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Relacionamentos afetivos e sexualidade: expressão e contenção do amor

Complexa é a humanidade e complexos são os relacionamentos afetivos e sexuais, razão pela qual não podemos compreendê-los sob um único enfoque.  De um modo geral, a sexualidade pode ser compreendida sob quatro critérios: biológico, sociocultural, psicológico e espiritual. Segundo Cavalcante & Cavalcante (2006), no aspecto biológico, o indivíduo pode ser considerado disfuncional se as diferentes reações fisiológicas estão bloqueadas. O conceito de desvio reflete o pensamento num grupo cultural e em determinado momento, levando em consideração que a sociedade é dinâmica, sendo que o “normal” hoje, pode não ser mais amanhã, portanto reflete o olhar sociocultural. No aspecto psicológico, entra em cena a adequação, envolvendo a visão particular de cada um sobre a satisfação do seu comportamento sexual e com a do seu parceiro. As disfunções, os desvios e as inadequações, independente da identidade de gênero ou da orientação sexual, podem ser compreendidas e ressignificadas, para que influenciem de forma saudável nos relacionamentos. Carl Gustav Jung, contribui significativamente com sua teoria para compreensão do critério espiritual ao afirmar que ele está relacionado ao transcendente da alma, que envolve a ampliação da consciência para tornar-se si mesmo, permitindo o encontro do ego com o Self. Segundo o autor, “vivemos protegidos por nossas muralhas racionalistas contra a eternidade da natureza” (2013, v. 8/2, par. 739) e, podemos romper com as muralhas que nos separam da natureza que há em nós. 

            O mundo contemporâneo é marcado pelo patriarcado e os meios cultural e social interferem na nossa formação. Durante muito tempo, nascer homem ou mulher fez a diferença. As famílias torciam para que o primeiro filho do casal fosse do sexo masculino e, ao nascer uma menina, alguns homens diziam “ter fraquejado”. E assim se propagou uma jornada de uma cultura machista, que incentivou o rapaz “ser pegador”, em busca de prazer e, a moça “preservada” até o casamento e sem permissão para sentir prazer.  Neste sentido, a interferência da religião e da tradição foi grande, disseminando a ideia de castigo e de culpa da mulher. Com o nascimento dos filhos, também se preservava a continuidade da espécie e da família, lugar sagrado com uniões indissolúveis, apesar de para alguns representar sofrimento, até a separação por morte física. Da mesma forma, muitos valores enaltecedores foram transmitidos pelo inconsciente coletivo. Essas vivências fazem parte da nossa transgeracionalidade, em forma de heranças arquetípicas nas diferentes dimensões e que aos poucos mudam de configuração. 

            De um modo geral, ao falarmos de sexualidade podemos percorrer um caminho longo, que começa na infância. Pesquisadores nos mostram que o bebê, na fase oral em que leva tudo à boca, sente-se no paraíso ao sugar o leite da mãe.  A criança, conforme vai crescendo, amplia sua capacidade de percepções, desperta para as sensações prazerosas, principalmente no controle do esfíncter anal e genital, tornando-se cada vez mais curiosa. Na puberdade, com uma carga hormonal intensa, a menina vivencia a menarca e o menino a ejaculação. Os adolescentes, fisicamente com o corpo pronto para serem inseridos no mundo adulto, geralmente têm suas primeiras experiências sexuais, dentro ou fora de relacionamentos amorosos. Alguns adultos vivem a sexualidade livremente ou optam em estabelecerem vínculos familiares, escolhendo a vida conjugal e a procriação. Já na metade da vida, além da vivência sexual, surgem as experiências com o climatério e andropausa, que podem ser brandas ou intensas. Na velhice, ocorrem muitas transformações, porém nada impede que a sexualidade seja vivida, pois ela nos acompanha vida afora, com momentos de ascensão e declínio, envolvendo o amor e as diferentes formas de amar. Neste sentido, o amor se expressa em canções, poemas, presentes e presenças. Quem não se encanta com Marisa Monte, expressando a grandeza do amor em Amor I Love You?  Com leveza de alma, ela canta: “Deixa eu dizer que te amo, deixa eu pensar em você, isso me acalma, me acolhe a alma, isso me ajuda a viver”. Igualmente, o cantor Roberto Carlos, encantando multidões com a música Como é Grande o Meu Amor Por Você. Da mesma forma, Carlos Drummond de Andrade, exaltou o amor em versos: “O mundo é grande e cabe nesta janela sobre o mar. O mar é grande e cabe na cama e no colchão de amar. O amor é grande e cabe no breve espaço de beijar”.

            Alguns estudiosos em relacionamentos, afirmam que as diferenças cerebrais explicam tantas divergências. John Gray, no livro Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus, trouxe a ideia de que os homens só utilizam um hemisfério cerebral ao executarem atividades, fazendo uma coisa de cada vez e, as mulheres conseguem utilizar os dois lados, tendo a capacidade de exercerem várias atividades ao mesmo tempo. Algumas dessas características aparecem em situações corriqueiras. A neurociência, por sua vez, apresenta-nos estudos sobre a diferença de conexões que ocorrem no cérebro de homens e mulheres, alertando-nos de que as diferenças anatômicas não são determinantes e também não são suficientes para explicar as diferenças de comportamento, que em grande parte se devem à influência cultural. Jung contribuiu com estudos e limitou-se a tratar do casamento como problema psicológico: “Como relacionamento psíquico o matrimônio é algo de complicado, sendo constituído por uma série de dados subjetivos e objetivos que em parte são de natureza muito heterogênea” (2013, p.324).  Cientificamente comprovadas ou não, sabemos que as diferenças existem e interferem nos relacionamentos.        

            Existem diferentes tipos de amor e os mais conhecidos são três: Philos, Eros e Ágape. O Amor Philos é um amor fraternal, é um sentimento de simpatia natural, afinidade mental e cultural com os amigos e familiares. O Amor Eros expressa o amor com paixão e romantismo, podendo envolver o desejo passional, sensual e sexual, que é estimulado e vivenciado em diferentes produções criativas: filmes, poesias, músicas e obras de arte (Magaldi Filho, 2014, p. 73-74).  A mitologia traz Eros, o anjo da paixão e das afinidades, disparando flechas que incendeiam o coração dos amantes. E Roupa Nova, com a música Todo Azul do Mar, traduziu esse romantismo: “Foi assim como ver o mar, a primeira vez que meus olhos se viram no seu olhar… Quando eu mergulhei, no azul do mar, sabia que era amor e vinha pra ficar”. Finalmente, o Amor Ágape é desinteressado, puro, genuíno e invencível. É divino, elevado, transcende os sentidos humanos. É aquele que “tudo sofre, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13:4-7). Essa forma de amar vem ao encontro dos versos de Fernando Pessoa: “Amo como o amor ama. Não sei razão pra amar-te mais que amar-te. Que queres que te diga mais que te amo, se o que quero dizer-te é que te amo?” Pensando no aspecto alquímico dos relacionamentos, podemos imaginar que o ideal é harmonizar os três tipos de amor. Uma dose de cada um e na medida certa, torna a experiência do amor em plenitude.

            Diante do sofrimento instaurado a partir de crenças enraizadas, principalmente pela dificuldade em compreendermos as diferenças existentes entre o masculino e feminino, idealizamos um Amor Maior, como cantado por Jota Quest: “É preciso amar direito (…) Amor de dentro pra fora, amor que eu desconheço”. Para indivíduos centrados no ego, a contenção do amor ocupa grande espaço, acreditando que amar é sinônimo de fraqueza e falta de controle. E como se fosse possível controlarmos alguma coisa… Vindo ao encontro, Clarice Lispector nos traduziu em forma de poesia sua profundeza de alma: “Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento”. Para alguns, esse amor nem sempre é possível, com vivências de solidão e dificuldades para encontrarem parceiros que queiram estabelecer relações duradouras, pois foram incentivadas a resolverem seus problemas sozinhos e não desenvolveram a troca, tão necessária na conjugalidade. Essas questões nos permitem pensar na influência do meio social nas relações afetivas, como trouxe Féres-Carneiro (1987), afirmando que a nossa autonomia é incentivada desde cedo, com estímulos para alcançarmos a nossa independência, ouvindo frases como:  Faça você! Você constrói seu caminho! Desta forma, os homens são incentivados para serem especialistas nas técnicas de sedução e conquista e, apresentam dificuldades na intimidade com o mundo feminino. As mulheres, apesar da emancipação e da autonomia feminina, conservam o amor romântico, que está fragmentado e, continuam em busca da alma gêmea. Já não prevalecem “para sempre e único”, da mesma forma a entrega total do outro está comprometida com idealizações nem sempre atingíveis. 

            Segundo Magaldi Filho, a evolução cíclica da mulher estimula a evolução do homem, processo em que o feminino instiga o masculino. O que a mulher busca no homem? O herói que vai salvá-la de algo, o pai que vai protegê-la, o filho que poderá cuidar e o sábio que era unificar os três homens anteriores. O que o homem busca na mulher? A Eva, atraente e sensual, a Maria que irá proporcionar um lar, a Helena que está ao seu lado para o que der e vier e a Sofia, a sábia que irá coordenar as três anteriores. (2014, p. 186-187). Ainda, de acordo com o autor, a evolução tem como base a alteridade que deve incluir o princípio feminino, renegado por muitos anos pelo patriarcado. A mulher sábia transita entre o bom, o belo e o verdadeiro e isso pode assustar o homem: “A mulher tem mais facilidade para lidar com sua feminilidade (…) Ela muda, agrada e acolhe (o útero acolhe). Em contrapartida, o homem assusta-se: o masculino é assustado e a amedrontado. Por isso, o homem divide, agride e foge” (2014, p. 188). A alquimia do amor envolve a compreensão das diferenças que existem e a expressão do que sentimos, que potencializa o que une o universo masculino e feminino.

            A história nos mostra os ideais de casamento em diferentes épocas. No passado, o casamento tinha a função de ligar duas famílias e permitir que elas se perpetuassem. No séc. XVIII, surgiu um novo ideal de casamento: que os cônjuges se amassem. Hoje, é raro pessoas casarem sem desejo e amor. As mulheres em geral procuram mais por uma relação amorosa e os homens almejam constituir uma família. No início da relação, na hora da conquista, mostramos o melhor de nós, mas os conflitos aparecem na convivência:  a sobrecarga de um e a folga do outro, investimentos errados, objetos fora do lugar, problemas de saúde, sexo extraconjugal, excesso de bebidas, as dificuldades financeiras, entre outros. Igualmente, a rotina e o cansaço passam a ocupar o espaço da criatividade e os cuidados conosco e com o outro não são mais os mesmos. Passamos a sentir necessidade de termos o nosso espaço e deixamos de investir no outro e na relação. No consultório, utilizo o exemplo simbólico da bolinha de neve, que vai rolando morro abaixo, aumentando de tamanho e ao bater em algo, causa impacto e destruição. E o que fazer para evitar a destruição do relacionamento? A utilização da comunicação assertiva é uma saída. É um caminho mais longo, porém geralmente mais eficaz. Ela envolve paciência, habilidade e escolhas. Ao mesmo tempo, é manifestação de respeito, carinho e amor, tão necessários nos relacionamentos. 

            Difícil falar e citar uma regra geral para tanta complexidade. Assim como cada ser humano, cada história é única. E como trabalhar relações desgastadas? Trabalhando cada caso em particular ou com a psicoterapia de casal, momento em que os conflitos que permeiam controle, cobrança, comparação, culpa e castigo, podem ser integrados. O mundo virtual também nos oferece muitos recursos para aprimorarmos nossa performance sexual. Basta clicarmos e nos deparamos com muitas informações que podem ser funcionais ou não. Vários produtos são oferecidos pelo Sex Shop, que auxiliam no aumento da libido, mas o problema pode ser mais complexo: não reagimos só pelo instinto, necessitamos de essência, somos seres integrais! Ginecologistas e urologistas devem fazer parte da nossa vida. De forma idêntica, o psicólogo e o terapeuta sexual têm um papel fundamental para nos auxiliar na promoção do autoconhecimento e na vivência conjugal. 

            É nítido que o governo, a religião e a família continuam despreparadas, transmitindo uma visão distorcida da sexualidade saudável. Os tempos mudaram, as possibilidades de vivermos a nossa vida sexual também, porém os valores transmitidos de geração em geração se perpetuam negativamente em algumas sociedades, a ponto de ainda ser comum homem bater em mulher e, consequentemente muitos enquadrados na Lei Maria da Penha. Enquanto isso, muitas mulheres ainda permanecem em silêncio, são violentadas, abusadas e mortas, índice comprovado pelas estatísticas. O sentimento de culpa por parte da mulher e posse por parte do homem prevalecem, sendo comum ouvirmos de quem comete tais crimes “se não for minha, não será de mais ninguém”. Mata-se em nome do amor! Paixão patológica, disfarçada de amor, que invade e domina, causadora de muito sofrimento. Neste contexto, homens também são agredidos e os índices de violência para com eles estão aumentando gradativamente. 

            Com o surgimento dos conflitos, percebem-se diferentes investimentos para dar um novo sentido e significado às crises oriundas da convivência. Permanecer juntos “até que a morte os separe” é o que que se ouve nas cerimônias de casamento. E quantas mortes ocorrem, antes da morte física. Morte do encantamento, da confiança e de sonhar juntos! Em alguns casos, mantêm-se o casamento para não abalar o desenvolvimento emocional dos filhos, sendo que evitar brigas constantes e não conviver na mesma casa, faria menos mal para eles. É desafiador conjugar duas individualidades, assumir regras que envolvem um sistema de trocas, manter a relação prazerosa e útil. Quando o encantamento acaba, a relação acaba. Um indivíduo é a extensão do outro, ao mesmo tempo é diferenciado do outro. Cada um precisa ter seu espaço e o relacionamento precisa corresponder às expectativas de cada um dos envolvidos. De acordo com a autora Maria Helena M. Guerra, Jung também se confrontou com as dores do amor: “Por um lado, a necessidade de ser fiel ao que vivia, às suas emoções e aos seus sentimentos; por outro, o desejo de permanecer adaptado à sociedade, de manter sua persona, de reconhecer-se como sempre fora, valorizando a razão, a coerência, a ciência e acreditando ter o domínio de sua alma. Esta foi a grande tensão, o jogo de forças entre o espírito das profundezas e o espírito da época. (2011, p. 60). 

            Conviver gera crises e quando esgotam as possibilidades de harmonia, a separação é a melhor solução, podendo ter efeitos positivos, como a ressignificação dos padrões de relacionamento. É dolorido ver o outro morrer em vida dentro de nós e nós morrermos no outro. São escolhas doloridas, que envolvem um antagonismo e um processo de luto a ser elaborado, ao mesmo tempo que as funções parentais devem ser asseguradas e mantidas. Hoje, deparamo-nos com a elevação do grau de exigências nos relacionamentos afetivos e na vivência da sexualidade, que conjuga o prazer e a procriação. Como vivemos cercados de muitas opções, as relações também se tornam descartáveis, principalmente com a falta de confiança, paciência e persistência. É necessário transitarmos também na dimensão espiritual, qualificarmos as relações e potencializarmos o que une.  Neste sentido, trago a fala de Rubem Alves: “Não haverá borboletas se a vida não passar por longas e silenciosas metamorfoses.” A convivência envolve silêncios e ruídos, que podem ser favoráveis à sua manutenção ou ao seu término. Relacionamentos envolvem a expressão do amor com ciclos saudáveis de prazer, simbolicamente representados pela integração do sol, da lua e do barulho da chuva. E na contenção do amor, perdemos essa preciosidade de vivermos a plenitude do amor. 

                   Claci Maria Strieder, analista em formação pelo Ijep. 

Leituras de apoio:

ALVES, Rubem https://citacoes.in/citacoes-de-vida/

ANDRADE, Carlos Drummond. Amar se aprende amando. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. 

BÍBLIA De Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.

BRANDÃO, J. – Mitologia Grega Vol. 1, Petrópolis: Vozes, 1986.

CAVALCANTI, R. & CAVALCANTI, M. Tratamento clínico das inadequações sexuais. 3. Ed. São Paulo: Roca, 2006. 

FÉRES-CARNEIRO, T. Aliança e Sexualidade no casamento e recasamento contemporâneo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 3, 250-261, Porto Alegre, 1987. 

 _____________ Casamento contemporâneo: o difícil convívio da individualidade com a conjugalidade. Psicologia: Reflexão e Crítica, vol.11, nº2. Porto Alegre, 1998. 

GRAY, John.  Orácúlo de Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus. 1ª Ed. São Paulo: Editora Pensamento, 2008.

GUERRA, Maria Helena R. M. O livro vermelho: o drama de amor de C. G. Jung. São Paulo: Linear B, 2011.

JUNG, C.G. A natureza da psique. 14ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.

__________ O desenvolvimento da personalidade. 14ª edição. Petrópolis: Vozes, 2013.

LISPECTOR, Clarice. Uma aprendizagem ou O Livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Editora Rocco, 1998

MAGALDI FILHO, Waldemar. Dinheiro, saúde e sagrado: interfaces culturais, econômicas e religiosas à luz da psicologia analítica. 2ª edição – São Paulo: Eleva Cultural, 2014. 

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo: Brasiliense, 1989. 

Claci Maria Strieder

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