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Grandes capatazes intelectuais

Quantas pessoas chegam na nossa clínica se queixando sobre o ambiente de trabalho. O que tem acontecido? O trabalho tem se tornado uma fonte de adoecimento das pessoas ou sempre foi um fator de adoecimento. Convido a vocês refletirem comigo sobre essa percepção na clínica e o paradoxo que ela traz entre os avanços no campo do conhecimento e a manutenção da percepção adoecedora no campo do trabalho.

Quantas pessoas chegam na nossa clínica se queixando sobre o ambiente de trabalho. O que tem acontecido? O trabalho tem se tornado uma fonte de adoecimento das pessoas ou sempre foi um fator de adoecimento?

Fico reflexiva com a ideia de que as condições de trabalho atualmente têm se tornado insalubres, como se a condição de venda da nossa mão de obra estivesse se deteriorando ao longo dos anos. Se pararmos para pensar de uma forma mais ampla, temos indícios históricos de que antigamente as coisas também não eram tão boas assim, como no início da vida moderna com a Revolução Industrial que transferiu os trabalhos manuais (agrícolas e artesãos) para dentro das fábricas:

“Eram precárias as condições de vida e trabalho dos artesãos no início da primeira revolução industrial: as fábricas tinham um ambiente insalubre; o tempo de trabalho chegava a 80 horas semanais; os salários eram bem abaixo do nível de subsistência. Além disso, mulheres e crianças também enfrentavam as mesmas condições de trabalho, e ainda era mais agravante, visto que os salários eram ainda menores.”

Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/primeira-revolucao-industrial. Acesso em: 04 set 2024

Hoje, existe uma grande parte do mundo que regulariza o ambiente de trabalho, estipulando as horas de trabalho, salário-mínimo e jornada máxima permitida.

Sem falar na declaração universal dos direitos humanos proclamada e adotada pela assembleia geral das Nações Unidas desde dezembro de 1948 que se baseia na consideração de que o “reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Fazendo com que todas as relações humanas, independente de seu país, dentro dos países membros da ONU, sejam pautadas por esses direitos. Então de onde vem esse sentimento? De onde vem essa sensação de que estamos piorando ao invés de melhorar?

A primeira coisa que me passa pela cabeça é que, de fato, apesar de hoje em dia existirem maiores mecanismos de proteção a abusos, exploração e violência no campo das relações de trabalho, não conseguimos eliminar a expressão do mal que habita a condição humana. Essas leis, auxiliam a trazer para a luz o que é certo ou não fazer com quem empregamos, porém não são capazes de inibir de forma eficiente o abuso e a exploração. Mas será que é possível eliminar ou atenuar os aspectos sombrios que habitam a psique humana?

Segundo Jung, eliminar a sombra é algo impossível pois quanto mais é reprimida, mais continua a crescer (JUNG, 2019a).

Porém, é exatamente no confronto com a sombra que conseguimos avançar para uma vida mais saudável e equilibrada pois ao longo desse processo vamos dialogando de forma consciente com diversos aspectos da nossa totalidade, tornando a consciência cada vez mais flexível e receptível aos conteúdos inconscientes. Por isso as leis, apesar de auxiliarem uma melhor manutenção do mundo externo, sozinhas não são eficazes, pois a existência delas sem reflexão não propicia uma tomada de consciência, gerando apenas um conhecimento racional sem sabedoria.

Sem a existência de um diálogo consciente entre mundo interno e externo a sombra se mantém oculta e, com isso, continua assumindo suas características mais perversas:

“Infelizmente, não se pode negar que o homem como um todo é pior do que ele se imagina ou gostaria de ser. Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura e espessa ela se tornará. Uma pessoa que toma consciência de sua inferioridade, sempre tem mais possibilidade de corrigi-la. Essa inferioridade se acha em contínuo contato com outros interesses, de modo que está sempre sujeita a modificações. Mas quando é recalcada e isolada da consciência, nunca será corrigida.”

JUNG, 2019a, p.131

A segunda questão, que claramente está atrelada a primeira citada acima, é que temos uma falsa ilusão de que o avanço científico, o avanço dos estudos e do conhecimento racional, trazem espontaneamente uma nova atitude psíquica, o que não é verdade. Nunca tivemos tanto acesso à informação, ao conhecimento e mesmo assim ainda sucumbimos, como sociedade, aos padrões arcaicos e instintivos de destruição.

E assim vemos pessoas extremamente capacitadas no campo racional e intelectual, com faculdade, MBA, pós-graduações, mestrados e até doutorados se comportando como verdadeiros capatazes da época colonial. A grande diferença é que a violência utilizada antigamente abarcava a violência física também, e esta foi criminalizada e reprimida às sombras psicológicas. Porém sabemos que nenhum aspecto da vida é factível de eliminação. Então a tentativa de banir não é efetiva, e essa violência na obscuridade encontra em seu carcereiro, a razão e a oportunidade de expressar-se e a violência acaba acontecendo no campo intelectual. O racionalismo e a doutrina cientificista, por exemplo, são prismas através dos quais a realidade é vista, mas são limitados em sua capacidade de captar a totalidade da experiência humana.

“O racionalismo e a superstição são complementares. De acordo com a regra psicológica a sombra fica mais forte quando há luz, isto é, quanto mais racionalista for a consciência, tanto mais vivo se torna o mundo de fantasmas do inconsciente.”

JUNG, 2019b, p.759

Esses capatazes, agora intelectualizados, continuam a serviço da opressão da vida em virtude de uma maximização de seus recursos financeiros.

Prazos apertados e rígidos, excesso de demanda e de cobranças, amedrontamento de perda monetária são os açoitadores. A pessoa que é subordinada à tais comandos não sofre abusos físicos externos, mas sim abusos psicológicos pautados em ameaças e medo. Inclusive muitas vezes feito de forma muito sutil e velada e outras vezes nem tanto, podendo ser bem explicitadas. Entretanto, ambas as abordagens fazem com que o próprio funcionário e/ou pessoa em subordinação cometa os abusos físicos consigo: tanta pressão, opressão e controle fazem com que as pessoas deixem de se alimentar direito, de se exercitar, de dormir, de cuidar do seu corpo e das demais esferas que sustentam a alma, como o se relacionar com outras pessoas por exemplo.

Os capatazes intelectuais transferem a responsabilidade de seus abusos à livre escolha da razão: “essas são as regras, quem não quiser pode sair”.

Fazendo com que indivíduos esclarecidos de informações se tornem ignorantes de conhecimento, se tornando tão primitivos quanto o que negam.

“Não haverá desenvolvimento algum, mas apenas uma morte miserável num deserto árido, se acreditarmos poder dominar o inconsciente por meio de nosso racionalismo arbitrário. Foi isto que o princípio alemão “onde há uma vontade, também há um caminho” tentou conseguir, e sabemos quais foram os resultados.”

JUNG, 2018, p.1588

Ou seja, se na consciência humana não existe uma reflexão sobre a soberania da vida e todos os seus aspectos, sobre o direito de existir de sua multiplicidade e se apenas uma verdade está posta, o que não atende a essa verdade será tiranizada e sofrerá os mais terríveis abusos pois a flexibilidade e a soberania da vida sofrem com a repressão.

É preciso entender que o trabalho psíquico, o caráter reflexivo, exige muito comprometimento da consciência com a disciplina de diálogo com esses conteúdos, conforme trazido por Whitmont:

“A diferença entre destruir e banir é a diferença entre a repressão e a disciplina. A repressão tenta matar o impulso, tornando-o inconsciente. A disciplina reconhece e acolhe o impulso, mas escolhe em não agir em função dele.”

WHITMONT, 1991, p.127

Então não adianta apenas irmos atrás de conhecimento no campo lógico, desenvolvermos leis e normas, se isso não vier acompanhado de profundo reconhecimento da sabedoria e soberania da vida, pois esse é o processo de se tornar uma pessoa completa, denominado por Jung de individuação. E isso pode significar dar espaço e valor às emoções, intuição, criatividade e espiritualidade. Reconhecendo a vulnerabilidade e os impulsos naturais como partes legítimas da experiência humana. Mesmo que isso coloque em risco nossas crenças e até maximização de valores monetários.

Enquanto nossa vida for pautada pelo que se consegue e não pela qualidade de como se vive, não sairemos desse ciclo vicioso. Seguiremos testemunhando um moedor de almas massivo onde os ambientes das relações humanas continuarão sendo ambientes adoecedores, pois a experiência estará sempre subjugada ao materialismo. Jung acreditava que essas sombras coletivas como materialismo extremo, desumanização e crises espirituais são o que sustentam uma cultura de massa de conflitos e guerras.

Sendo assim não temos testemunhado a deterioração da qualidade do ambiente laboral, mas sim temos testemunhado que falta de conexão com a alma não se cura com bibliografia, com conhecimento racional. Podemos avançar, e devemos, no campo intelectual, mas sem integrar os aspectos de alma, continuaremos sendo uma espécie bárbara que não transcende, que fica apenas vivenciando um joguete de opostos, sem de fato progredir no psiquismo coletivo.

Renata Fraccini Pastorello – Analista em formação IJEP

Ajax Salvador – Membro Didata IJEP

Referências:

Educa Mais Brasil. Primeira Revolução Industrial. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/enem/historia/primeira-revolucao-industrial. Acesso em: 04 set 2024.

JUNG, Carl. G. A Vida Simbólica vol II, 8.ed. Petrópolis: Vozes, 2018

________ Psicologia e religião, 11.ed. Petrópolis: Vozes, 2019a

________ A Vida Simbólica vol I, 9.ed. Petrópolis: Vozes, 2019b

Unicef. Declaração Universal dos Direitos Humanos: Adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (resolução 217 A III) em 10 de dezembro 1948. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 04 set 2024.

WHITMONT, Edward C. O Retorno da Deusa. 2.ed. São Paulo: Summus, 1991

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