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Sombras nas “Terapias Holísticas”

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Oficialmente no Brasil as terapias que não fazem parte do rol de terapia oficiais, rol este onde estão inclusas as práticas médicas e da psicoterapia, são chamadas oficialmente de terapias integrativas. Mas popularmente podemos também conhecê-las por terapias alternativas ou, o mais comum e normalmente preferência dos profissionais da área, terapias holísticas. Essas terapias envolvem desde práticas e técnicas milenares dos mais diversos lugares do globo — normalmente adaptadas para o uso local — quanto técnicas inventadas ou reinventadas a cada ano. Envolvem procedimentos energéticos, espirituais ou espíritas, das esferas dos campos mórficos, xamânicos, corporais, e por aí vai. Há uma variedade tão grande delas, que teríamos que lançar um trabalho enorme apenas para conseguir listá-las e descrevê-las. Mas este não é o meu propósito aqui.

Eu comecei a minha carreira terapêutica nesse que é chamado mundo holístico, e o meu propósito aqui talvez seja exatamente fazer algumas provocações sobre algumas questões que colaboraram enormemente para que eu, primeiramente, procurasse na psicologia analítica algumas respostas sobre o que intuitivamente me incomodava e, depois, que me ajudaram a decidir por sacrificar boa parte de minha já consolidada carreira prévia e a substituísse por uma incipiente possibilidade de carreira dentro dessa mesma psicologia analítica. 

Este artigo, portanto, tem a pretensão de, sem tentar anular os profundos trabalhos feitos por profissionais sérios e estudiosos que se comprometem a trabalhar em seus próprios processos internos, passear por duas sombras terapêuticas do mundo holístico.

Eu acho importante ressaltar que isso não significa que eu observei essas sombras em meus colegas de trabalho e por isso resolvi me afastar dessas atividades. Afirmar isso seria desonestidade ou, muito provavelmente, uma infantilidade projetiva que não me convém. Muito pelo contrário, algumas dessas sombras só se tornaram realmente claras quando eu, em minha jornada como analisando, as percebi de maneira dolorosa primeiramente em mim mesmo, para depois observá-las dançando livremente ao redor de uma parte dos consultórios, tendas, terreiros e espaços de atendimento que conheci e frequentei ao longo dos últimos anos.

Ademais, também não tenho a intenção de afirmar que o mundo das “terapias oficiais” está livre das sombras que aqui tentarei demonstrar — e de tantas outras. Afinal, como Adolf Guggenbühl-Craig afirma de maneira tão brilhante em sua obra Abuso de Poder na Psicoterapia, “nós, das profissões de ajuda, não ficaremos nunca livres do mal.” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 11) Ou, ainda,

“A sombra profissional do analista contém não apenas o charlatão e o falso profeta, mas também a contrapartida daquele que ilumina, ou seja, uma figura que vive imersa no inconsciente e visa sempre ao contrário do que conscientemente pretende o analista”. (GUGGENBÜHL-CRAIG, 2004, p. 33)

Questão 1: a inflação do ego, a negação da totalidade e o irmão tenebroso.

Em primeiro lugar, para conseguir expor meus apontamentos, precisamos relembrar um valioso ensinamento de Carl Gustav Jung sobre a atividade de compensação e autorregulação inconsciente, se contrapondo à tendência de unilateralização consciente.

[969] […] o inconsciente no estado atual de nossos conhecimentos tem uma função
compensadora 
em relação à consciência. […] (JUNG, 2018, p. 525)

[769] […] Este fenômeno automático é base essencial da
unilateralidade da orientação consciente. Levaria a uma completa perda
de equilíbrio se não houvesse na psique uma função autorreguladora,
compensadora (v.) que corrigisse a atitude consciente. Neste sentido, a
duplicidade da atitude é um fenômeno normal que só traz efeitos
perniciosos quando a unilateralidade consciente é excessiva. (JUNG, 2018, p. 434)

De uma maneira simples, isso significa que seja lá qual for a identificação consciente do indivíduo, no inconsciente existirá “outro eu”, com as características exatamente contrárias, em valor e força, àquelas conscientes. Ou, nas palavras do próprio Jung: “[51]  […] temos em algum lugar um irmão tenebroso e pavoroso, ou seja, o nosso contrário em pessoa, ligado a nós pelo sangue, que conserva tudo e maldosamente armazena o que gostaríamos que desaparecesse da nossa frente.” (JUNG, 2018, p. 50).

E dessa simples ideia junguiana vem a minha primeira questão relativa às terapias holísticas: muitos dos terapeutas e formadores que eu conheci não faziam um trabalho real de reconhecimento e integração desse “irmão tenebroso” inconsciente. Na verdade, muitos deles nem ao menos acreditavam nesse eu sombrio e, em uma inflação perigosa de ego, realmente acreditavam que eram apenas aquilo que desejam ser, seres de luz, voltados para o bem, sem qualquer ressalva real sobre si mesmos.

Eu pude presenciar, ainda, essa questão ser agravada em algumas terapias e formações com orientações que têm a tradição de “rebatizar” o indivíduo com um novo nome iniciático espiritual, como, por exemplo, algumas terapias baseadas em filosofias indianas, com seus novos nomes, chamados de sannyas. A ideia em si de um novo nome não me parece negativa. Sannyas, em sânscrito, significa, segundo vários sítios pela internet, citando o guru Osho “transformação pelo autoconhecimento”, ou, ainda, “um movimento em busca de viver a vida em sua totalidade, com mais consciência”. A intenção defendida é a de que o “eu do passado” simbolicamente morreu, e um outro eu, mais inteiro e mais presente no aqui e no agora nasceu. Ou seja, em tese, busca-se, com esse nome, atravessar um rito que traga força para que uma vida de autoconhecimento seja assumida, e isso realmente pode ser observado em alguns casos. Porém, em outros tantos casos, talvez pela falta de profundidade das rápidas e precárias formações ou do interesse financeiro distorcendo o real objetivo do rito, é fácil presenciar pessoas usando essa iniciação para simplesmente negar uma parte importante de si, humana, com falhas e necessidades de aprendizado. Ao assumirem um novo nome, empurram para as mais profundas partes sombrias de si todas aquelas características com as quais não desejam mais lidar. Não poucas vezes, eu já escutei algumas pessoas falarem frases do tipo “Não me chame mais de ‘fulano’, pois ele morreu, assim como tudo aquilo que ‘ele’ fez antes de receber meu novo nome”.

Somado a isso, ainda acho importante salientar que, em uma boa parte das formações, workshops e vivências pelas quais passei, esse “eu inconsciente” não era ao menos citado, cogitado ou apresentado teoricamente. Saíamos das formações devidamente certificados e autorizados para recebermos clientes com as mesmas diversas questões e demandas. Porém, perigosamente carregávamos a ideia de que poderíamos, apenas pela força de vontade, em uma inflação infantil de ego, ser apenas seres de luz, pouco ou nada sabendo sobre a realidade das projeções inconscientes de nossas partes sombrias em nossos clientes.

Tendo em vista tudo isso citado nos últimos parágrafos, os terapeutas do “mundo holístico” que se encontram iludidos com a ideia de que podem ser inteiros assumindo apenas suas partes bondosas e aprováveis, acabam por assumir uma atitude unilateral extrema, como gurus individuados, forçando, conforme Jung nos ensinou, o inconsciente a sair da função compensadora em relação ao consciente para entrar em um oposição aberta a ele, uma oposição também extrema, que eclode em uma exteriorização do “irmão tenebroso”, mostrando de forma explícita e muitas vezes perigosa aquelas partes que jurava não existir em si. Por exemplo, o homem terapeuta que acredita não mais possuir nada de abusivo por ser um exemplo vivo de masculinidade saudável, curava e iluminada, acaba por colocar em prática as mais nefastas formas de abuso contra seus clientes, principalmente as mulheres — conforme vez ou outra ficamos sabendo pelo noticiário.

Questão 2: inflação de ego, o pseudo-holístico e a cosmovisão distorcida

Aqui neste tópico eu quero me concentrar principalmente nas terapias que envolvem ou dizem envolver o campo da espiritualidade, independentemente de estarem ligadas a alguma religião ou não — não porque isso só acontece nelas, mas porque foi onde eu observei de maneira mais intensa essa característica sombria. 

 Os dicionários brasileiros possuem, como principal definição do adjetivo “holística”, “que busca entender os fenômenos ou a realidade por completo, e não somente como resultado da união de suas partes; que analisa e entende algo por inteiro. Essa definição coincide com os objetivos das terapias holísticas, pelo menos em tese, pois, segundos as mais diversas fontes facilmente encontradas pela internet, essas terapias têm como objetivo “trata[r] problemas e doenças a partir de uma visão global do ser humano”, e que o “terapeuta holístico analisa o paciente nos aspectos físicos, mentais, espirituais e energéticos” (https://www.significados.com.br/terapia-holistica/).

Assim, podemos concluir que as terapias holísticas surgem para cuidar do indivíduo como um todo, levando em consideração todos as suas camadas, das mais grosseiras e concretas até as mais sutis e espirituais. Isso viria contrapor a tendência unilateral da ciência atual, que leva em consideração apenas as funções racionais do ser humano, dados e técnicas que podem ser testados e validados cientificamente. Em outras palavras, a meu ver, podemos dizer que, ao trabalhar o todo do indivíduo, as terapias holísticas têm como objetivo resgatar a alma perdida pela cisão entre o mundo externo e o mundo interno imposta pela ciência atual. Aquele, o holístico, seria, por exemplo, como podemos identificar o ponto de vista da psicologia analítica ou psicologia profunda, conforme Hilmann nos mostra em sua obra Suicídio e Alma

“O contraste dos pontos de vista — compreender pelo lado de dentro ou explicar pelo lado de fora — divide a psicologia em duas. É um velho problema na história do pensamento. Qualquer psicologia que explique a natureza humana a partir do exterior, através apenas do comportamento observado, com modelos explicativos baseados na fisiologia, nos experimentos de laboratório, na mecânica, na estatística sociológica etc., chegará a conclusões diversas das oriundas do segundo tipo. A psicologia que explica através da compreensão do lado interior usará procedimentos e conceitos diferentes e um ponto de partida diverso — aquele do indivíduo. 


[…]A psicologia profunda redescobriu a alma e colocou-a no centro de suas explorações.” (p. 60-61)

O problema, neste tema específico, é que muitas das autoproclamadas terapias holísticas, principalmente algumas que trabalham nas camadas espirituais do indivíduo, são holísticas somente na teoria, mas não na prática, pois facilmente negam camadas importantes do indivíduo. Por exemplo, algumas terapias que negam de maneira clara o espectro infravermelho, mais instintual e corpóreo, da nossa existência. Baseadas na crítica à unilateralização das terapias da materialidade, tendem ao movimento de enantiodromia — termo usado por Heráclito e largamente aplicado por Jung, que significa “correr em direção contrária” —, ou seja, à compensação pendular que não resolve a unilateralidade, mas apenas substitui um extremo pelo outro, uma parcialidade material por outra espiritual, negando tudo que é corpóreo e concreto, chegando, muitas vezes, a varrer também para o submundo da psique tudo que envolve, apenas como um exemplo, a sexualidade natural. Assim, convenhamos, se uma camada tão importante como a corpórea é negada por algumas terapias que se dizem holísticas, nós só podemos chamá-las, a favor da honestidade, de terapias pseudo-holísticas.

Neste ponto, aproveito para falar sobre uma ramificação desse movimento de enantiodromia executado regularmente por alguns terapeutas do mundo holístico. Mas antes de explicitá-lo, é necessário primeiramente afirmar que muito comumente terapeutas de perspectivas das mais diversas costumam “pegar emprestado” teorias e termos junguianos para serem usados em seus trabalhos. Acredito que isso aconteça devido à amplitude e complexidade da teoria junguiana. 

Exemplificando, podemos falar do próprio vocábulo “sombras”, que muitas vezes é usado significando apenas o que há de negativo no indivíduo, mesmo que seja consciente; “sincronicidade”, que muitas vezes é um termo usado ignorando completamente a necessidade de dizer respeito, segundo Jung afirma em sua obra com esse nome, a acontecimentos ligados pela significação, mas sem ligação causal; e “arquétipos”, usado das maneiras mais confusas e rasas possíveis.

Esses termos e teorias junguianas “emprestados” e distorcidos às vezes são usados para justificar cosmovisões rasas baseadas em inflações de ego, que são passadas aos montes, em um claro abuso de poder, para clientes vulneráveis. Para exemplificar isso de maneira mais clara, escolhi um pequeno trecho da obra junguiana Freud e a psicanálise, onde Jung, ao criticar a unilateralidade racional da ciência, diz que “[241] […] As teorias científicas são apenas sugestões de como se poderiam considerar as coisas.” Essa provocação de Jung de maneira alguma vem com o objetivo de defender a ideia de que a ciência deve ser ignorada. Muito pelo contrário, em toda sua obra Jung fala sobre suas complexas tentativas de cientificar o tanto quanto possível a sua teoria. O que ele pretende é simplesmente afirmar que as funções racionais usadas na ciência não devem ser as únicas detentoras da verdade absoluta da vida, sob risco do catastrófico sacrifício das funções irracionais que fazem parte do todo humano. 

Terapeutas pseudo-holísticos de algumas áreas, porém, muitas vezes usam esse trecho do parágrafo anterior, dentre outros, de maneira mal interpretada, para justificar suas posições egóicas perante a vida. Isso pôde ser observado durante os períodos mais críticos até o momento da pandemia do COVID-19, quando comumente era possível presenciar vários terapeutas se posicionando de forma demasiadamente subjetiva, acima de evidências científicas, em  posições anticiência e antivacina, por exemplo. Influenciando várias pessoas e provocando um mal incalculável, exatamente o contrário do que conscientemente dizem desejar.

Conclusão

Conforme eu havia afirmado, minha intenção neste artigo não é exaurir as possibilidades de sombras dentro das terapias holísticas, mas, sim, ampliar um pouco com provocações sobre duas delas que particularmente observei com certa frequência quando atendia com técnicas consideradas holísticas. Muito menos tenho a intenção de dizer aqui que os profissionais que trabalham com a análise junguiana — ou qualquer outra perspectiva terapêutica — estão em um lugar superior, imunes em relação a essas e outras tantas sombras.

Eu acredito que, se algum objetivo positivo pode ser extraído desta pequena reflexão, é a de que todo e qualquer terapeuta, conforme há muito defendido por Jung, precisa necessariamente cuidar de suas próprias questões, entrar em contanto com a alma, sempre mantendo um trabalho e diálogo com o inconsciente, com as próprias sombras, sem se iludir com a ideia de que a iluminação, ou individuação, já é concreta e que não existe nada para se trabalhar em si mesmo, sob risco de atrocidades serem cometidas em nome de um teórico objetivo de cura. Trabalhos maravilhosos são feitos no mundo que se autoproclama holístico, não há dúvidas sobre isso. Porém não devemos, por isso, deixar de refletir criticamente sobre as distorções, manipulações e necessidades de aprofundamento existentes nesse campo, que há muito cresce em alcance, assim como em poder de ajuda ou destruição.

Leandro Scapellato – Membro analista em formação/IJEP

Waldemar Magaldi – Membro analista didata/IJEP

Referências

GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2004.

HILLMAN, James. Suicídio e Alma. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2011.

HOLÍSTICA. Dicio: dicionário online de língua portuguesa. Disponível em: <https://www.dicio.com.br/holistica/#:~:text=Significado%20de%20Hol%C3%ADstica,de%20seus%20sintomas%3B%20medicina%20hol%C3%ADstica>. Acesso em: 22 de maio de 2022. 

JUNG, Carl Gustav. Freud e a Psicanálise. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

JUNG, Carl Gustav. Sincronicidade. 21. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2018.

TARTATI, Jaqueline. Quem somos. Sannyas. Disponível em: <https://sannyas.com.br/quem-somos/>. Acesso em: 22 de maio de 2022.

VEERESHA, Chandra. Blog da Chandra, 2014. Disponível em: <http://blogdachandra.blogspot.com/2014/06/o-que-e-o-sannyas.html>. Acesso em: 22 de maio de 2022. 

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