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Trabalho, identidade e realização pessoal

A profissão e/ou o trabalho são parte importante da nossa vida adulta, desde crianças somos questionados sobre “o que queremos ser quando crescer”. Pensando que, se quando crescermos não trabalharmos, não somos talvez adultos ou cidadãos. Trabalho vem do latim “tripalium”, que é o nome de um instrumento de madeira de três pontas, usado para trabalhos agrícolas ou para tortura.

Por muito tempo o significado de trabalho foi associado a fardo e sacrifício. Na Grécia Antiga, o trabalho era desprezado pelos cidadãos livres. Platão considerava o exercício das profissões vil e degradante. Nos primeiros tempos do cristianismo, o trabalho era visto como tarefa penosa e humilhante, como punição para o pecado. Ao ser condenado, Adão teve por expiação trabalhar para ganhar o pão com o suor do seu próprio rosto (RIBEIRO E LEDA, 2004).

Observando essa concepção do trabalho como castigo divino ou tarefa menos digna, vemos que o ser humano sempre teve uma relação complicada com o trabalho. Essa visão perdura até hoje, pois o trabalho intelectual é visto como nobre e elevado, enquanto o trabalho braçal é visto como algo de menos valia. Não é a toa que o trabalho braçal até pouco tempo atrás era destinado à mão de obra escrava.

A concepção de trabalho como fonte de identidade e autorrealização humana, foi constituída a partir do Renascimento. […] A partir dessa época, uma outra visão passou a vigorar, concebendo o trabalho não mais como uma ocupação servil. Longe de escravizar o homem, entende-se que propicia o seu desenvolvimento, preenche a sua vida, transforma-se em condição necessária para a sua liberdade (RIBEIRO E LEDA, 2004).

Não à toa, muitas vezes somos identificados com ou pelo nosso trabalho. Até pouco tempo, a profissão era uma espécie de prefixo identitário, dizendo qual o papel daquela pessoa na sociedade. Ou ainda, quem nunca fez ou ouviu a pergunta: O que (você) faz da vida? Como se o único fazer da vida estivesse ligado ao valor produzido ou ao trabalho realizado.

A categoria trabalho não pode ser pensada como natural ou a-histórica. O trabalho impregnado de toda uma subjetividade, inserido em um contexto econômico/ político/ social com tantas diversidades, leva os indivíduos a terem vivências bastante distintas. Ao longo dos tempos, identifica-se duas visões contraditórias do trabalho que convivem nos mesmos espaços, e por vezes, um mesmo indivíduo revela sentimentos ambíguos em relação a sua vida profissional (RIBEIRO e LEDA, 2004).

Essas visões apresentadas dizem respeito às concepções de trabalho como sofrimento, castigo, obrigação ou como gerador de valor pessoal, fonte de satisfação, crescimento e dignidade (“O trabalho dignifica o homem”). E como falado as vezes essas duas concepções ocorrem ao mesmo tempo no indivíduo.

Profissão, vem da palavra professar, do latim, “professio, onis”, cujo sentido é ensinar. É a mesma origem da palavra professor. Professar também tem o significado de declaração ou confissão pública[1]. Professar também é um ato de fé e o trabalho com a fé, é chamado de vocação. Vocação é o chamado, pois entende-se que nem todo mundo pode ser um trabalhador da fé.

Antigamente a profissão era parte da herança familiar. Hoje temos a “possibilidade” de escolha, mas ainda assim há fatores culturais e socioeconômicos envolvidos, portanto, muitas vezes essa escolha é limitada.

Estando em contato com nosso chamado a vida é mais fluida, os estresses não pesam e se luta o bom combate. Aí é que reside a diferença entre trabalho e profissão.

Cerca de 39% dos brasileiros têm interesse em mudar de carreira ou profissão[2]: Perspectiva de maior remuneração, desejo de inovar ou aprender algo novo, busca de realização pessoal e expectativa de uma melhor qualidade de vida foram os motivos apontados. Ou seja, para 39% o trabalho ainda tem o teor mais prevalente de castigo do que de realização pessoal.

Achei interessante inclusive observar que a maioria dos textos que li sobre transição de carreira falam que é uma crise que se apresenta por volta dos 40 anos de idade, quando já se teve a oportunidade de viver uma parte da vida profissional. No entanto, parece que esse fenômeno tem se dado cada vez mais cedo. Sair de uma área que, você já possui experiência, conhece pessoas, domina técnicas, é remunerado e possui história para mergulhar numa nova profissão não é uma tarefa simples, nem fácil. Ouvir o chamado é um ato de coragem e de ir encontro ao Si-mesmo.

A crise de meio de carreira parece ser mais comum entre os 40 e 50 anos de idade, não coincidentemente o período apontado como metanoia por Jung. Esse processo pode se iniciar aos 30 anos. Nessa idade, o indivíduo se volta ao desenvolvimento de aspectos inconscientes. E atualmente os jovens abaixo de 30 anos são os que mais se demitem voluntariamente.

Não coincidentemente, essas idades têm a ver com o processo de intensificação do autoconhecimento, o voltar-se para dentro e conhecer a si mesmo, levando então o indivíduo a buscar sentido em sua vida, de acordo com sua vocação, seu chamado. A adaptação à transição de carreira na meia idade emerge como uma oportunidade para a reavaliação de valores individuais na esfera do trabalho e para a construção de um caminho que promova a expressão do novo autoconceito profissional (QUISHIDA e CASADO, 2009).

O homem deve ser levado a adaptar-se em dois sentidos diferentes, tanto à vida exterior – família, profissão, sociedade – quanto às exigências vitais de sua própria natureza. Se houve negligência em relação a qualquer uma dessas necessidades, poderá surgir a doença. (JUNG, 2014, v. 17, par. 172).

Há atualmente em curso um movimento, principalmente nos países ricos, mas que já começa a apresentar seus sinais por aqui, chamado de A Grande Resignação[3]. Trata-se de um movimento coletivo, não organizado, em que as pessoas estão pedindo demissão voluntariamente de seus empregos.

Estudos mostram que a Grande Resignação veio como resposta às condições de trabalho precárias, que foram percebidas principalmente durante a pandemia. Quem se isolou nesse período, percebeu como a vida não pode ser segmentada. Em um mesmo ambiente, no caso, nossas casas, tivemos lar, escritório, escola, faculdade, etc, tal qual acontece em nossa “casa” interna. No entanto, durante a pandemia, tudo isso passou a ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo aumentando a sensação de esgotamento.

Além disso, o trabalho na pandemia trouxe em muitos casos um desejo maior de ficar em casa, de se ter vida com maior qualidade, estar mais próximo da família ou até mesmo ter mais tempo para si. Nesse sentido, o dilema viver para trabalhar ou trabalhar para viver se apresenta.

O trabalho não pode ser uma negatividade da vida, mas, muito pelo contrário, sua expressão, coisa que o capitalismo, em suas mais variadas versões apresentadas no decorrer da história, não permitiu que ocorresse. Eis a Esfinge que cabe ao homem contemporâneo decifrar, para não ser definitivamente devorado por ela (HELOANI e CAPITÃO, 2003).

Estudos apontam que 32% dos trabalhadores brasileiros apresentam sintomas da Síndrome de Burnout, ou de esgotamento profissional[4]. Muitas pessoas deixaram de considerar o trabalho como a prioridade das suas vidas e passaram a ver a vida como a prioridade das suas existências. O constante estresse causado pela cobrança por uma produtividade, medo do desemprego, por outro lado, faz com que se aceite trabalhar em condições cada vez mais precárias.

As condições e as exigências do mercado de trabalho na atualidade rotinizam e amortecem o sentido da vida, deixando no corpo as marcas do sofrimento, que se manifestam nas mais variadas doenças ditas ocupacionais, além de atentar contra a saúde mental, em especial quando o psiquismo anquilosado em sua mobilidade faz com que a mente seja absorvida em formas de evitação do sofrimento (HELOANI e CAPITÃO, 2003).

A mais nova música da Beyoncé – Break My Soul (Despedaçar Minha Alma) (https://youtu.be/yjki-9Pthh0), inclusive, diz-se que pode ser o hino dessa era e suspeita-se que tem inclusive incentivado as pessoas a pedirem demissão ao invés de perderem sua alma para o trabalho. Diz a música:

Eu vou encontrar uma nova motivação/ droga, me fazem trabalhar tanto/ Às nove no trabalho, saio depois das cinco/ E forçam meus nervos, por isso não durmo à noite[5]

A meu ver há em curso um movimento, uma nova busca de significado pelo trabalho, individual e coletivamente. O cansaço não é apenas individual, mas faz parte de um movimento coletivo de pensar nosso papel na sociedade e o papel do trabalho em nossa vida consequentemente. Longe de trabalhar apenas para viver, queremos trabalhar para significar. Além disso, não devemos ser criados para o trabalho e sim para a vida, pois não somos apenas aquilo com que trabalhamos, mas podemos trabalhar com o que somos de melhor.

Mauro Angelo Soave Junior – Membro Analista em Formação do IJEP

E. Simone Magaldi – Analista didata do IJEP

Referências

JUNG, Carl Gustav. O.C. XVII, O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis. Vozes, 2014

HELOANI, José R. e CAPITÃO, Cláudio G. Saúde Mental e Psicologia do Trabalho. In: São Paulo em Perspectiva, v.17, n.2, p.102-108, 2003

QUISHIDA, Alessandra; CASADO, Tania Adaptação à transição de carreira na meia-idade Revista Brasileira de Orientação Profissional, vol. 10, núm. 2, 2009, pp. 81-92

RIBEIRO, Carla Vaz dos Santos; LEDA, Denise Bessa. O significado do trabalho em tempos de reestruturação produtiva. Estud. pesqui. psicol.,  Rio de Janeiro ,  v. 4, n. 2, dez.  2004 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812004000300006&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  29  jun.  2022.

UVALDO, Maria da Conceição Coropos. Tecendo a trama identitária: um estudo sobre mudanças de carreira. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

VELOSO, Elza Fátima Rosa. Decisões na transição interprofissão: um modelo de orientação de mudanças de carreira. Tese de Livre-Docência, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.


[1] https://www.dicio.com.br/profissao/

[2]https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2022/02/19/quer-mudar-de-carreira-ou-emprego-em-2022-veja-pontos-para-avaliar.ghtml

[3]https://www.istoedinheiro.com.br/o-que-e-a-grande-resignacao-e-como-ela-pode-mudar-os-paises-ricos/

[4] https://saude.abril.com.br/mente-saudavel/burnout-e-reconhecido-pela-oms/

[5] https://g1.globo.com/pop-arte/musica/noticia/2022/06/22/nova-cancao-de-beyonce-representa-grande-resignacao-de-geracao-de-trabalhadores-nos-eua.ghtml

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