Recentemente, no mês de outubro, tivemos duas grandes comemorações no calendário escolar, onde escolas e famílias celebram datas importantes para a constituição da criança como sujeito: Dia da Criança e do Professor. Criança e adulto; professor e aluno. Quem são esses sujeitos que adentram a essas instituições de ensino? De onde vem? Como é constituída a relação entre o mestre e seus discípulos?
Para entendermos e refletirmos sobre esses questionamentos, é importante retornarmos à constituição da psique da criança.
Segundo a psicologia analítica, a personalidade da criança é constituída ao longo da sua vida por material inconsciente dos adultos que a cercam, com isto também vai desenvolvendo a própria consciência. “É ao crescimento da consciência que devemos a existência de problemas; eles são o presente de grego da civilização. É o afastamento do homem em relação aos instintos e sua oposição a eles que cria a consciência. O instinto é natureza e deseja perpetuar-se com a natureza, ao passo que a consciência só pode querer a civilização ou sua negação.” (JUNG, OC.17, p.337, §700).
Pensando por esse âmbito, a criança ao ingressar na escola, se distancia tão só da influência do inconsciente dos pais e passa a viver também sob a influência do inconsciente do professor e de todos ao redor. Dependendo da idade, se a partir dos dois anos quando já possui percepção do eu, ou seja, de um ego se estabelecendo, e dando continuidade ao desenvolvimento da sua personalidade, começa também a aparecer as identificações e os problemas.
Analisando a importância do papel do professor na vida das crianças, ele não pode resumir-se a um simples transmissor de conhecimento e sim um mediador que também participa do processo da evolução da personalidade da criança. Ele ocupa um papel central, dentro da escola, ele é um mestre, um verdadeiro representante do mundo dos adultos. Cabe a ele o contínuo exercício da percepção, para poder tocar àqueles a quem educa, só assim todas as teorias e práticas transmitidas, farão sentido e se tornarão em substância vital para a alma de todos. Para Jung, “alma” é um vasto campo de fenômenos psíquicos, onde ele acreditava ser o verdadeiro foco da psicologia.
E como podemos conhecer a nossa alma com profundidade? Somente educa para a construção de uma personalidade, quem supostamente tenha se constituído como um ser capaz de autoconhecimento, ou seja, quem segue em fidelidade à própria lei, denominada por si mesmo de designação e considerada um privilégio que é possível a todos. Assim, o que ocorre é que, em grande parte, pelo não desenvolvimento da própria personalidade, a voz interior do professor torna-se imprecisa, podendo confundir-se com a voz do grupo e com as suas convenções, passando, em seguida, a ser substituída por elas. É a força do coletivo, da mídia e de quem nos influencia que acaba determinando em muito a nossa persona (persona é nossa máscara social adaptativa, muitas vezes confundida com nossa personalidade). Uma persona malformada é rígida e nos aprisiona, assim acabamos nos identificando com ela como nosso eu verdadeiro.
Grande parte dos nossos educadores, em sua própria formação, desconhecem a importância de se conhecerem para conhecer o outro. Primeiro porque o “autoconhecimento” não faz parte da grade curricular e, quando falamos em pedagogia, nos restringimos a métodos e competências necessárias à transmissão de conhecimentos e não ao “conhecer-se”. Conhecer-se e reconhecer-se. Reconhecer que dentro daquele indivíduo tem um outro sujeito que é o Mestre, o professor que acompanha e está presente dia após dia na vida das crianças, mas além disso, é necessário a reconstrução, reviver sua criança para aproximar-se verdadeiramente dos seus alunos.
Atualmente muitos professores apresentam dificuldade em desenvolver seu papel dentro da sociedade, o que parece estar relacionado a uma visão deficiente do mundo externo e interno, passado e futuro, consequentemente, apresentam um ego não estruturante, rígido e inflexível. Em nossas vidas ocorrem diferentes situações, em que precisamos resgatar fatos do passado e relacioná-los com o presente, para assim podermos definir ações futuras, favoráveis ou desfavoráveis. Para esse tipo de análise e organização das informações encontradas, é necessário recorrermos ao nosso centro organizador, o ego. O que seria o ego?
“É um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral do nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros da nossa memória. Todos temos uma certa ideia de já termos existido, quer dizer, de nossa vida em épocas passadas; todos acumulamos uma longa série de recordações. Esses dois fatores são os principais componentes do ego, que nos possibilitam considerá-lo como um complexo de fatos psíquicos. A força de atração desse complexo é poderosa como a de um ímã: é ele que atrai os conteúdos do inconsciente, daquela região obscura sobre a qual nada se conhece. Ele também chama a si impressões do exterior que se tornam conscientes ao seu contato. Caso não haja esse contato, tais impressões permanecerão inconscientes.” (JUNG, OC.18/1, p.7, §18)
Esse processo de integrar conteúdos inconscientes à consciência exige muito de todos nós. É um processo que tem como objetivo ampliar e encontrar possibilidades, exige comprometimento da pessoa para se transformar e, principalmente, olhar para si. Será que esse mestre está preparado para olhar para si e transformar-se, para assim, transformar alguém? A criança? O aluno?
Os professores para se tornarem grandes mestres, precisam em primeiro lugar, estarem abertos às mudanças, treinarem sua sensibilidade para perceber o quanto são importantes na formação e na constituição da criança / aluno, o quanto essa criança se identifica e segue seu mestre. Quanto maior esse olhar e esse vínculo, maior será sua evolução junto a sua constituição e ao processo de individuação.
Podemos chamar de individuação…
“(…)o processo de formação e particularização do ser individual e, em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia coletiva. É, portanto, um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade individual.” (JUNG, OC.6/1, p.467, §853).
Para constituir essa personalidade individual passamos por diferentes experiências ao longo da nossa trajetória, algumas ruins que temos vontade de “empurrá-las para baixo do tapete” e reprimi-las, outras que nos dão prazer, sabor! São experiências individuais e coletivas, formando assim o nosso inconsciente pessoal. O autoconhecimento está ligado à autoconstrução, consequentemente, o processo de individuação não se realiza enquanto essa embreagem não funcionar perfeitamente, num verdadeiro equilíbrio psíquico, onde conteúdos inconscientes são integrados à consciência. Uma bela obra de arte!
Jung em suas pesquisas, nomeou de inconsciente tudo aquilo que não pode ser observado diretamente, mas pelos seus efeitos. Separou-os em duas camadas: inconsciente pessoal e inconsciente coletivo.” O inconsciente pessoal engloba todas as aquisições da existência pessoal: o esquecido, o reprimido, subliminarmente percebido, pensado e sentido.” (JUNG, OC.6/1, p.466, §851).
Já sobre inconsciente coletivo ele afirma:
“(…) são conteúdos que não provém das aquisições pessoais, mas da possibilidade hereditária do funcionamento psíquico em geral, ou seja, da estrutura cerebral herdada. São as conexões mitológicas, os motivos e as imagens que podem nascer de novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração históricas.” (JUNG, OC.6/1, p.467, §851).
Para Jung, o inconsciente coletivo não deve sua existência a experiências pessoais, ele não é adquirido individualmente, ele é herdado da própria humanidade. Enquanto o inconsciente pessoal é formado de complexos o inconsciente coletivo é constituído de arquétipos e instintos, uma verdadeira “fonte psíquica do poder, da totalidade e da transformação interior” (Hopcke, 2012, p.25)
Essa transformação interior só ocorrerá se o professor abrir espaço para se conhecer e reconhecer o seu aluno como parte integrante do seu próprio processo. Abrindo esse espaço ele entrará em contato com sua história e com a história de vida dos seus alunos, onde essas histórias também estão arraigadas no inconsciente coletivo. Para o sujeito historiar-se ele precisa simbolizar aquilo que é seu e o que é do outro e assim, dar significado e permitir constituir-se como um verdadeiro sujeito autor.
Segundo Beatriz Scozz, “Só podemos trabalhar com o outro e conseguir que nossa tarefa seja eficaz, se pudermos simbolizar nossas próprias dificuldades.” O professor que se encontra diretamente ligado ao seu processo de práticas, reflexões e de seus sentidos subjetivos, está automaticamente em constante evolução, modificando a si mesmo e ao outro. O feedback do professor está na resposta diária de seus alunos e o quanto envolvido está com ele e com aquilo que lhe é apresentado. Enfim, eles têm “a faca e o queijo na mão”, cabe a eles utilizar esses instrumentos da melhor maneira possível, com habilidade e destreza, ficando atentos não apenas aos sintomas e sim ao que está inserido neles.
As crianças, como mencionado no início desse artigo, estão construindo sua estrutura psíquica formando assim sua personalidade, necessitam de figuras mais completas, e que esses mestres sejam inspiração. Seres humanos, como todos os professores, são dignos de falhas, não podemos negar a nossa sombra (nosso lado reprimido, inconsciente, onde depositamos tudo que não condiz com os valores sociais e, também muitos tesouros que por inúmeras razões não pudemos desenvolver) e assim devemos conseguir olhar para esse nosso lado sombrio, revisitando e reintegrando essas partes para nossa própria evolução e a do outro.
Todos conhecem a frase de Jung “Conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana seja apenas outra alma”. Entrando em contato com nossos processos inconscientes podemos nos adaptar e nos transformar, proporcionando o autoconhecimento e o conhecimento do outro, gerando uma permanente cultura de evolução. Acredito que, os professores que se permitem transitar entre as polaridades que estão presentes no campo simbólico e que permeiam a relação mestre-discípulo e professor-aluno, tem em sua profissão uma grande força psíquica de poder, um instrumento significativo para sua caminhada em seu processo evolutivo e em seu próprio processo de individuação. Sendo assim, podem contribuir de uma maneira efetiva e assídua em seu campo de atuação e, construção de um ambiente propício ao aprendizado de seus alunos.
Para uma breve reflexão deixo aqui um poema de Madalena Freire, filha do nosso grande mestre Paulo Freire, uma verdadeira discípula de seus ensinamentos. Professora, pedagoga, arte-educadora que tem seu caminho trilhado por infinitas marcas de observação ao outro e construção do vínculo através da afetividade, uma das principais características da sua personalidade.
Eu- Outro: identificação e diferenciação
Madalena Freire
Eu não sou você
Você não é eu.
Eu não sou você
Você não é eu.
Mas sei muito de mim
Vivendo com você.
E você, sabe muito de você vivendo comigo?
Eu não sou você
Você não é eu.
Mas encontrei comigo e me vi
Enquanto olhava prá você
Na sua, na minha, insegurança
Na sua, na minha, desconfiança
Na sua, na minha, competição
Na sua, na minha, birra infantil
Na sua, na minha, omissão
Na sua, na minha, firmeza
Na sua, na minha, impaciência
Na sua, na minha, prepotência
Na sua, na minha, fragilidade doce
Na sua, na minha, mudez aterrorizada
E você, se encontrou e se viu, enquanto
Olhava pra mim?
Eu não sou você
Você não é eu.
Mas foi vivendo minha solidão
Que conversei com você.
E você, conversou comigo na sua solidão
Ou fugiu dela, de mim e de você?
Eu não sou você
Você não é eu
Mas sou mais eu, quando consigo
Lhe ver, porque você me reflete
No que eu ainda sou
No que sou e
No que quero vir a ser…
Eu não sou você
Você não é eu
Mas somos um grupo, enquanto
Somos capazes de, diferenciadamente,
Eu ser eu, vivendo com você e
Você ser você, vivendo comigo.
Elaine Bedin, Membro Analista em Formação pelo IJEP. SP
E. Simone Magaldi Membro didáta do IJEP
Referências
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1986 (Obras completas de C.G.Jung, v. 8/2).
JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas de C.G.Jung, v. 9/1).
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas de C.G.Jung, v. 6).
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes,1987.
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos da Psicologia Analítica. Petrópolis: Vozes, 1985.
FREIRE, Madalena. A paixão de conhecer o mundo. São Paulo. Paz e terra, 2007.
SCOZZ, Beatriz. Por uma Educação com alma: a objetividade e a subjetividade nos processos de ensino/aprendizagem. Petrópolis: Vozes,2000.