Resumo: Este artigo analisa o impacto da ausência paterna na composição dos relacionamentos amorosos femininos. Com base na psicologia analítica junguiana, o texto traz inicialmente o papel do pai na constituição da psique feminina e como a sua falta provoca um vazio simbólico, o que pode aprisionar a mulher em uma identidade infantilizada, presa ao mundo materno, bloqueando o acesso ao outro, à alteridade.
Jung abordou no ensaio A importância do pai no destino do indivíduo, que consta no título Freud e a Psicanálise, volume IV das Obras Completas, o papel do pai para a psique.
Para Jung, o pai representava a função de mediação e orientação; o princípio do Logos; e a estruturação da consciência, o que será melhor desenvolvido no decorrer do trabalho.
O pai possui então extrema importância psíquica, pois para além do pai individual, ele é o representante da luta do herói divino contra o dragão-mãe, a fim de libertar o herói do poder da escuridão da inconsciência “como uma tentativa do próprio inconsciente de resgatar a inconsciência da regressão ameaçadora” (Jung, 2013a, §738).
Tal força se refletia fortemente na cultura ocidental, outrora, na imagem do pai individual, a quem se devia obediência e respeito de forma inquestionável. Isso porque, além de arquetipicamente representar a força contra o inconsciente, ele era o provedor financeiro e espiritual da família. Contudo, com o passar do tempo, este papel passou por um processo de esvaziamento na cultura ocidental, pois, dentre outros fatores: as mães também se tornaram provedoras do lar; o Estado assumiu certa parte da função normatizadora; a Igreja passou a ter voz de autoridade espiritual sobre o lar.
Sendo assim,
O status de pai foi, portanto, alterado no mundo externo; ele não é mais tomado coletivamente como figura predominante. Essa mudança afetou o pai individual, tornando-o inseguro e incerto de seu papel na família, deixando às decisões à mãe, assim fortalecendo fatalmente seu animus.
Heydt, 1979, p. 156
Podemos inferir que, em virtude do esvaziamento de sua função dentro dos lares, há também certo esvaziamento da experiência da vivência do pai arquetípico luminoso na cultura, causando sintomas desagradáveis – o que não consegue ser compensado pela atuação do pai pessoal.
Há que se ressaltar que o pai possui um papel ao mesmo tempo que representante do pai pessoal o é também uma estrutura arquetípica, que tem como função primordial retirar o indivíduo de sua situação natural de inconsciência. Por isso, mesmo que não tenha um pai individual, a pessoa possui o tipo pai em sua base. Nas palavras de Jung,
a criança possui um sistema herdado que antecipa a existência dos pais e sua possível influência sobre ela. Em outras palavras, atrás do pai existe o arquétipo do pai e neste tipo preexistente está o segredo do poder paterno, a exemplo da força que leva o pássaro a migrar. Esta força não é produzida por ele, mas provém dos antepassados.
Jung, 2013a, p. §739
A título de exemplo da manifestação da paternidade sombria temos o recente dado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, referente a 2022, que revela que no Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos (https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos). Vê-se que é um fenômeno geral e particular concomitantemente, que nos evocou alguns questionamentos: Qual o papel do pai na psique? O que acontece quando o pai é ausente ou insuficiente? Qual o reflexo da sua ausência na vida das filhas, em especial nos relacionamentos amorosos?
A tais perguntas pretendemos tecer breves considerações, aprofundando um pouco no que tange o reflexo da ausência do pai na vida das filhas.
Qual o papel do pai na psique?
Segundo Jung, podemos citar 3 papéis simbólicos principais para o pai: função mediadora e de orientação; ele representa o princípio do logos na psique; e ele dá estrutura à consciência.
A função mediadora do pai significa que ele representa o princípio que introduz a criança no mundo da cultura, da lei e da ordem simbólica, bem como atua como mediador entre mãe e criança, de forma e romper a fusão inicial existente entre eles. Em suas palavras:
O pai representa o mundo das ordens e proibições morais (…). O pai é o representante do espírito que se opõe à impulsividade, impedindo-a. É este seu papel arquetípico, que lhe cabe inexoravelmente, sem interferir em suas demais qualidades pessoais.
JUNG G. C., 2013b
Além do papel ordenador e mediador, o pai representa o logos a função que introduz direção, consciência discriminativa dos opostos:
Não existe consciência sem diferenciação de opostos. É o princípio paterno do Logos que, em luta interminável, se desvencilha do calor e da escuridão primordiais do colo materno, ou seja, da inconsciência.
JUNG, 2016, §178
Como terceiro papel, o pai simbólico dá estrutura à consciência, possibilitando que a criança desenvolva com maior firmeza o ego, seu sentido de orientação e acesso a instâncias superiores da psique, como o espírito e o Self. Na falta dessa função, a consciência tende a permanecer mais enredada nos conteúdos inconscientes maternos, dificultando a individuação.
O que acontece quando o pai é ausente ou insuficiente?
Primeiramente, deixemos claro aqui que estamos falando da imagem de pai que cada indivíduo tem, do pai internalizado, não no pai real. Tratamos, portanto, do pai interno que, de forma luminosa, castra, diz “não”, que separa, que estrutura a psique, que permite que o ego emerja do inconsciente indiferenciado, ambiente nato do arquétipo materno. Sem essa função, a psique permanece envolta numa névoa simbiótica, onde ainda se está no mundo da mãe, dominada por afetos indistintos, fantasias arcaicas, um eterno presente sem forma.
Quando o pai real é suficientemente bom, na forma do que Winnicott dispõe, ele encarna esse princípio como função, permitindo que a criança internalize uma estrutura que a ajude a se orientar no mundo, constituindo o chamado complexo paterno positivo. Contudo, como dito anteriormente, grande parte das crianças brasileiras não possui figura paterna que atenda a ideia de suficiência, formando um vácuo que abre espaço para o complexo paterno negativo, constituindo os indivíduos que Seligman (1982) chama de “meio-vivos”, que são aqueles em que esse princípio parece não ter sido incorporado, ou foi incorporado de forma fraca, parcial, distorcida.
O resultado é uma psique sem eixo. Não há um centro forte, uma identidade sólida, um espaço interno onde a experiência possa ser metabolizada (Eliade, 2018). O indivíduo pode viver desempenhando papéis, adaptando-se, mas sem raiz ou direção. Nas palavras de Alberto Pereira Filho,
(…) a ausência de um representante do pai é danosa para a personalidade: se faltam regras e limites, o filho se dilui no lugar de se relacionar com o mundo; invade-o, ou se deixa invadir por ele. Ou ainda, em outro extremo, torna-se rígido, uma vez que a prontidão psíquica para a constelação do arquétipo paterno se incumbe de preencher lacunas da consciência com a massa bruta do arquétipo a ser ativado.
Lima Filho, 2002, p. 69
Quando o pai se faz ausente pode haver uma falha na formação da sua imagem; e se não há um outro representante que faça esse papel, pode ocorrer uma carência na estruturação do cosmos no caos (Eliade, 2018), da separação do indivíduo do mundo materno para o exterior. Pode haver uma falha de contorno, gerando os “meio-vivos”, pessoas que apesar de funcionais, não se sabem como existentes, como donas de vontade, autônomas e conscientes de si.
Qual o reflexo da ausência da figura do pai na vida das filhas, em especial nos relacionamentos amorosos?
A condição de “meio-vivo” é particularmente comum entre mulheres criadas em famílias onde o pai era ausente e a mãe sobrecarregada. Mas não se limita ao feminino. Homens também podem ser “meio-vivos” — especialmente aqueles criados em lares caóticos, sem figuras masculinas afirmativas. Nesses casos, o homem pode crescer com uma aparência de força — musculosa, racional, ambiciosa — mas por dentro, vazio, inseguro, desconectado. Contudo, no caso das meninas a situação é agravada, pois uma vez identificada biologicamente com a mãe, o seu mundo infantil fica destituído da imagem do diferente, do outro, da alteridade.
Quando não há uma figura paterna, mãe e filho estão voltados um para o outro, como no ato da amamentação (Lima Filho, 2002) . Ou seja, é um sistema fechado, marcado pela mutualidade, característica da participação mística, que significa falta de fronteiras psíquicas. Já na situação em que há a figura do pai presente, ele surge como um terceiro elemento, entre a mãe e o filho/a, apontando para a futuro, formando um sistema aberto ou relativamente aberto.
Vê-se, portanto, um papel fundamental da figura paterna na estruturação da psique humana. Quando essa figura está ausente — seja física, emocional ou simbolicamente — cria-se um vácuo afetivo que compromete a organização da personalidade. A filha não sai do ambiente materno por não ter uma referência de pai ou tê-la de forma incipiente para sair da casa psíquica da mãe, prejudicando a formação da existência do outro em si mesma.
Muitas mulheres, como as pacientes descritas no último livro de Schwartz (2025), relatam relações amorosas com parceiros emocionalmente indisponíveis, frios, críticos ou distantes.
Essa escolha, embora inconsciente, parece uma tentativa de recriar o cenário emocional da infância, numa esperança inconsciente de resolver, desta vez, o abandono do pai original. No entanto, a repetição do padrão não as salvas, mas repete a ferida inicial.
Projeta-se nos parceiros amorosos o desejo não atendido pela relação com o pai, de ser amada, reconhecida e validada incondicionalmente, criando vínculos de dependência emocional, idealização ou submissão. Como observa Schwartz, a ausência de um olhar amoroso paterno muitas vezes resulta numa filha que busca, incessantemente, um parceiro que finalmente a veja.
A autora afirma que:
A falta emocional e física, e a tristeza consequente, afetam o reino imaginário e a entrada simbólica precoce que a criança não consegue nomear o que perdeu nem o que lamenta ter perdido. (…) a presença paterna e experiência de ser vista ou ressoar com algo era quase completamente estéril e, posteriormente, vivenciou o mundo como algo que lhe oferecia pouco.
Schwartz, 2025
A ausência do pai ou sua presença incipiente exibe, na verdade, a marca da presença de uma ausência, o complexo paterno negativo, que se dá quando a imagem do pai, carregada de rejeição, negligência ou ausência, se torna um núcleo autônomo na psique (complexo), influenciando emoções, pensamentos e comportamentos futuros. Schwartz descreve como muitas filhas internalizam mensagens de não merecimento, invisibilidade ou inadequação afetiva.
Isso pode levar a dois movimentos psíquicos nos relacionamentos amorosos, que são a busca compulsiva por aprovação masculina e/ou a evitação de intimidade.
Pelo primeiro, as mulheres se envolvem em relações com homens indisponíveis emocionalmente, na tentativa de provar o próprio valor e “conquistar” o amor negado na infância; pelo segundo, se protegem da repetição da dor, rejeitando relações profundas, mantendo-se emocionalmente distantes ou escolhendo parceiros com os quais não haja real envolvimento.
Um outro aspecto levantado pela autora como efeito da ausência do pai para a vida das filhas é o desenvolvimento de uma vida emocional “como se”, que se manifesta nos relacionamentos amorosos quando as mulheres aparentam ter uma vida afetiva normal, estando em casamentos, namoros ou parcerias – mas que internamente vivem uma desconexão emocional profunda. O que ocorre, na verdade, é que elas interpretam papéis (persona): a namorada perfeita, a esposa dedicada, a amante compreensiva. No entanto, em seus relatos mais íntimos, como os casos clínicos descritos por Schwartz, surgem sentimentos de vazio, falta de autenticidade e uma sensação de que estão vivendo uma “vida provisória”.
Muitas não conseguem se sentir verdadeiramente vistas, amadas ou valorizadas pelo parceiro. Esse afastamento emocional ecoa, mais uma vez, a distância original vivida com o pai.
Por fim, um último efeito que ocorre para as filhas de pai ausente, é o “desejo não elaborado”, pelo qual a filha que não foi vista não consegue escolher, mesmo podendo fazê-lo. Trata-se de uma mistura de fome de afeto com medo do abandono, podendo levar a vínculos marcados por ambivalência: ora carência extrema, ora frieza defensiva. A mulher deseja o outro, mas teme que esse outro a abandone, tal como o pai fez.
Susan Schwartz propõe para que as filhas que tenham o efeito negativo da ausência do pai rompam com o padrão negativo de seus relacionamentos amorosos que entrem em contato com a dor da ausência paterna, reconhecendo e elaborando o luto por aquilo que não foi vivido. O trabalho terapêutico de confronto dos complexos paternos inconscientes e a ressignificação de suas relações com o masculino podem auxiliar e muito a suavização dos sintomas.
A conexão com a figura do pai interno saudável, (uma vez que todos temos o arquétipo paterno em potência, tanto em sua luz como em sua sombra) – mesmo que o pai real tenha sido ausente ou negligente – é essencial para que a mulher possa estabelecer vínculos amorosos mais autênticos, com limites claros e com maior capacidade de receber e dar afeto de forma equilibrada.
Faz parte do processo de individuação: a mulher, ao tomar consciência da sua história emocional, pode deixar de buscar no outro aquilo que o pai não pôde dar, diminuindo a projeção de suas feridas, abrindo espaço para relações verdadeiras, não baseadas na repetição da ausência.
Marta Guedes – Membro Analista em formação IJEP
Ana Paula Maluf – Membro Analista Didata IJEP
Bibliografia:
Eliade, M. (2018). O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: WMF Martins Fontes.
Fundação Getúlio Vargas (2023). No Brasil, 11 milhões de mulheres criam sozinhas os filhos. Agência Brasil. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-08/no-brasil-11-milhoes-de-mulheres-criam-sozinhas-os-filhos.
Jung, C. G. (2011). Freud e a Psicanálise. Obras Completas, v. IV. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2013a). Freud e a Psicanálise. Petrópolis, RJ.
JUNG, G. C. (2013b). Símbolos da Transformação: análise dos prelúdios de uma esquizofrenia. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2013c). Tipos Psicológicos. Obras Completas, v. VI. Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2016). Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Obras Completas, v. IX/1. Petrópolis: Vozes.
Lima Filho, A. (2002). O pai e a psique (1 ed.). São Paulo: Paulus.
Schwartz, S. (2025). A Jungian exploration of the puella archetype: girl unfolding (1 ed.). New York: Routledge.
Seligman, E. (1982). The Half-Alive Ones. Journal of Analytical Psychology, 1-20.
Heydt, Vera von der. O pai na psicoterapia. In: Vitale…, et al. (1979). Pais e mães: seis estudos sobre o fundamento arquetípico da psicologia da família. São Paulo: Símbolo.