No artigo “Aposentados na cadeia: idosos japoneses que se esforçam para serem presos”, escrito pelo correspondente Ed Butler para a rede BBC, ele fala sobre o aumento da criminalidade entre os idosos japoneses e as possíveis causas para essa situação.
Segundo o artigo a proporção de pessoas com mais de 65 anos condenadas em 1995 era de 01 em cada 20 condenações e passou agora para 01 em cada 05, ou seja, foi de 5% para 20%, um aumento de4 vezes na taxa. Entre as idosas esse aumento está acontecendo em uma velocidade maior, levando a necessidade de se contratar mais guardas do sexo feminino. A reincidência também é um dado que chama a atenção, dos 2,5 mil condenados com mais de 65 anos em 2016, mais de um terço estava voltando para a cadeia pela sexta vez.
Uma das causas apontadas por um demógrafo australiano que trabalha em Tóquio e fez uma pesquisa sobre os aposentados japoneses é a pobreza. A aposentadoria que eles recebem do governo é insuficiente para pagar todos os custos que eles têm para viver. Diante dessa dificuldade, muitos deles vêm na prisão uma forma de ter moradia, alimentação e cuidados médicos de forma gratuita e com a “vantagem” adicional de poderem poupar a aposentadoria, que continua a ser paga durante o período na cadeia, o que lhes permite ter uma economia quando eles saem.
Essa situação vai contra a imagem que temos dos japoneses, que são tidos como um povo muito respeitador do bom comportamento, da correção e das leis. Sendo assim, causa espanto saber que idosos deliberadamente cometem delitos com a intenção não de se beneficiar do produto “crime”, mas sim, de serem pegos e poderem usufruir dos “benefícios” do sistema prisional.
Um idoso de 69 anos, entrevistado no artigo, ilustra bem essa situação, ele cometeu a primeira infração com 62 anos. Ele roubou uma bicicleta e se apresentou na delegacia dizendo “Olha, eu roubei isso!” e conseguiu ser condenado a um ano de prisão.
Com aparência amistosa, nada ameaçadora, o entrevistado mostrou uma faca para um grupo de mulheres em uma praça na expectativa de que alguma delas ligasse para a polícia. Novamente a estratégia funcionou e com uma sucessão de planos bem sucedidos ele passou metade dos últimos oito anos preso.
Apesar de existir realmente uma questão financeira, o diretor do centro de reabilitação, onde estava detido o entrevistado, aponta uma causa psicológica como mais forte para explicar esse comportamento: a solidão. As relações familiares mudaram e eles não têm ninguém com quem possam contar. O entrevistado, que não tem mais contato com os irmãos mais velhos, nem com suas ex-mulheres e filhos, reconhece que se pudesse contar com o apoio de familiares certamente não escolheria fazer o que fez.
O distanciamento dos familiares também explica o aumento do suicídio entre os idosos, que não querem se tornar um fardo para os filhos, que por conta da crise financeira pela qual passou o Japão, saíram das províncias menores em busca de oportunidades em províncias maiores e deixaram os pais por conta própria.
A falta de suporte familiar na vida fora da prisão leva os idosos infratores a acharem que a prisão é uma boa solução para resolver seus problemas de ordem financeira, e uma vez lá, percebem que podem ter também a companhia de pessoas, o que deve influenciar fortemente o desejo de voltar, segundo o diretor do centro de reabilitação.
Refletindo sobre a questão sobre o ponto de vista da psicologia junguiana, podemos ver que as virtudes como obediência cega às regras e às leis, a disciplina, a eficiência, a produtividade, que são extremamente valorizadas tanto pelo povo japonês como pelo resto do mundo, foram adquiridas à custa da negação de outras características da natureza humana que foram relegadas a condição de fraqueza. A demonstração de afeto, falhas e erros não são toleradas pois atrapalham e contrariam o modelo a ser seguido.
Essas características da natureza humana que foram negadas ficam relegadas a uma parte inconsciente da personalidade e quanto mais se faz um esforço que permaneçam nessa condição, mais o inconsciente vai fazer um movimento no sentido de fazer com que sejam integrados à consciência, fazendo com que eles se manifestem de forma indesejada, involuntária, compulsiva.
“Quando nos recusamos a enfrentar a sombra, ou quando tentamos combatê-la com a força da nossa vontade, exclamando: “Para trás, Satanás!”, estamos tão-somente relegando essa energia para o inconsciente e dali ela exercerá seu poder de uma forma negativa, compulsiva, projetada. Então, nossas projeções transformam o mundo à nossa volta num ambiente que nos mostra a nossa própria face, mesmo que não a reconheçamos como nossa. Tornamo-nos cada vez mais isolados; em vez de uma relação real com o mundo à nossa volta, existe apenas uma relação ilusória, pois nos relacionamos, não com o mundo como ele é, mas sim com o “mundo mau e perverso” que a projeção da nossa sombra nos mostra.” (EDWARD C. WHITMONT in ZWEIG e ABRAMS, 2006, p. 40)
Ver a demonstração de afeto como uma fraqueza dificulta enormemente a criação de vínculos verdadeiros e duradouros entre as pessoas, levando as pessoas ao sentimento de solidão e isolamento. Porém ao invés de lidar com a questão das emoções de forma natural, os japoneses encontram as formas mais bizarras de resolverem as angústias que surgem pela dificuldade de terem relacionamentos baseados nos sentimentos.
No caso dos idosos criminosos eles trocam sua liberdade pela companhia que encontram nas prisões, com outras pessoas que também se sentem solitárias e que foram forçadas pela lei a viver juntas. Entre as pessoas mais jovens também não é diferente, no o artigo AMOR E SEXO NO JAPÃO – UMA SOMBRA QUE AMEAÇA O PAÍS DO SOL NASCENTE que escrevi baseado em um documentário que mostra as formas fantasiosas que os jovens e os adultos encontram para resolver a dificuldade de se envolver sentimentalmente, que vai desde pagar por um abraço até comprar bonecas que além de servirem de brinquedos sexuais são melhores companhias que seres humanos, pois, foram feitas com expressões em seus rostos que despertam sentimentos em seus donos.
Outras performances pelas quais o Japão se destaca, como a produção de filmes pornográficos, mangás, a avançada tecnologia na construção de robôs que eles querem que cada vez mais se pareçam com seres humanos mostram como eles projetam nesses recursos a necessidade que eles têm de terem relacionamentos verdadeiros, baseado em sentimentos e emoções com as pessoas, mas como não conseguem, buscam vivê-los em mundo artificial e da fantasia.
A intolerância ao erro e às falhas é outro ponto que leva a capacidade de se aprender com os erros e a crescer a partir desse lado sombrio da personalidade.
Essa questão é tão rígida na formação da personalidade deles que em muitos casos, ao se cometer algum erro, o suicídio é visto como única saída honrosa para a pessoa que com esse ato de coragem livra a família do peso da vergonha de ter um fracassado dentre seus entes. Apesar de se estar tentando mudar essa mentalidade, o Japão ainda ocupa o topo do ranking de suicídios, o que mostra que eles ainda não conseguiram incorporar a mentalidade de aprender com os próprios erros.
No caso das infrações cometidas pelos idosos que querem ser presos, considerando o tamanho do delito as penas infringidas parecem desproporcionais, pode-se pegar dois anos de prisão pelo roubo de um sanduíche, e ao invés de entenderem a situação pelo lado humano e buscar uma solução que ensine os idosos a serem felizes fora da prisão, o sistema judiciário quer tornar as penas mais severas. Ou seja, rigidez e intolerância a não obediência às regras e às leis.
Dulce Ayako Kurauti
Membro analista em formação pelo IJEP
Tel.: (11)99961-7090 email: dulce_kurauti@hotmail.com
Consultório na Vila Mariana – SP
Referências
BUTLER, E. Aposentados na cadeia: os idosos japoneses que se esforçam para serem presos. BBC News, fev. 2019. (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2019/02/01/idosos-na-prisao-por-que-alguns-aposentados-estao-se-esforcando-para-ir-para-a-cadeia-no-japao.htm
KURAUTI, D. A. AMOR E SEXO NO JAPÃO UMA SOMBRA QUE PAIRA SOBRE O PAÍS DO SOL NASCENTE. IJEP, nov. 2018. https://ijep.sampa.br/index.php/artigos/show/amor-e-sexo-no-japao-uma-sombra-que-paira-sobre-o-pais-do-sol-nascente)
ZWEIG, C.; ABRAMS, J. Ao encontro da sombra. São Paulo: Cultrix, 2006.