento para o indivíduo, mas pode conter um potencial de crescimento, um olhar para aspectos mais simbólicos. Essa habilidade vai contra a lógica racionalista, linear e medicamentosa adotada pelas ciências da saúde atualmente, com foco no pathos. Essa cosmovisão mais assimétrica e integradora de Hermes pode ajudar os profissionais de saúde a se conectar mais aos indivíduos, suas narrativas de vida, seus desejos e entender que tudo isso está ali diante de si. É mudar o foco da intervenção para o acolhimento.

E o acolher a si mesmo também faz parte dessa jornada para médicas(os), enfermeiras(os), terapeutas, psicólogas(os), entre outros. É muito comum entre esses profissionais a sobrecarga de trabalho (dois ou mais empregos), plantões noturnos, estresse, conflitos entre as equipes e os colegas de trabalho, baixos rendimentos para quase todas as categorias, etc. Esses são fatores de risco para o adoecimento físico e psíquico. A incidência de depressão e suicídio é alarmante. Estudo norte-americano, segundo Cardoso (2021), mostrou uma taxa de suicídio em médicos de 28 a 40 por 100.000, mais que o dobro da encontrada na população geral (12,3 por 100.000).

O abuso de substâncias também é algo a ser considerado, pois os plantões noturnos quebram o ritmo ou ciclo circadiano, e para se manter acordado, muitas vezes esses profissionais fazem uso de substâncias estimulantes. E para compensar a falta de sono no dia seguinte, podem fazer uso de tranquilizantes, pois precisam descansar para o próximo plantão. A quebra de ritmos é uma questão importante para esses profissionais, afetando todo ciclo de sono-vigília, horários para alimentação, aumento de suscetibilidade para o abuso de drogas lícitas ou ilícitas, doenças, suicídio e morte.

Segundo Jung (2013, pág. 35), “o desenvolvimento da personalidade é uma das tarefas mais árduas. É dizer sim a si mesmo, tornando-se consciente daquilo que faz e, especialmente, não fechando os olhos a própria dubiedade”. Olhar para nosso lado sombrio e inconsciente, reconhecê-lo, nos remete a nossa inteireza, nosso senso de humanidade. A falibilidade é uma característica humana negada ao profissional de saúde, que é treinado para nunca errar, falhar, pois pode impactar em vidas. E a responsabilidade e a culpa recaem em seus ombros.

Ser infalível é uma característica pertencente aos deuses, e se apegar de forma polarizada a essa ideia pode gerar uma identificação e inflação de ego. Que cuidado esse profissional endeusado será capaz de ofertar? E seu trabalho está a serviço de quem? Do ego ou do outro? O risco de ser fulminado por um raio, ou começar uma jornada equivocada é imenso, se tornando um anti-herói. Da mesma forma, cair na polaridade inversa, da falha e incompetência e ficar preso a esse complexo, pode gerar danos a si mesmo e ao outro na mesma medida. E será que essa ideia de sacerdócio e sacrifício também não impacta no autocuidado de médicos e enfermeiros, afinal, quanto mais próximo do divino, menos corpo possuímos. O caminho para cuidar do outro passa inicialmente na capacidade de cuidar de si mesmo(a). Todo curador tem suas próprias feridas! Vamos olhar para isso?

Michella Chechinel Membra analista em formação pelo IJEP

E. Simone D. Magaldi membro didata

Referências:

BRASIL, Ministério da Saúde. Painel coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acessado em 17 de março de 2022.

CARDOSO, F. Setembro amarelo e o suicídio entre profissionais da saúde. Disponível em: https://portalhospitaisbrasil.com.br/artigo-setembro-amarelo-e-o-suicidio-entre-profissionais-da-saude/. Acessado em: 28/12/2021.

CHEVALIER, J; GHEERBRANT, A. Dicionários de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Edição 34° revisada. Rio de Janeiro: José Olympio, 2020.

FILHO, J.M.; BURD, M. Psicossomática hoje. 2 ed. Porto Alegre: Artmed, ano 2010.

GUGGENBUHL-CRAIG, A. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. São Paulo: Paulus, 2004.

HILLMAN, J. Suicídio e alma. 4 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2011.

JUNG, C.G. O segredo da flor de ouro: o livro da vida chinês. 15 ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2013.

Leonel, F. Pesquisa analisa o impacto da pandemia entre profissionais de saúde. Disponível em: https://portal.fiocruz.br/noticia/pesquisa-analisa-o-impacto-da-pandemia-entre-profissionais-de-saude#:~:text=Os%20dados%20indicam%20que%2043,a%20necessidade%20de%20improvisar%20equipamentos). Acessado em: 11 de fevereiro de 2022.

RAMOS, G.R. A psique do corpo: a dimensão simbólica da doença. 6 ed. São Paulo: Summus, 2018.

ZIEGLER, A.J. Medicina arquetípica. São Paulo, Paulus, 2012.

Michella Paula Cechinel Reis – 29/03/2022

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