Resumo: A famosa enxaqueca de Zeus seria equiparada hoje, ao gestar de uma ideia. Percebe-se que ele vive internamente o conflito de gestar em sua cabeça uma mulher, com atributos femininos, mas que também incorpora aspectos do masculino bélico do pai.
Quando adentramos mais profundamente na simbologia, vemos que os deuses do Olimpo não estão imunes aos problemas mundanos, como as dúvidas, as emoções e até mesmo as doenças e as dores. Nesse caso particular, vê-se que Zeus tenta eliminar qualquer possibilidade de ser destronado, ou seja, numa disputa por poder tenta eliminar o feminino. O feminino aqui foi representado pela titânide, Métis (deusa da prudência). Contudo, ao engoli-la ele parece absorver esse lado que ele próprio repulsava. No momento da guerra com os Gigantes, parece pertinente ter-se um pouco de prudência.
Esse ensaio se propõe a apresentar algumas possibilidades teóricas para a afecção que afeta provavelmente um bilhão de pessoas no mundo moderno: a enxaqueca.
Para que demonstremos a teoria, precisamos inicialmente, estudar o mito em questão. Sendo assim, Junito de Souza Brandão explica:
“Zeus travava uma dura batalha contra os Gigantes, quando sua primeira esposa, Métis, ficou grávida. A conselho de Úrano e Geia, o futuro senhor do Olimpo a engoliu, pois, segundo a predição do primeiro casal primordial, se Métis tivesse uma filha e esta um filho, o neto arrebataria o poder supremo ao avô.
Completada a gestação normal de Atená[1], Zeus começou a ter uma dor de cabeça que por pouco não o enlouquecia. Não sabendo do que se tratava, ordenou a Hefesto, o deus das forjas, que lhe abrisse o crânio com um machado. Executada a operação, saltou da cabeça do deus, vestida e armada com uma lança e a égide, dançando a pírrica (dança de guerra, por excelência), a grande deusa Atená.
[…]
Tão logo saiu da cabeça do pai, soltou um grito de guerra e se engajou ao lado do mesmo na luta contra os Gigantes, matando a Palas e Encédalo. […]
Atená é a deusa virgem de Atenas e é, por isso mesmo, que o seu templo gigantesco na Acrópole se denomina até hoje […], o Partenón, já que, em grego, virgem se diz […] (parthénos). ” (BRANDÃO, 2014, p. 90, 91)
Embora o mito relatado por Brandão seja por si só suficiente para a análise, com a intenção de enriquecer a discussão, cabem também observar algumas observações de Bolen:
“Quando Atenas era retratada com outra pessoa, a outra era invariavelmente alguém do sexo masculino. Por exemplo, era vista perto de Zeus na atitude de um guerreiro de sentinela para se rei.
[…]
As habilidades bélicas e domésticas associadas com Atenas envolvem planejamento e execução, atividades que requerem pensamento intencional. A estratégia, o aspecto prático e resultados tangíveis são indicações de qualidades e legitimidade de sua sabedoria própria. Atenas valoriza o pensamento racional e é pelo domínio da vontade e do intelecto sobre o instinto e a natureza. Sua vitalidade é encontrada na cidade; para Atenas (em contraste com Ártemis), a selva deve ser subjulgada e dominada. ” (BOLEN, 1990, p. 117)
Ainda nesse diapasão, a autora segue “Em algumas versões seu parto assemelha-se a uma operação cesariana dolorosa – Zeus foi atormentado por dor de cabeça torturante originária do ‘parto’ e foi ajudado por Hefesto[…]”
Acerca do simbolismo que envolve a deusa Atená, Bolen (1990, p. 117, 118) desenvolve:
“Atenas considerava-se portadora de um só genitor, Zeus, com quem esteve associada para sempre. Foi o braço direito de seu pai, a única deusa olímpica a quem ele confiou seu raio égide, símbolos de seu poder.
A deusa não conheceu sua mãe, Métis, Na verdade Atenas parecia não ter consciência de que tinha mãe.
[…]
Quando Métis estava grávida de Atenas, Zeus a enganou, tornando-a pequenininha e a engoliu. Foi profetizado que Métis teria dois filhos muito especiais: uma filha igual a Zeus em coragem e sábia resolução, e um filho, um rapaz de coração totalmente cativante, que se tornaria rei dos deuses e dos homens. Ao engolir Métis, Zeus contrariou o destino e assumiu o controle dos atributos dela como se fossem seus. ”
Seguindo na mesma linha de pensamento, Bolen (1990, p. 119), continua: “Além de patrocinar os heróis individuais e de ser a deusa olímpica mais próxima a Zeus, Atenas tomou o partido da patriarquia. ”
Diante desses relatos, pode-se perceber que a famosa enxaqueca de Zeus seria equiparada hoje, ao gestar de uma ideia. Percebe-se que ele vive internamente o conflito de gestar em sua cabeça uma mulher, com atributos femininos, mas que também incorpora aspectos do masculino bélico do pai.
Quando adentramos mais profundamente na simbologia, vemos que os deuses do Olimpo não estão imunes aos problemas mundanos, como as dúvidas, as emoções e até mesmo as doenças e as dores.
Nesse caso particular, vê-se que Zeus tenta eliminar qualquer possibilidade de ser destronado, ou seja, numa disputa por poder tenta eliminar o feminino. Este aqui foi representado pela titânide, Métis (deusa da prudência). Contudo, ao engoli-la ele parece absorver esse lado que ele próprio repulsava. No momento de guerra com os Gigantes, parece pertinente ter-se um pouco de prudência.
É possível compreender, a partir do estudo da Psicologia Analítica que esse momento mitológico traz um importante avanço, ensinando que a psique ainda que identificada com uma energia masculina no exterior, considerando que Zeus era um deus identificado com o gênero masculino, guarda em si, no inconsciente uma energia feminina.
Sobre esse assunto, em o casamento como relacionamento psíquico[2], Jung responde a questão escolástica: Habet mulier animam (A mulher tem alma?), Jung define a natureza dos dois princípios quando responde “A mulher não tem anima, mas animus. A anima é de índole erótica e emocional, enquanto que o animus é de caráter raciocinador” (JUNG, 2019, p. 83).
O caráter inextricável e mutável dos conceitos de animus e anima é ressaltado por Jung (2015, p. 101), bem como sua definição enquanto complexos:
“Essas duas figuras crepusculares, do fundo escuro da psique, a anima e o animus (verdadeiros e semigrotescos “guardiões do umbral”, para usar o pomposo vocabulário teosófico), podem assumir numerosos aspectos, que encheriam volumes inteiros. Suas complicações e transformações são ricas como o próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato consciente, a persona. Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento usurpa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. ” (JUNG, 2015, p. 101)
De pronto, Jung ensina, portanto, que o animus é um complexo funcional presente na mulher. Tal complexo estaria contido no inconsciente, e seria o aspecto inverso da personalidade externa. Dessa forma, o animus se apresenta como o princípio masculino na mulher. Jung (2015, p. 98), explica que “O animus não se apresenta como uma pessoa, mas como uma pluralidade de pessoas. ”
Diante do conceito de animus como uma pluralidade de pessoas, ele explicita que essas seriam todas figuras masculinas, “O animus parece uma assembleia de pais e outras autoridades, que formulam opiniões incontestáveis e “racionais”, ex cathedra. ” JUNG (2015, p. 98)
Ainda para Jung (2015, p. 100) “O animus é uma espécie de sedimento de todas as experiências ancestrais da mulher em relação ao homem, e, mais ainda, é um ser criativo e engendrador, não na forma da criação masculina. ”
Para completar o material exposto por Jung, sua esposa, Emma Jung, editou um livro após a morte do marido, intitulado Animus e Anima. Neste livro, Emma Jung traz conceitos relevantes para nossa análise. Sendo assim, ensina Jung:
“Estas duas figuras – uma é masculina, a outra feminina – foram denominadas de animus e anima por Jung. Ele entende aí um complexo funcional que se comporta de forma compensatória em relação à personalidade externa, de certo modo uma personalidade interna que apresenta aquelas propriedades que faltam à personalidade externa, consciente e manifesta. São características femininas no homem e masculinas na mulher que normalmente estão sempre presentes em determinada medida, mas que são incômodas para a adaptação externa ou para o ideal existente, não encontrando espaço algum no ser voltado para o exterior.
O caráter dessas duas figuras não é, entretanto, determinado apenas pela respectiva estruturação no sexo oposto, sendo condicionado ainda pelas experiências que cada um traz em si do trato com indivíduos do sexo oposto no decurso da vida e através da imagem coletiva que o homem tem da mulher e a mulher do homem. ” (2006, p. 15,16)
Entende-se, portanto, a importância do “gestar” de Zeus.
A representação psíquica de absorver uma titânide e gestar, na cabeça, faz com que seja possível inferir que ele tenha desenvolvido uma anima. Chama atenção que ele tenha gestado, de todos os lugares possíveis, na cabeça. Esta aqui associada popularmente ao lugar físico da mente. Ou seja, ele incorporou em si as ideias de prudência, de feminino, de moderação.
Para além disso, devemos observar o “crescimento” dessa deusa dentro dele, os impactos dessa gestação. Ser criada dentro do pai, gestada como uma ideia, e sem um referencial de mãe, fez com que ela nascesse uma “filha do pai”. Atena desde seu nascimento (pouco convencional) já nasce armada para a luta, e de pronto, já parte para a batalha. Os impactos na construção da psique dela por ter sido gestada em seu pai, lhe dão também atributos masculinos, sendo constantemente representada ao lado de outras figuras masculinas e como uma “patrona de heróis”.
A proposta desse ensaio, no entanto, é discutir esse episódio do parto.
Se pensarmos na enxaqueca como um “trabalho de parto” com uma dor que vai e vem em ondas, tal qual as contrações como são relatadas, podemos pensar simbolicamente suas contribuições. Quando temos uma dor de cabeça tão intensa, que tal qual Zeus, parece que só passaria com uma marretada bem aplicada, o que estamos “parindo”? O que é capaz de surgir de tal sofrimento? Quando pensamos num parto de um bebê, ao fim das dores do parto, a mãe sairá com um bebê no colo. Então, o que ganhamos ao final de uma enxaqueca?
Se pensarmos a enxaqueca como uma tentativa de voltar ao estado interno de homeostase, o que estamos internamente combatendo? Quais lutas Atena está travando em nós? O que essa busca por espaço feminino está comunicando?
A resposta para cada uma dessas perguntas é individual e intransferível, afinal somos seres singulares e subjetivos. A ideia aqui foi apenas problematizar as razões pelas quais nossa sociedade moderna sofre tanto com essas dores.
Paula de A. Bernardi Peñas – Membro Analista em formação pelo IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Analista Didata do IJEP
Referências:
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 2014.
BOLEN, Jean Shinoda. As deusas e a mulher. Nova psicologia das mulheres. São Paulo: Paulus,1990.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do feminino. Petrópolis: Vozes, 2019.
JUNG, Emma. Animus e Anima. São Paulo: Cultrix, 2006.
[1] Alguns autores referem como Atena, outros como Atená.
[2] Excertos retirados de Carl Gustav Jung. O desenvolvimento da personalidade [OC,17], publicado pela primeira vez em 1925.