The way it is (tradução nossa)
William Stafford
Há um fio que você segue. Ele passa entre as coisas que mudam. Mas ele não muda. As pessoas se perguntam sobre o que você está perseguindo. Você precisa explicar sobre o fio que te conduz. Mas é difícil para os outros enxergarem.
Enquanto você segurá-lo, não pode se perder. Tragédias acontecem; as pessoas se machucam ou morrem; e você sofre e envelhece. Nada que você faça pode impedir a passagem do tempo. Você nunca deve soltar o fio.
RESUMO: O artigo explora o simbolismo do fio como condutor do destino, da criação e da jornada interior em busca do significado de vida. Passando por diferentes culturas e narrativas, trazemos para o centro da reflexão o mito de Teseu, em que o fio de Ariadne pode ser pensado como a conexão entre a consciência e o inconsciente, permitindo que o indivíduo encontre seu caminho em momentos de crise e transformação.
INTRODUÇÃO
Em minhas pesquisas recentes sobre simbologia, um poema atravessou o meu caminho. Não sei dizer se o encontrei ou se fui por ele capturada. Presa em seu nó, como um inseto que fica preso em uma teia de aranha e lentamente é digerido, fiquei refletindo sobre quantas vezes não sentimos a condução desse fio, o qual fala Stafford, em nossas vidas? Quantas vezes não somos guiados por uma força invisível, que nos leva em uma determinada direção? Não sabemos aonde estamos indo, ou explicar a sua existência, mas sentimos a sua presença. É um fio que nos acompanha na passagem pela vida, servindo de costura para as nossas histórias, tecendo e remendando as memórias e dando sentido a trama que tece o nosso destino.
O simbolismo do fio, como aponta Patrícia Neto, em A trama em atitude simbólica, está diretamente relacionado com simbolismo da tecelagem, que, por sua vez, representa a própria criação.
A criação aqui se refere tanto ao surgimento do cosmos quanto à força criadora presente em cada ser humano, como nos mostram mitos e histórias de diferentes origens.
NETO, 2018, p. 68
O fio, o tecido e o tear estão intimamente relacionados aos símbolos do destino e da criação de novas formas e possibilidades.
Essa criação não está somente relacionada simbolicamente à predestinação ou ligação entre diferentes realidades, mas também à criação a partir da própria substância, como faz, por exemplo, a aranha.
NETO, 2018, p. 69
Podemos encontrar o símbolo do fio em diversas narrativas: de contos de fadas a mitos, o fio tem um papel relevante na condução de jornadas de transformação. Em diferentes culturas ao redor do mundo, importantes figuras míticas, geralmente femininas, foram associadas ao tecer e ao fiar, revelando sua influência sobre os destinos humanos.
Na mitologia grega temos Atenas, filha de Zeus, deusa da tecelagem; temos também as Moiras, que fiam o nascimento, o desenrolar da vida e a sua ruptura. Penélope, que desmancha à noite o manto que tece durante o dia, conseguindo assim adiar o seu destino. No Egito, Neith é a deusa tecelã e símbolo do eterno feminino. Na mitologia germânica, as Valquírias são as fiandeiras do Destino.
Nos contos de fadas, podemos citar o exemplo da filha do moleiro, que precisa, por ordem do rei, fiar palha e transformá-la em ouro, para salvar sua vida, em Rumpelstiltskin. São histórias que nos mostram que, enquanto estamos vivos, precisamos passar por transformações.
A verdadeira transformação, que nunca é reversível, acontece internamente e implica dor – envolve subir (ou descer) de um nível de consciência para o seguinte, ganhando um novo sentido de onde estamos em nossa vida e o que deve vir a seguir.
GOULD, 2007, p.13
TESEU E O FIO DE ARIADNE
Nos debruçaremos neste artigo sobre o mito de Teseu e Ariadne. Nosso herói era filho de Egeu, o rei de Atenas, e de Etra. Ficou conhecido pela sua gentileza, bondade e humildade, assim como por sua valentia e por sua força. Quando completou 18 anos, Teseu corajosamente se voluntariou para se juntar aos 7 rapazes e a 7 moças que eram ofertados anualmente para alimentar o Minotauro, monstro com cabeça de touro e corpo de homem, que era mantido em um labirinto sob o palácio de Creta. O sacrifício humano fazia parte do acordo de paz imposto por Minos, o rei de Creta, ao povo ateniense.
O plano de Teseu era adentrar no labirinto e matar o monstro, livrando seu povo de tamanha crueldade. Porém, o labirinto que abrigava o Minotauro havia sido arquitetado por Dédalo como um organismo vivo, que mudava de forma, de modo que ninguém que entrasse nele conseguiria encontrar a saída.
Ao chegar em Creta, Teseu foi visto por Ariadne, filha de Minos, que se encantou por ele. Apaixonada e compadecida do destino do herói, Ariadne resolveu ajuda-ló, entregando-lhe uma espada e um novelo de linha vermelha. Em algumas versões, ele deveria amarrar uma ponta na entrada do labirinto e, em outras, Ariadne quem segurava a extremidade. De qualquer forma, para voltar, deveria seguir o fio desenrolado. Guiado pelo fio de Ariadne, Teseu derrotou o Minotauro e conseguiu voltar à luz: ele chegou ao centro e pôde voltar sem se perder nos descaminhos desse labirinto.
Nesse mito, o herói precisa entrar no labirinto, que aqui representa o desconhecido, para atingir o seu centro e lá lutar contra uma força instintiva selvagem.
Existe uma tarefa a ser realizada, que o transformará. Na mitologia, afirma Carla Almeida, em O cordão de Teseu, as descidas às grutas e labirintos representam morte e rituais iniciáticos, onde o indivíduo passa por experiências transformadoras e profundas que o levam à origem do ser (Cf. ALMEIDA, 2009, p.30). São provas de iniciação, em que o símbolo do labirinto anuncia a presença de alguma coisa sagrada e valiosa no seu centro (Cf. CHEVALIER; GHEERBRANT, 2024, p.597). Teseu não se perde nos descaminhos desse labirinto: há algo que o conduz e que o traz de volta à luz, transformado. Há o fio de Ariadne.
O FIO DAS RELAÇÕES
O labirinto também conduz o homem ao interior de si mesmo, “no qual reside o mais misterioso da pessoa humana” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2024, p.598). Podemos pensar aqui no labirinto como as profundezas do inconsciente, onde, no centro, se encontra a unidade do ser. Assim sendo, o fio pode ser visto como a ponte que liga a consciência ao inconsciente, permitindo que, ao final dessa jornada às trevas, o eu volte à luz. No ato de costurar, o fio tem a função de ligar pedaços que antes estavam desconectados, criando uma totalidade em harmonia. Ele pode também remendar o que estava rompido, ou criar sentido, reunindo partes e possibilitando a relação entre elas.
Podemos pensar a costura como metáfora para o impulso arquetípico representado por Eros em sua função de agregar, reunir, juntar, relacionar etc. Isso não apenas no jogo amoroso, do qual fazem parte os relacionamentos, mas em nossas tentativas de juntar, de fazer relação entre nossos mundos interno e externo, colocando assim a psique em movimento.
NETO, 2018, p.119
Na maioria das sociedades, as atividades de tecer, fiar, costurar e bordar são historicamente ligadas às mulheres. É uma herança transgeracional, em que o fio preso à agulha constrói narrativas de vida, permeadas por memórias, não só individuais, mas compondo um imenso tecido coletivo. Além de ter função decorativa e de adaptação (como é o caso das vestimentas e artefatos domésticos), essas atividades têxteis transmitem valores, condições sociais e culturais, e também práticas religiosas. É um fazer artesanal que está ligado tanto à construção da identidade individual, como coletiva. (CF. NETO, 2018). Podemos pensar então no fio de Ariadne como elemento criativo da alma, que nos conduz nos relacionamentos, tanto externos quanto internos? Será ele o “auxilio espiritual necessário para vencer o monstro” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2024, p.683)?
O FIO DA VIDA E O SELF
Para Jung, a neurose é o sofrimento de uma alma que não descobriu o seu significado.
Na sociedade atual, técnico-científica, vivemos cada vez mais com o sentimento de vazio religioso, ou espiritual. “O cosmo se tornou quase desprovido de alma e os fenômenos naturais tiveram roubada a sua espiritualidade” (JAFFÉ, 2021, p.59). Nos sentimos sozinhos e individualistas; perdemos a ligação com o sentido da vida, com a totalidade. Estamos perdendo nossas costuras, vivendo em mundo cada vez mais doente e deprimido, desconectado da alma.
Como traz Aniela Jaffé, em O mito do significado, a experiência do significado, na visão de Jung, depende da percepção de uma realidade transcendental ou espiritual que se une à realidade empírica da vida e que, juntamente com ela, forma um todo (Cf. JAFFÉ, 2021, p.37). Para ele, a unidade humana é experimentada através do arquétipo central, o Self. Ele representa a essência da totalidade psíquica, onde consciência e inconsciente se complementam. Ele é o objetivo da vida, porque é a expressão mais plena da combinação de destino que chamamos individuo.
O significado da vida, para Jung, é a realização do Self, ou dessa totalidade.
Sendo assim, é trabalho do ego, o complexo do eu, percorrer por esse labirinto a que nomeamos de experiência interior, integrando os conteúdos do inconsciente, em busca de sua completude, mas sem nunca largar o fio que o conduz.
A aventura, essa ida ao inconsciente, no entanto, só tem êxito quando a entrega passiva se transforma numa atitude ativa. Só assim a consciência se delimita em relação ao inconsciente, amplia a sua esfera e a personalidade se desenvolve.
JAFFÉ, 2021, p.91
Adentrar no labirinto e vencer o Minotauro é se confrontar com poderes numinosos do inconsciente, tornando aquilo que era uma ameaça interior como parte de si, atingindo o centro de uma nova vida, podendo então voltar à consciência, conduzido pela alma, renovada de significado. Quanto mais individualistas, costurados no próprio ponto de vista, sem o senso de comunidade para servir de trama desse tecido da vida, mais sozinhos nos sentimos, com uma narrativa esvaziada de significado. O desenrolar da vida depende de seus laços e costuras firmes.
Há um conceito da filosofia indiana chamado Sutratma, em que há um elo vital que liga todos os seres. É uma essência que todos compartilham; algo que nos leva em direção ao nosso destino e que passa pela ampliação de consciência. E esse algo é o fio.
Imagina você um colar de contas. Imagina que cada continha dessas é um ser humano. Imagina uma conta vaidosa achando que ela é mais brilhante, mais redondinha que as demais, querendo aparecer, querendo se mostrar. Até que depois de muito tempo de experiência, de amadurecimento, essa conta começa a achar que essa vida de vaidade, de superficialidade, não faz mais sentido; ela se esgota de olhar só pra fora. Ela começa a sentir necessidade de vida interior. Quando ela vira pra dentro dela pra procurar algo interior, por dentro dela passa um fio de prata. Ela não está acostumada a reconhecer prata; ela só reconhece pérola. Então ela olha pra dentro e sente como se ela tivesse um vazio. De tanto olhar para esse vazio, de tanto buscar entende-lo, num determinado momento ela acha um pedacinho de prata dentro dela. E diz: olha, essa aí é minha essência, vou contar pra todo mundo. Todo mundo deve ter uma essência também. Lá pelas tantas, essa pérola descobre que esse pedacinho de prata que passa por dentro dela, e o que passa por dentro de todas as outras pérolas, é um só; é um único fio. Então se você sair da ilusão das aparências, você vai perceber que sempre foi a unidade. (Lúcia Helena Galvão em: www.youtube.com/watch?v=G0mLJrqcgeo)
Beatriz Assumpção – Analista em formação IJEP
Referências:
ALMEIDA, Carla Mirelle S. O Cordão de Teseu. A libertação através das artes. Tese de pós-graduação em Terapia Transpessoal, INCISA. Salvador, 2009.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. 39.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2014.
GOULD, Joan. Fiando palha, tecendo ouro. O que os contos de fadas revelam sobre as transformações na vida da mulher. 1.ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
JAFFÉ, Aniela. O mito do significado na obra de Carl G. Jung. Uma introdução concisa ao estudo da psicologia analítica. 2.ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2021.
NETO, Patrícia Elizabeth Widmer Costa. A trama em atitude simbólica. Um olhar da psicologia analítica de Jung sobre mãos que costuram, bordam e tecem. Tese de doutorado em Psicologia da Aprendizagem e Desenvolvimento, USP. São Paulo, 2018.
STAFFORD, William. The Way it it. Disponível em: https://reflections.yale.edu/article/seeking-light-notes-hope/poem-way-it. Acesso em: 20 outubro 2025.

