Ou se tem chuva e não se tem sol, ou se tem sol e não se tem chuva!
Ou se calça a luva e não se põe o anel, ou se põe o anel e não se calça a luva!
Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.
É uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo nos dois lugares!
Ou guardo o dinheiro e não compro o doce, ou compro o doce e gasto o dinheiro.
Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo… e vivo escolhendo o dia inteiro!
Não sei se brinco, não sei se estudo, se saio correndo ou fico tranquilo.
Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.
(Cecília Meireles, 1990)
O poema Ou Isto ou Aquilo, publicado por Cecília Meireles pela primeira vez em 1964, escrito para o público infantil, enfatiza a dificuldade de nós realizarmos escolhas. É um lindo poema! Sob meu ponto de vista, a autora trouxe reflexões que auxiliam a criança na compreensão de que nem tudo é possível e que precisamos fazer escolhas. A partir do processo criativo da autora, inspirei-me para ampliação do que nos é proporcionado além da beleza dos seus versos. Convido-os para refletirmos sobre um aspecto presente no poema – fazermos escolhas – que envolve energia psíquica. Neste sentido, vale a pena olharmos para o que está inserido na mensagem do texto e em que isto implica. De fato, no dia a dia temos que tomar decisões que contribuem com a nossa rotina, porém precisamos estar atentos como isto se estabelece em nós, se é algo que gera conflitos e envolve um processo muito dolorido ou se conseguimos lidar harmoniosamente com estas questões no nosso entorno relacional. Algumas questões comparecem: Até que ponto culturalmente nos é transmitido que fazer escolhas é um processo dolorido que envolve isto ou aquilo? E vou além: Fazer escolhas pode ser uma oportunidade para transcendermos? Desde já apresento a saída criativa integradora, tão presente na teoria junguiana.
Quando éramos crianças, as escolhas marcaram presença de acordo com a nossa maturidade. Geralmente se voltaram para escolhas de brincadeiras e de pequenos afazeres, com a orientação dos adultos. Aos poucos, foram se estabelecendo como parte de nossas vidas, conforme o nosso desenvolvimento. A adolescência para muitos foi marcada por conflitos que envolveram os relacionamentos sociais, pois a autoafirmação e aceitação do grupo social estiveram em evidência nesta fase. E na vida adulta, as escolhas muitas vezes foram se transformando em verdadeiros dilemas. De uma forma geral, algumas escolhas são optativas, de acordo com o nosso interesse e nos causam bem estar. Ao mesmo tempo podem comparecer desafios intensos, que ocupam grande energia psíquica e muitas vezes são motivos para termos insônia, perdermos a vontade de nos alimentarmos ou excedermos no consumo de certos produtos, focarmos menos em questões importantes, ou seja, as escolhas podem interferir diretamente em todas as dimensões, alterando nossa harmonia e aos poucos se transformando em aspectos patológicos, como transtornos psíquicos e doenças físicas.
Segundo o minidicionário da língua portuguesa (BUENO, 2000, p. 311), escolher é selecionar, eleger ou preferir. Envolve manifestar preferência por algo ou por alguém e também fazer opção entre duas ou mais situações. São palavras que nos fazem lembrar de bifurcações ou forquilhas, que simbolicamente podem ser compreendidas como divisão ou separação de alguma coisa em dois ramos, dois braços ou duas direções. Ao mesmo tempo, podem representar uma passagem. Desta forma, para haver uma escolha bem feita nos aconselham ter sabedoria. De acordo com o senso comum, sabedoria envolve responsabilidade, valores, objetivos claros, ganhos e perdas, entre outros. Sabedoria também nos remete à mitologia, com as representações de Atena, na mitologia grega, Minerva, na mitologia romana e Snotra, na mitologia nórdica. De forma idêntica, o nome Sophia vem do grego e traduz habilidade, sabedoria, inteligência e que tem sapiência para transitar entre o bom, o belo e o verdadeiro.
Os versos de Cecília Meireles, que apresentei no início do texto, mostram-nos como as escolhas são necessárias e não escolher já é uma escolha, que vem ao encontro das palavras expressas por Waldemar Magaldi nas suas redes sociais: “Tudo que estamos fazendo, inclusive o não fazer, também está nos fazendo”. A frase me fez lembrar de Sartre, filósofo, escritor e crítico francês, representante do existencialismo – forma de perceber o indivíduo centrado na experiência, que pensa, sente e age – ao afirmar que temos um papel ativo na sociedade e cada escolha requer embasamento que nos dê suporte. Ele complementa, afirmando que não é possível não fazer escolhas, pois se não fizermos escolhas, mesmo assim estaremos escolhendo: “Separado do mundo e de minha essência por esse nada que sou, tenho de realizar o sentido do mundo e de minha essência: eu decido sozinho, injustificável e sem desculpas.” (SARTRE, 1998, p. 84). Ainda, para Sartre (1998), a angústia que sentimos diante da liberdade faz parte da realidade humana.
A sociedade consumista, incentiva-nos para sermos felizes o tempo todo, principalmente pelos seus meios midiáticos (jornal, rádio, internet, televisão, revistas, livros, entre outros). Somos levados a tomarmos decisões de acordo com o que é considerado aceitável para vivermos bem. Um exemplo típico é voltado ao uso de redes sociais online. Se não compartilharmos constantemente fotos e vídeos, com registros de que estamos em plena felicidade, muitas vezes nos sentimos fora dos padrões, que popularmente pode ser compreendido como sentir-se um peixe fora d´água. A partir disso, sentimo-nos obrigados a fazermos escolhas entre compartilhar ou deixar a rede social. Há uma tendência de tomarmos decisões doloridas a partir do que nos é imposto, mesmo que seja inconscientemente. De forma similar, podemos citar o exemplo das festas de final de ano, em que somos desafiados para promovermos reflexões, encontros e mudanças. E quem não consegue, sofre! Período em que escolhas obrigatoriamente vão tomando espaço e envolvem desafios como: onde será a confraternização, com quem, qual presente levar, o que vou mudar no próximo ano, etc. Não pretendo com estes questionamentos desmerecer os aspectos positivos que envolvem tais situações, mas chamo a atenção para os processos internos doloridos que comparecem nos consultórios de psicologia. Por outro lado, destacando aspectos que podem ser positivos, neste período nos permitimos entrar em contato com o nosso mundo interior, sensibilizando-nos com os menos favorecidos, indo ao encontro de familiares, fazendo as pazes com a nossa alma, estabelecendo metas para mudanças necessárias, entre outros. Adeus ano velho e feliz ano novo! Vida nova! Será? Deixar ir o velho para o novo entrar é um desafio para o ano inteiro e é envolvido por escolhas.
Para alguns, o “deixar ir” é tarefa árdua. De um modo geral, ouvimos do senso comum que a razão precisa prevalecer na hora de tomarmos decisões, como se a razão fosse uma função isolada. Há muito tempo Carl Gustav Jung, em seu livro Tipos Psicológicos, apresentou a teoria sobre as funções psicológicas da consciência (pensamento, sentimento, sensação e intuição), que são controladas pela vontade e também podem agir de forma autônoma. Elas atuam como pares de opostos e sempre haverá uma mais consciente e desenvolvida que a outra, interferindo em nossas escolhas, podendo gerar conflitos ou aspectos saudáveis. O que Jung (2013, par. 642), quis nos dizer é que algumas pessoas podem ter a função pensamento mais desenvolvida, que é orientada pelo objeto e pelos dados objetivos ou voltada ao mundo das ideias, porém ela não pode ser vista como a função mais importante. É necessário reconhecermos a importância das quatro funções e nos empenharmos em ressignificar a menos desenvolvida.
Outro aspecto importante é olharmos para as brincadeiras que comparecem em diferentes contextos, que trazem um sentido psicológico profundo ao tratarmos de escolhas. Quem já ouviu a frase: caso ou compro uma bicicleta? Em qualquer situação que coloco intensidade, existe uma situação oposta que é referência, de acordo com as experiências vividas. As Escolhas, música de Lulu Santos, reflete questionamentos acerca da temática:
Cada história nos diz
Algo sobre quem a contou
Não há um destino a cumprir
Toda a escolha diz quem eu sou.
(Lulu Santos, 2003)
Existem expressões idiomáticas do nosso cotidiano que incentivam as escolhas segundo um consenso. Quem nunca ouviu a frase pimenta nos olhos dos outros é refresco diante de situações de dificuldades? Geralmente é expressada quando recebemos conselhos de outra pessoa para fazermos algo que é considerado arriscado. A pressa é inimiga da perfeição é dita em momentos em que a paciência para conquistar algo entra em cena. Estas expressões nos fazem lembrar do espetáculo Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, do Grupo Opinião, que estreou há muito tempo (1966), permeado por humor e que trouxe reflexões para desconstruir normas de conduta, valores burgueses e regras sociais.
Da mesma forma, podemos refletir sobre a frase mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Analogicamente, ter dois pássaros voando pode ser uma oportunidade rica de olhar uma situação de outro modo, que nos lembra a operação alquímica sublimatio (EDINGER, 1990, p. 135) em que um sólido é aquecido e entra no estado gasoso, tomando a direção do alto. Sublimação vem do latim sublimis, simbolizando algo elevado, pertencente ao ar e permite o distanciamento das emoções para posteriormente concretizarmos algo novo. A sociedade nos incentiva a focar em uma coisa de cada vez. Como se isso fosse possível, como se tudo fosse isolado, sem interferências. Vale lembrar que influenciamos e somos influenciados o tempo inteiro. A expressão citada também nos faz lembrar de quem tudo quer, nada tem. Será? Depende muito da forma que queremos e o que fazemos para alcançar os objetivos. Os sonhos fazem parte da vida e nos incentivam para a realização, que é bem diferente de cobiçar coisas alheias e permanecermos na inércia.
Encontramo-nos constantemente diante de crenças transmitidas por várias gerações, que nos induzem a fazer escolhas, nem sempre são de acordo com o espírito das profundezas. Somos incentivados a abrir mão daquilo que queremos em nome de outra coisa que faz parte da nossa vida. De forma idêntica, constantemente ouvimos que é preciso sacrificar algo para conseguir outra coisa e sempre vamos perder aquilo que não foi escolhido. Sob esse olhar, fica evidente que escolher é sinônimo de sofrer e que não podemos ter tudo o que queremos. Podemos notar que estas crenças apresentam as escolhas permeadas com dificuldades, sendo vistas de forma negativa, radical ou algo sem saída. Até que ponto essas crenças são limitantes e nos prejudicam sem percebermos? E podem ser geradoras de estados depressivos! Muitas vezes a depressão é vista como algo doentio que só pode ser curado com o uso de medicação. No entanto, não podemos esquecer que problemas são importantes para entrarmos em contato com a dor, encontrarmos saídas criativas para transformarmos o que não está bom e harmonizarmos esses aspectos. Escolhas podem ser caminhos interessantes a serem percorridos.
Fernando Pessoa, com o seu poema Qualquer caminho leva a toda a parte, instiga-nos para outros olhares:
Qualquer caminho leva a toda a parte.
Qualquer ponto é o centro do infinito (…)
O caminho é de âmbito maior
Que a aparência visível do que está fora,
Excede de todos nós o exterior
Não para como as coisas, nem tem hora.
Ciência? Consciência? Pó que a estrada deixa
E é a própria estrada, sem a estrada ser.
(Fernando Pessoa, 1990)
Um dos caminhos para promovermos escolhas saudáveis é o autoconhecimento. Existem várias formas para nos conhecermos mais e uma delas é por meio da ampliação dos sonhos, que possibilita trazer o inconsciente à luz da consciência. Para tanto, os sonhos sonhados durante o sono são reveladores com seus conteúdos inconscientes. De acordo com Jung, os sonhos geralmente são compensatórios, porém a função pedagógica, uma das três funções do sonho, pode nos trazer respostas interessantes para aquilo que buscamos. Ao mesmo tempo, pode nos incentivar a olharmos para dentro de nós e ouvirmos o que de fato é importante, sem nos preocuparmos com julgamentos que nos levam ao isolamento, tornando-nos cada vez mais “ilhas”. Segundo Jung, “somos ainda tão pouco educados que precisamos de leis de fora e um mestre de disciplina, respectivamente um pai, para sabermos o que é bom e para podermos agir corretamente” (JUNG, 2013, vol.6, par.400). Podemos escolher o nosso caminho, como sugere o poeta Manoel de Barros: “Quem anda no trilho é trem de ferro, sou água que corre entre pedras: liberdade caça jeito.” (BARROS, M., 2001, p.32). A liberdade de escolher gera angústia, porém podemos olhar para isso de uma forma diferente, ver como possibilidade de transformar algo que não tinha sentido em nossas vidas.
Caixinhas é o nome que utilizo simbolicamente para traduzir as situações do dia a dia que nos aprisionam, limitam-nos e atravessam-nos o tempo inteiro. Quem está dentro delas quer sair e quem está fora e precisa entrar, sente muita dificuldade de se ajustar. O lado bom é que não precisamos ficar nelas. Podemos fazer escolhas saudáveis e elas vêm ao encontro do que Jung nos deixou como teoria, que propõe a integração de polaridades. A enantiodromia é este movimento pendular sempre presente, que está em todos os lugares e pode ser entendida como um processo de compensação energética da psique, envolvendo a libido. Sempre há dois lados! Da mesma forma, pode ser uma possibilidade criativa de repensarmos novas adaptações. Como disse Jung: “O problema dos opostos como princípio inerente à natureza humana constitui uma etapa a mais no desenvolvimento do nosso processo de autoconhecimento” (2013, v. 7/1, par. 88). Pode ser uma oportunidade e promovermos mudanças significativas.
Temáticas atuais envolvem o respeito às diversidades e temos a sensação de que há menos tolerância com as diferentes escolhas. É mais fácil eliminar o que não nos agrada do que lidarmos com as escolhas individuais e grupais. O modo de olharmos para a situação promove toda a diferença. O que é certo para uns é errado para outros, que pode ser visto como oportunidade de crescimento e integração de novos valores. É interessante lembrarmos que grandes teorias e as suas comprovações surgiram da repetição de erros e acertos, envolvendo várias tentativas de integrar elementos, que nos lembra a opus alquímica. O que seria da ciência se não houvesse possibilidade de inúmeras tentativas para o alcance do resultado almejado?
Diante das nossas escolhas, que podem envolver o que queremos e o que os outros esperam de nós, a forma unilateral e intensa de nos fixarmos em um dos lados da situação gera angústia e pode se transformar em aspecto patológico. Geralmente refletem padrões estabelecidos – as famosas caixinhas – em que precisamos entrar e nos ajustarmos. É importante percebermos que algumas vezes podemos transitar nelas, mas não precisamos permanecer ali. Apenas passar para perceber o outro lado da situação, não sendo necessário envolver um processo radical de isto ou aquilo. Ao promovermos o autoconhecimento, a dor pode se manifestar, mas não precisa ficar. Ela pode ser ressignificada e se transformar em aspecto saudável, a partir do momento em que nos permitimos olhar para polaridades opostas, ampliá-las, percebermos possibilidades de integrações e, consequentemente transcendermos a partir de saídas criativas.
Claci Maria Strieder – Analista em Formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi Filho – Analista Didata
Fontes de Consulta:
BARROS, M. Matéria e poesia. Rio de Janeiro: Record, 2001, p.32.
BUENO, S. Minidicionário da língua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000.
EDINGER, E. Anatomia da psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo: Cultrix, 2006.
JUNG, C. G. Psicologia do inconsciente. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
__________ Psicologia e alquimia. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
__________ Tipos psicológicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
MEIRELES, Cecília. Ou isto ou aquilo, Editora Nova Fronteira. Rio de Janeiro, 1990.
PESSOA, F. Pessoa por conhecer – Textos para um Novo Mapa. Teresa Rita Lopes. Lisboa: Estampa, 1990.
SANTOS, L. As escolhas. Álbum: Bugalu. BMG Brasil, 2003.
SARTRE, J. P. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. 6 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.