No dicionário da língua portuguesa a palavra solidão está classificada como estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento. Mas não pude deixar de me perguntar, será que somente quando estamos sozinhos de fato que nos sentimos assim, com certeza não! Muitas vezes mesmo em meio a uma multidão estamos sós. Num mundo muito regido pela performance e pela persona, quase sempre estamos sós, pois como poderíamos compartilhar qualquer sorte de coisas com outros, sendo que queremos que os outros nos vejam de determinada forma, esta que muitas vezes é bem diferente daquilo que eu sou ou de como me sinto.
Muito ouvimos falar sobre exatamente isso, ser sozinha(o) ou estarmos sozinhas (os), mas gostaria de falar de um outro tipo de solidão, aquela que se sente na alma, e muitas vezes me pergunto se tais indivíduos aprenderam algum dia a compartilharem , seja por imposição de sua história de vida, ou seja até pelo espírito de nossa época que nos impulsiona para um autismo, esse muito diferente daquele dos autistas, falo aqui de um estado imposto ao indivíduo em que ele deve condenar quem ele é ao ostracismo de sua própria mente, ou até para o fundo do inconsciente, onde ele se perde. Quantas vezes nos chegam clientes, ou nós mesmos nos assustamos com nossas próprias sentenças ao dizer: “Não sei o que eu quero”, isso pode se traduzir: “Não sei mais -ou de fato nunca aprendi- quem eu sou de verdade”. Olhando assim rapidamente tudo isso sempre me pareceu extremamente triste, um cenário desolador. Mas não visualizo como poderia ser diferente uma vez que desde que nascemos o espírito da nossa época, personalizado em todas as pessoas que encontramos na vida nos imputa uma forma de ser e de agir, e “Ai de nós se não o escutarmos!”. Há fórmulas para tudo, mas qual será a fórmula para sair da solidão?
Qual será a fórmula para eu me encontrar comigo mesmo?
De certa forma muitos dos clientes que nos procuram tem essa pergunta impressa de modo velado em suas falas, e cabe a nós terapeutas, ajudar o Self a demonstrar como fazer isso.
Nesse ponto acredito que a teoria Analítica de Carl Jung tem um papel protagonista neste processo pois ela acredita que o indivíduo não deve se contentar com uma vida vazia, sem sentido e polarizada somente no lado desse personagem imposto pelo mundo, a tão falada persona, mas sim deve conhecer a si mesmo e reencontrar o seu Daimon, que para Jung correspondia ao portador do seu sentido de vida. Mas para minimamente conhecê-lo o único caminho possível é primeiramente conhecer a si mesmo.
Muito me espanta, (e acho que sempre vai espantar!) que na maioria das vezes a análise ou a autoanalise faz o indivíduo conhecer e reconhecer em si coisas que nunca tinha visto, será que em certa medida o mundo contemporâneo está criando pessoas que não se conhecem, perdidos no voraz espírito da época da sociedade das mídias digitais?
Estamos produzindo cada vez mais pessoas sozinhas e solitárias?
É muito comum acharmos que nos conhecemos e que conhecemos os outros pelas redes, pois como diz o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, que está profundamente posicionado nas mesmas raízes filosóficas que Jung, que diz em seus livros: Sociedade do Cansaço e Sociedade Paliativa: a dor hoje, que nos colocamos (ou fomos colocados) em uma redoma panóptica, tal qual as prisões, em que toda nossa vida pode ser vista e acompanhada pelas outras pessoas através das redes sociais, e o que intriga mais os estudiosos de tal fenômeno é que ninguém nos empurra para tal abuso, somos nós mesmos que nos colocamos nesta posição, podemos ainda dizer que não é necessário que nada de externo nos cobre para fazer isso, o que cobra, podemos nomeá-lo de abusador, está dentro de nós, ele nos cobra muitas coisas, inclusive isso.
Mas quem o colocou dentro de nós senão o espírito voraz de nossa época, o insaciável.
Insaciável porque vivemos na época da performance, e nada nunca será o suficiente!
Se a solidão ficou posicionada dentro de nós na sombra, uma vez que nesta posição panóptica que nos colocamos, a vida deve ser livre de qualquer tipo de canto, de qualquer dificuldade ou sofrimento. Acredito que a solidão está profundamente fincada na sombra, pois além de se encaixar nessa posição de algo que possa provocar sofrimento, ela nos é desconhecida e pode atrapalhar a produtividade, pois se pensarmos bem, ela nos leva para dentro e para baixo, posição propícia , como nos mostra Jung, para refletirmos profundamente sobre a vida que levamos, então é natural que no mundo de superfícies brilhantes ela seja evitada a todo custo, pois no geral o mundo não quer pessoas que pensam e compreendem ao próprio mundo, inclusive.
Acontece que na Psicologia Analítica é quase um imperativo que façamos esse movimento de ir para dentro de nós e para baixo, até as profundezas dos infernos que existe dentro de cada um de nós e trazemos de lá verdadeiros tesouros, sejam possibilidades nossas que abandonamos, ou partes nossas mesmo que largamos ao longo de nossas vidas ou seja a possibilidade de ressignificar nossas feridas, a isso damos o nome aqui de: “integrar a sombra ao Ego”, esse é um dos movimentos mais desejados numa terapia profunda, ela vai ampliando a consciência do indivíduo e fazendo ele caminhar em seu processo de individuação.
Vamos passear um pouco no que diz Jung sobre esta temática:
“Nada fecha tanto o homem sobre si mesmo e o separa do convívio dos demais do que a “posse” de segredos que julga importantes e que guarda ansiosa e ciosamente. Muitas vezes são os atos e pensamentos “pecaminosos” que separam os homens e os mantêm afastados uns dos outros. Aqui a confissão tem, não raro, um verdadeiro efeito de redenção. A incrível sensação de alívio que costuma seguir-se ao ato da confissão deve ser atribuída à readmissão daquele que estava perdido no seio da comunidade humana. A solidão e o isolamento moral anterior, tão difíceis de suportar, cessam com a confissão. E aqui está o verdadeiro valor psicológico da confissão.” (JUNG, 2013, p.198)
Nesse ponto ele está elencando a importância do indivíduo sair do estado de solidão induzido pela necessidade de guardar algum segredo, mesmo que dele mesmo, e ao realizar essa confissão que na maioria das vezes é confessada, para si mesmo, ou para o Ego que o defendia dessa verdade a todo custo, ele cria um vínculo e faz uma projeção com o confessor, Jung chama de “ vinculação moral” que ele faz com o confessor, que passa a ser o detentor dos segredos, criando então uma relação de transferência, e não podemos nos esquecer que toda a análise Junguiana acontece na transferência, esse vínculo é inicialmente criado e, tanto o terapeuta como o analisando usam dele para se conhecer e ressignificar seus complexos, principalmente os que estão negativos. Por exemplo, um indivíduo que tem um complexo materno negativo e pode usar desse momento para confessar sua vontade imensa de “ matar sua mãe , ou a relação que tem com ela”, e na projeção de mãe que faz sob o terapeuta tem a possibilidade de experienciar uma diferente relação com a mãe, provocando que sua própria mãe interior renasça e a mãe literal ou a relação com ela passe a ter um segundo plano, e por fim, ele mesmo é capaz de exercer este papel em sua vida, sem nem precisar mais do terapeuta ou da análise .
Em outro momento ele diz:
“Nietzsche, por reconhecimento e compreensão, o desespero e a amargura de sua solidão. Poder-se-ia esperar que um homem genial se deleitasse com a grandeza de seu próprio pensamento, renunciando ao aplauso barato das massas que despreza; mas ele sucumbe à força do instinto gregário, à sua busca e ao seu encontro; seu chamado se dirige irremediavelmente à tribo e precisa ser ouvido(…).” (JUNG,2013, p.32)
Nesse ponto Jung estava falando sobre a solidão que acomete a todos os grandes gênios, ou aqueles que tem de certa forma um pensamento muito além do nosso tempo, mas isso pode ser ampliado a todos nós que porventura nascemos em famílias ainda tão reféns da persona, ou todo e qualquer um que faz uma ampliação da consciência, ela ocasionalmente vai se deparar com a solidão, pois o caminho da individuação é quase sempre solitário, uma vez que cada alma tem o seu tempo e cada um está em algum ponto deste mesmo caminho.
Não podemos nos esquecer que o movimento natural ou os marcos essenciais da vida são de certa forma solitários, todos nascemos sozinhos, gozamos a vida e até na própria relação sexual estamos sozinhos, passamos por inúmeras experiências durante a vida e por fim morremos sozinhos, isso pensando que ninguém nunca será capaz de sentir por nós, mesmo que acompanhados nestes momentos, ninguém nunca será capaz de entrar no outro e saber como ele realmente se sente.
É interessante que corremos tanto da solidão, mas a maior parte de nossa vida é passada em nossa própria companhia e muito sabiamente devemos aprender ou reaprender a gostar de nós mesmos e podemos assim formar uma nova relação com a solidão, onde ela pode ser uma sábia conselheira, porque permite que nós consultemos nossa profundeza e de lá retornemos com as melhores respostas, bem alinhadas com o nosso Self que tudo sabe.
Sobre isso Jung nos diz:
“Sê esta nossa partida, ave ou Satanás, gritei me erguendo: Retorna às tempestades e às praias plutônicas da noite! Nem deixes negra pluma como penhor da tua mentira! Deixa minha solidão intacta! (…)” (JUNG, 2013, p. 74)
Nesses versos do poeta Edgar Alan Poe, em “The Raven” (O Corvo), citado por Jung, o corvo que nos visita, deseja roubar-nos essa possibilidade de ficar com nossa própria solidão e buscar dentro de nós as respostas do Self. Embora este texto fale sobre a perda de um amor, Jung faz uma aproximação da vivência da solidão para nós reencontrarmos o amor por nós mesmos.
Nesse ponto me lembro da Daniela Euzébio que dia desses me citou um conceito muito interessante, ela me disse da necessidade de os indivíduos aprenderem a “Flanar”, que no dicionário da língua portuguesa é especificado como andar ociosamente, sem rumo, nem sentido certo; flanear, flainar, perambular. Nesse sentido devemos fazê-lo para conviver com nossa própria solidão e dar espaço para nos ver, ver a cidade e tudo fora e dentro de nós de uma outra perspectiva, para isso sem dúvida é necessário respeitar o silêncio e o tempo da alma, o ócio, para que possa a própria psique possa realizar, talvez, até a redistribuição da energia psíquica que está represada em assuntos específicos.
Em outro ponto das obras completas Jung diz:
“Quando o iniciado, à noite, dirigia-se para a gruta sagrada, oculta na solidão da floresta, a cada passo novas impressões despertavam uma emoção mística em seu coração. As estrelas que brilhavam no céu, o vento que agitava a folhagem, a fonte ou o riacho que corriam marulhantes até o vale, mesmo a terra em que pisava, tudo era sagrado a seus olhos, e toda a natureza que o envolvia despertava o temor respeitoso pelas forças infinitas que agiam no universo.” (JUNG, 2013, p. 96)
Fazendo uma reflexão sobre a simbologia da floresta, essa amplitude rica de vida, cor, e transformações profundas, mas que como podemos ver, precisa da solidão para que se revele diante de nossos olhos.
Em outra passagem Jung busca na obra de Nietzche a energia necessária para a transformação, encontrada na solidão:
O sinal de fogo
Aqui, onde entre mares cresceu a ilha,
uma pedra sacrifical erguida bruscamente,
aqui, sob um céu escuro,
Zaratustra, acende seu fogo celestial…
Esta chama com ventre esbranquiçado
Até frias distâncias lança labaredas seu anseio,
para alturas cada vez mais puras estende seu pescoço –
uma serpente se impacienta empertigada:
este sinal diante de mim ergui.
Minha própria alma é esta chama:
por novas distâncias insaciável,
sobe, sobe, seu silencioso ardor…
Tudo que é solitário procuro agora:
respondei à inquietação da chama,
apanhai para mim, pescador em altos montes,
minha sétima, derradeira, solidão!
(JUNG, 2013, p. 120)
Aqui Jung está demonstrando que este símbolo – a solidão- é o precursor da libido, vale a pena relembrar sempre que este conceito para Jung, não está posicionado somente no campo sexual, Jung entende que a libido pode e é usada em qualquer área da vida, aliás precisamos dessa “vontade” para que haja a vida, e sem ela nos tornamos um autômato, vivendo uma vida vazia e na maioria das vezes sem um sentido definido.
Num outro ponto ele mostra que a solidão também está com raízes primordiais fincadas com a existência de Deusas antigas, que se “sentavam em seus tronos de solidão”, desse modo podemos ampliar que essa associação é feita no inconsciente coletivo, ela também pode estar sendo vivida como um conteúdo sombrio por conta de todo o rechaço ao feminino, que aconteceu e continua acontecendo desde que o patriarcado se instaurou. Dessa forma ele diz que o individuo deve receber via complexo materno a libido, a energia vinda da mãe, para que a use ao seu dispor, agora se este complexo está negativo, esse movimento se torna impossível, e se as mães não aprenderam sobre a solidão devido ao aprisionamento de seus femininos como podem também repassar aos seus filhos essa força motivadora e criativa advinda da solidão, ou do caos criativo do feminino? Impossível!
Ele diz ainda que a libido que retorna da solidão, vem da mãe, ou do complexo materno, que ela pode tornar-se ameaçadora como uma cobra, símbolo do pavor mortal que temos de quebrar a relação que temos com a mãe, causando a nossa própria morte. Simbolicamente ele nos diz que dói matar o filho dependente de atenção e cuidados, para surgir o adulto que está em nós, escolher, arcar com as escolhas igualmente, dói, e por isso fingimos dessa morte e preferimos confortavelmente nos manter “acompanhados” de situações ou pessoas que fazem esse papel de uma mãe, assim nos furtamos o direito de sofrer essa dor, a de arcar com nossas próprias escolhas. Desse modo posso me manter na posição de espectador da minha própria vida e há um conforto imenso nessa posição. Dói, e no mundo contemporâneo toda dor deve ser evitada. Nos esquecemos que a dor, assim como a solidão são provocadoras de catarse. Então a solidão não está verdadeiramente posicionada na posição de uma manifestação do mal, talvez seja difícil senti-la, até por não estarmos acostumados a olhá-la desta forma, mas ela pode – assim como todos os sentimentos tidos como ruins – se tornar um portal para a transformação do indivíduo, não por acaso ouvimos falar muito dela no livro intitulado Símbolos da Transformação (JUNG,2013).
“Solidão e jejum são por isto os mais antigos meios conhecidos para apoiar a meditação que deverá permitir acesso ao inconsciente.” (JUNG,2013, p. 395)
Quem sabe possamos nos reconciliar com esta parte nossa, ressignificar a solidão dentro de nós e chegar num ponto que Jung também nos conta em sua obra, ele diz que há um perigo à espreita quando falamos sobre solidão e sobre aprender a apreciar a nossa própria companhia, pois depois disso há uma força quase mística que nos impulsiona a não querer mais contato com o mundo, pois passamos a nos apreciar tanto que todo o resto nos parece fugaz e supérfluo. Não sei se este polo também seria interessante, pois toda e qualquer polarização a longo prazo se mostra destrutiva para a psique, mas esse pensamento e a observação deste fenômeno na vida de alguns indivíduos, nos faz constatar que a solidão é nossa amiga e não um monstro assustador que nos espreita todos os dias antes de irmos dormir!
Boas ampliações a todos!
Natalhe Vieni- Analista em Formação IJEP
E. Simone Magaldi- Membro Didata IJEP
REFERÊNCIAS
JUNG, C. G. Freud e a Psicanálise. 7ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
_________. Símbolos da Transformação. 9ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
_________. Memórias, sonhos e reflexões. (reunidas e editadas por Aniela Jaffé). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
HAN, Byung-Chul. Sociedade Paliativa: a dor hoje. 1ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,2021.
_________. Sociedade do Cansaço. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,2017.