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Abandono Social

Vivemos hoje um estado de calamidade pública. A população em situação de rua vem crescendo de forma acentuadamente drástica. Basta olhar pela janela e trilhar as calçadas. Segundo fontes SISAB de 2020, 221.869 pessoas se encontram em situação de rua, sendo 34,7% mulheres e 65,35% homens. 

Parece que na pandemia o número dobrou nas grandes cidades.

A população vulnerável socialmente que vive a pobreza extrema é formada também por trabalhadores que exercem atividades informais. 70% dos moradores de rua trabalham como catadores de reciclagem, flanelinhas, em construção, limpeza e carregadores. 15,7% da população em SP são pedintes.

Encontramos na rua uma diversidade de pessoas e circunstâncias. A questão da saúde é um problema bastante grave também. As drogas são bastante presentes entre moradores de ruas e as patologias psiquiátricas.

A maioria de quem mora na rua faz pelo menos uma refeição ao dia.

Em dezembro de 2019, foi instituído um decreto (decreto n°7053) que define população em situação de rua como grupo populacional heterogêneo que possui em comum a pobreza extrema, os vínculos familiares interrompidos ou fragilizados e a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os logradouros públicos de as áreas degradadas como espaço de moradia e de sustento, de forma temporária ou permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite temporário ou moradia provisória.

É um tema bastante amplo pois mesmo em situação de rua encontramos situações das mais diversas pois falamos de humanos. Faltam-nos políticas públicas e iniciativas sociais privadas para adentrar a essa realidade. Que situação é essa vivida por alguém na rua que conseguiu muitas vezes se libertar dos compromissos e pressões coletivas sociais, mas abraça a dor e a ferida social da invisibilidade?

Ao pensarmos em rua e pobreza, pensamos em bem e mal e logo somos arremessados a uma instância rígida de nossa criação cristã, precisamos muitas vezes alimentar o mau fora de nós para sermos bons. Essa ideia acaba sendo alimentada por muitas igrejas, constelando o arquétipo do salvador e alimentando no morador em situação de rua o arquétipo do invalido nutrindo a pobreza.

…pois mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no Reino de Deus (Lucas 18: 24-25). Numa sociedade unilateralizada que carrega a literalidade como característica, acaba entendendo a citação acima de forma literal. Logo que nos deparamos com essa imagem de pessoas habitando ruas que se contrasta com nossas mansões, pensamos no sentido da vida e de alguma forma a representação da imagem de Deus

Jung afirma que, desde que “todos os opostos são de Deus”, devemos nos curvar diante desse “peso”. Os opostos são a pré-condição indestrutível e indispensável de toda vida psíquica escreveu Jung em 1955 no Mysterium Coniunctions.

Jung afirma também que é através da psique que podemos estabelecer que Deus age sobre nós. E a expressão da psique se dá através de nossa cosmovisão e, portanto, atitude diante do mundo. Então… o que será que acontece com a nossa sociedade, com os indivíduos que se tornam indiferentes aos que habitam as ruas? O que será que leva um indivíduo a habitar as ruas? 

 Quem são esses indivíduos que perambulam pelas noites sombrias quando a luz cai; já que diante da luz são rejeitados e expelidos às sarjetas? São expelidos à margem de nossos caminhos. Para reconhecer esses “corpos perambulantes” preciso de alma e no mundo desalmado, o olhar é pelos olhos da razão.

 Sem alma não há relação entre as polaridades que constituem a natureza humana. Sem diálogo entre os lados, não há alcance ao que é divino e caímos na experiência de um aparthaid que julgamos ser natural. Separamos do mundo o imundo gerando cisão, rompimento, negação e violência social.

Se tudo é uno, quando integro o outro em mim, me aproximo do coletivo.

 Pensar em mundo é vislumbrar a totalidade que envolve sistemas e contradições relacionais devido à diversidade de experiências vivas. Jung fala da busca de totalidade no processo de individuação, e a totalidade compreende as oposições e aproximação entre elas. Portanto se me distancio e nego o imundo, nego parte do meu mundo.

“Completude ou unidade é a condição original de existência, antes que o primeiro “pensamento” entre e comece a discriminar e diferenciar isso “daquilo”. (DONALD, pensamentos de Jung sobre Deus pg25.)

Da mistura de conteúdos no princípio da criação, separamos através da função de discriminar durante o processo de desenvolvimento para poder posteriormente unir de forma consciente. Mas o homem contemporâneo parece literalizar essa ideia e vivê-la fora de si.

A totalidade é um estado onde consciência e inconsciente trabalham juntos em harmonia, onde estas instancias estabelecem um diálogo possibilitando a integração de aspectos sombrios.

Esse apartado da sociedade faz parte de uma “classe” a parte, (termo usado por alguns indivíduos que vivem essa situação.)  São invisíveis no meio de tanta gente por serem incômodos pela sua aparência suja e seu fedor.

Nós?! Somos limpos e polidos e assim somos aceitos e não nos misturamos e nem sequer dialogamos com esse outro lado. Esse corpo negado e rejeitado a ponto de se tornar invisível é a própria sombra que projetamos no pedinte imundo.

“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nesta tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, em geral, ele se defronta com considerável resistência”. (Jung – OC 9/2 § 14)

“Hoje em dia, defrontamo-nos com o lado escuro da natureza humana toda vez que abrimos um jornal ou ouvimos o noticiário. Os efeitos mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na esmagadora mensagem diária dos meios de comunicação, transmitida em massa para toda a nossa moderna aldeia global eletrônica. O mundo tornou-se um palco para a sombra coletiva.”

“O lado escuro não é nenhuma conquista evolucionária recente, resultado de civilização e educação. Ele tem suas raízes numa sombra biológica, que se baseia em nossas próprias células. Nossos ancestrais animalescos, afinal de contas, sobreviveram graças às presas e às garras. A besta em nós está viva, muito viva — só que a maior parte do tempo encarcerada.” (Ao encontro da sombra – Robert Bly pag. 20)

Essa sombra materializada nesses indivíduos não é anônima, ela têm nome e história com muitas marcas. Somos “Josés” somados a cada parte de nós que lê esse texto e reverbera essas ideias e imagens em si, pois formamos uma unidade. Essa é a totalidade.

 Cada um, uma história que vai além do pessoal e é coletiva também.

 Um corpo tem que ocupar um lugar no espaço. Qual é esse espaço que o morador em situação de rua ocupa? Esse corpo nos assusta e desperta nossos medos de fracasso já que ainda não tomamos ciência de quê fracassamos como sociedade.

É o medo pelo que ele nos representa. Vivemos em bolhas distantes umas das outras onde não há relação e diálogo entre elas, empobrecendo a nossa condição humana. Não comungamos de ideias e perdemos propósitos.

Na visão da psicologia analítica se não aproximarmos essas polaridades continuaremos tomados pelo monoteísmo da consciência e corremos o risco do aprisionamento em nossas certezas e verdades que são frutos de nossos complexos de poder que habitam as sombras e um ego rígido que nos acorrenta. 

Esses indivíduos caminham lentamente pois não tem energia, enquanto nós corremos, pois temos pressa e assim não aprofundamos nosso olhar. Vivem a fome, o frio e a solidão em seus corpos enquanto nós nos fartamos a mesa e vivemos com 5.000 likes nas redes sociais.

Seus olhos… Um olhar perdido sem sentido, sem direção enquanto nós focados fixamente no sucesso. Esses indivíduos têm uma pisada desalinhada com os pés sujos e cascudos para dar conta da realidade árida e dura enquanto nós fazemos malabarismos em nossos saltos altos.

Como opção nós caminhamos muitas vezes para nos buscar e muitos deles caminham para fugir de si… A população de rua vem aumentando drasticamente, o que reflete o aumento da exclusão social fruto de valores sociais que nutrem um modelo econômico que vivemos, onde nem todos se enquadram.

“Muito para poucos e pouco para muitos…” 

Esse é o corpo social que se torna fruto dos corpos individuais.

 O mendigo pedinte e sem teto é a antítese da imagem e vida desejada por nós cidadãos de “sucesso” … Esse é o espírito da nossa época que eles também fazem parte. Como seria se perceber menos perfeito e mais inteiro com todas as carências e sujeiras que carregamos na alma?

Como é se deparar com corpos desnutridos, arcados e sujos, famintos de comida, já que estamos em corpos famintos de espiritualidade e humanidade que se expressa na materialidade do excluído? Só atingiremos a divindade quando mudarmos o olhar para com o tema da espiritualidade que se realiza de forma concreta, inclusive no corpo. Nessa desunião que vivemos, separamos o bom do mal sem condição para o diálogo e adoecemos como indivíduo e sociedade.

“Não posso perfumar e nem performar a alma”

 Essa é uma das batalhas internas em tempos modernos onde a ilusão do controle é alimentada socialmente para manter a persona polida. Sendo assim a tendência é projetar e rejeitar todo o dejeto naquele que em mim não cabe em lugar nenhum.

 Minha intenção é questionar e quem sabe despertar outros olhares sobre o tema invocando assim algo dessa energia ligada ao feminino, resgatando quem sabe a capacidade em acolher e se relacionar com o outro em mim para perceber o outro nele nessa aproximação.

Tentar entender a dinâmica desse grupo de indivíduos na tentativa de desenvolver aquilo que de forma consciente ou inconsciente “tiramos” deles em relações de uso, abuso e poder. É uma tentativa mais consciente de reparação, não para aliviar a culpa, mas sim por sentir-se parte integrante e ativa dessa sociedade com propósito de evoluir como humano.

 Precisamos nos aproximar para olhar de forma mais profunda.

“Sim, uma pessoa nunca é representada por ela mesma. Uma pessoa só é alguma coisa em relação a outros indivíduos. Só obtemos dela um retrato completo quando a vemos em relação, a seu entorno, assim como não sabemos nada sobre uma planta ou um animal quando não conhecemos seu habitat”. (traumanalyse,253 sobre o amor- Jung)

Todos fazemos parte desse cenário, cada corpo em seu lugar e todos direta ou indiretamente pagamos o preço da fome, da miséria e da violência. Como num mosaico somos pedaços que compõem o TODO.

“Se você não quiser arruinar se moralmente só existe uma pergunta a fazer: Qual é a necessidade que você mesmo carrega quando se comove com a situação aflitiva de seu irmão?” (Briefi II, 395, Jung Sobre o amor) Vamos repensar caminhos e sentidos e para isso preciso parar e mergulhar nesse universo.

 Sim… sofremos de fome, fome de alma e de espírito. Vivemos em corpos “sarados” lustrados por personas ajustadas, polidas e perfumadas. Isso é um problema? Não, se não negarmos seu contraponto, mas, como diz Jung: 

“Reconheçamos que nada é tão difícil quanto suporta-se a si mesmo” o que também explica a projeção da sombra social. Segundo Jung “ninguém vive fora de sua pele,” e só acessamos o outro através da empatia no olhar que conectar a ferida do outro a minha. (Jung pag 373. Oc7/2)

A partir dessa fala entendemos nossas projeções sombrias sobre esses indivíduos, esquecendo assim de nossas faltas e também dos excessos que formam essa dinâmica polar.

O que não achar lugar na consciência para ser constelado, fica excluído e pode se associar aos complexos sociais dominantes, nos tornando em seguida dominados pela nossa própria dominação. Assim como a rua abraça o não acolhido, esses complexos sociais são âncora à sombra coletiva.

 Olhar no olho desse outro e estabelecer diálogo é possibilitar olhar com os olhos subjetivos para o interior de si e recordar assim “quem sou” de forma mais inteira, atualizando o passado e presente em aspectos emocionais que foram rasgados, arranhados e que se tornaram feridas veladas. Olho para o outro como espelho do outro de mim…

Vivemos individualmente o que vivemos coletivamente e vice-versa. Entendo que precisamos desenvolver consciência mais ecológica para entender esse corpo que vive no corpo de Gaia. O corpo negado de Gaia é a própria negação da energia do feminino, que acaba projetado no corpo do indigente imundo, negando parte do corpo social.

 Que corpo é esse sofrido e não amado?

Que relação é essa que estabelecemos com o outro onde nos esfriamos e nos distanciamos do amor em seu sentido maior, potencializando o nosso complexo de poder criando adversários fora de nós Como lidar com a pobreza social se não começamos pela nossa pobreza e vulnerabilidades de alma. O complexo negado atua em nós, nos conduzindo á trágica realidade onde geramos mais pobreza e nos anestesiamos diante dela.

 “A invisibilidade só deixará de existir pela mudança no olhar.”

Me pergunto se todas as guerras, derramamento de sangue e miséria não assaltaram a criação quando um homem procurou ser senhor de outro (…) E essa miséria não irá embora (…) quando todas as ramificações da humanidade considerarem a terra como um tesouro comum a todos.” (Gerrard winstannley, the new law rightteouness, 1649 – Calibã e a Bruxa pag 112)

Enquanto isso consideramos esse grupo de moradores em situação de rua como o metaverso da “nossa” sociedade sombria. Nos falta amorosidade e maturidade para olharmos esse assunto com pés no chão.

Enquanto buscamos poder anulamos o poder do amor.

“Ali onde predomina o amor não há vontade de poder, e onde há predominância do poder, não há amor. Um é a sombra do outro.  Aquele que se coloca no ponto de vista do Eros tem um oposto compensador da vontade de poder. Mas aquele que enfatiza o poder tem como compensação o Eros. Vista do ângulo unilateral do posicionamento da consciência, a sombra é uma parte de menor importância da personalidade, e por isso é reprimida por uma intensa resistência. Mas aquilo que é reprimido precisa tornar-se consciente para que se crie uma tensão dos opostos, sem a qual não há possibilidade de continuidade de movimento. De certa forma, a consciência é em cima e a sombra é embaixo e como que está no alto sempre tende a descer às profundezas. O quente ao frio, assim toda a consciência, talvez até sem se perceber, busca por seu oposto inconsciente, sem o qual ela é condenada à estagnação, ao assoreamento ou à fossilização. Só nós o posto é que a vida se acende.” (Jung OC 7 § 78)

A vida e a psique nos impulsionam a realizar potencial. Tornar-se si mesmo nos aproximando do coletivo. Buscamos nosso lugar através do sentimento de pertencimento a si e ao mundo. Desenvolver a centelha divina em nós é realizar o inconsciente no sentido do servir para vir a ser. Muitos de nós nunca foi sonhado, então como pode sonhar?

Infelizmente deixamos de ser Homem de argila para sermos Homens de lata!

 “E apesar de todas as diferenças, a unidade da humanidade haverá de se impor de modo inexorável.”(Jung Oc 10/1§ 568)

Ana Paula Maluf

Bibliografia 

Calibã e a Bruxa – SILVA FEDERICI – Ed. Elefante

Aspectos do feminino – C.G JUNG – Ed. Vozes 

Pensamentos de Jung sobre Deus – DONALD R. DYER, PH.D.- Ed. Madras

Psicologia do inconsciente – C.G JUNG 7/1 – Ed. Vozes 

A natureza da psique – C.G JUNG 8/2 – Ed. Vozes

Ao encontro das sombras – Connie Zweig e Jeremiah  Abrams -Ed. CULTRIX

Presente e futuro – C.G. JUNG 10/1  – Ed. Vozes

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