Todos os anos é sempre assim: o ano começa e a largada para a realização dos nossos planos, projetos e desejos está dada.
Trabalhamos, estudamos, estruturamos nossas vidas, seguimos com nossas metas, sonhos e desejos. E de repente, é dezembro! Mas, como assim? Já? O que resta agora é fechar tudo, concluir o que é possível, porque não tem mais jeito – o ano “já” está acabando.
Na verdade, a sensação que se tem é a de que está acabando não apenas um ano, mas o tempo.
Os dias se foram e os planos que pareciam tão elásticos, não esticam mais. Tudo que planejamos e não cumprimos vai-se embora junto com este tal tempo. Verdade? Nem tanto. Porque não sentimos a força deste “passar do tempo” quando a mudança é de fevereiro para março, ou de setembro para outubro, uma vez que são apenas meses, assim como dezembro e janeiro?
Esta sensação existe porque temos uma organização psíquica interna que imprime um ritmo para o acontecimento e a cadência das coisas, muitas vezes, ou posso arriscar dizer quase sempre, independente do controle e dos nossos planos e projetos. A instancia psíquica que precisa de organização e controle é o ego.
Administrar essa passagem do tempo, é uma função egóica.
Neste sentido, o ego funciona como um condutor seletivo, que acompanha este tempo linear, e rítmico, que contamos e que tentamos conter. O que esquecemos, na maior parte das vezes, é que além deste tempo do calendário, há um tempo muito maior, muito além do que nosso ego pode alcançar, e que por não ser possível controlar, nos causa angústias e receios.
O nosso calendário é uma fração deste tempo maior para que, psicologicamente, possamos lidar com esta divindade tão grandiosa. Então, quando o ano acaba e nosso tempo também, nos damos conta de que, assim como o tempo fracionado e organizado, somos também finitos. Este mistério inspira artistas, como músicos e poetas nas suas criações. Em sua belíssima canção Oração ao Tempo, Caetano Veloso o reverencia e busca negociar com ele a sua passagem e seus impactos na vida:
Jung discorre sobre o aspecto abstrato e substancial do tempo em sua obra Sincronicidade, falando do tempo como o equivalente ao nada:
Jung continua e traz relações deste tema com o Tao (conceito central da filosofia chinesa), interpretado assertivamente por R. Wilhelm como sentido. Lao-Tsé, compreende o Tao como o nada – aquilo que precede a origem dos céus e da terra. “O “nada” é, evidentemente, o “sentido” ou a “finalidade”, e chama-se nada justamente porque em si ele não aparece no mundo dos sentidos, mas é apenas o seu organizador. (JUNG, 1991b, § 910)
O tempo arquetípico
Em sua obra Mistérios do Tempo, von Franz realiza uma análise detalhada sobre aspectos relacionados ao tempo. Inicialmente ela faz uma pesquisa sobre como o tempo é compreendido nas sociedades e civilizações antigas, o que pauta o entendimento sobre este fenômeno. Uma das visões a que ela se refere na obra, é a seguinte:
A autora continua discorrendo sobre várias imagens associadas ao tempo, a partir de culturas e crenças diversas. O importante aqui é compreender que, como um fenômeno arquetípico, o tempo é cósmico em sua essência, assim como é também, sempre associado ao aspecto divino.
Esse tempo arquetípico em sua grandeza não nos possibilita, assim como qualquer outra divindade, conhecê-lo, ou tocá-lo em sua magnitude. É necessário que por ele se tenha respeito e cuidado. von Franz nos lembra o seguinte:
O tempo na vida e a vida no tempo
Vivemos todos sobre a égide do tempo. É sabido que não seremos eternos no plano de vida humano / egóico, no qual vivemos o dia a dia. Mas a eternidade, como modo de existência real, e porque não dizer carnal, é uma utopia amplamente buscado pelo homem.
Não que nos enganemos com o fato de que nossas vidas se findam, mas, de alguma forma há um desejo de permanecermos eternos. É possível assim que possamos nos eternizar por meio de nossas contribuições.
Artistas, políticos, teóricos, profissionais renomados em suas áreas de atuação, são alguns exemplos de pessoas que uma forma ou outra estão presentes em tempos além de sua passagem terrena. São imortalizados em suas obras e legados. Mas, ao viver nossa vida mundana e rotineira, com quais aspectos de tempo estamos lidando? A princípio, podemos pensar em três aspectos.
1. O tempo físico,
Este refere-se ao tempo cronológico, dividido e medido em unidades como: horas, meses, anos. Este tempo é objetivo e pode ser mais bem observado por meio dos fenômenos da física e da cosmologia. Em seu aspecto arquetípico o tempo físico se relaciona à visão linear, judaico-cristã, de um Deus que proverá a passagem do tempo, que possui um plano cósmico, mesmo antes da criação. Na antiguidade esta visão incluía aspectos cíclicos da divindade, como os sete dias da criação do universo (von Franz, 1997). von Franz cita aqui uma visão importante para esta concepção arquetípica ao trazer o modelo da providência divina, dividido em três períodos e criado pelo abade Da Fiore (sec. XII):
Neste tempo físico, surge então com a ciência, a contagem matemática do tempo, onde cientistas como Newton, Darwin, Einstein, criaram teorias que matematicamente explicam de modo linear o tempo e trazem contribuições para um entendimento de uma ordem única e não reversa, explicando inclusive o envelhecimento humano como um evento da linearidade do tempo.
2. O tempo psicológico,
De modo mais simplório, poderíamos compreender este tempo como aquela forma de perceber o passar do tempo, ou a influência do tempo em nossas experiências pessoais. Desta forma temos alguns bordões que nos conta como nos relacionamos com o tempo – “o tempo cura tudo”, “o tempo sabe”, “com o tempo isso se resolve”.
Estas relações feitas com este poder “sábio ou mágico” atribuídos ao tempo conversa com a forma que percebemos o tempo e seus efeitos em nossa vida. Podemos perceber o tempo como um fenômeno o que passa com lentidão nos em situações que não são de nosso agrado, ou com velocidade mais acelerada em situação mais significativas ou prazerosas. Estas maneiras de perceber o tempo estão associadas à nossas emoções.
Na visão analítica, conceitua-se um ponto determinado para a compreensão do tempo psicológico – a atuação dos complexos e arquétipos. Neste sentido, há uma subjetividade que deve ser considerada em relação a como cada um vivencia o espaço / tempo, que pode ser influenciada pela atuação de complexos, que possuem os arquétipos em sua base. Quanto a isso, Jung nos fala:
Há diferenças, por exemplo, como citado por von Franz (1997) na forma como intuitivos percebem a passagem do tempo ao observarem as horas no relógio, e de como as pessoas do tipo sensação são mais apregoadas aos acontecimentos do agora e, portanto, ao tempo medido e contado.
Neste aspecto subjetivo, tratamos de ritmos. Há ritmos biológicos, que funcionam num determinado espaço/temporal conforme a ação dos afetos, impulsionados pelos complexos autônomos. Estes complexos podem facilmente perturbar a relação do indivíduo com o tempo psíquico e fisiológico, a partir dos aspectos que foram assim afetados pela constelação do complexo.
3. O tempo social,
Em nossas vidas, outro fator que de alguma forma influencia nossa relação com o tempo é o chamado tempo social. Ele está pautado nas necessidades e convenções coletivas. De algum modo determina aspectos importantes da vida social, como regras para estudos, trabalho, lazer.
Cada cultura e sociedade lida de modo diferente com estes pontos, que organizam o modo de convivência. Quando pensamos no fator tempo, na contemporaneidade, não podemos desconsiderar o movimento para o qual a tecnologia nos direciona.
O advento tecnológico, faz com que nossa percepção se alterne. Com a globalização e estamos sempre conectados, o que pode levar a uma distorção de aspectos do tempo tanto físico como psicológico, interferindo nos ritmos pessoais e sociais. Sem dúvidas, aspectos como facilidade de contato e abrangência de informação facilita diversos aspectos da vida, mas a forma irracional e mesmo polarizada e imediatista com que utilizamos estas facilidades são por demais nocivas.
Byung-Chul Han, em sua obra, Sociedade do cansaço, aponta as mudanças sociais do século XXI, onde passamos a atuar em uma sociedade do desempenho e não mais da disciplina e controle. Somos empreendedores de nós mesmos, como comenta o autor. Com todo aparato tecnológico, que esta sociedade possui, ele chama a atenção para alguns pontos como, pessoas mais individualistas e egoístas, o que se dá pelo final da alteridade, pois não mais se inclui o outro com compaixão e cumplicidade. Ele chama isto do fim da alteridade. Há um excesso de positividade e uma consequência muito negativa. Conforme sua afirmação:
O autor comenta sobre o adoecimento social ao qual estamos fadados nesta configuração social, ao qual chama de “infartos psíquicos” (p.27), gerados por esta pressão do desempenho e pelo excesso de positividade.
Nesta condição, entramos em um modo de funcionamento ao qual Han (2015) denomina de multitarefa, onde a atenção apesar de ampla é rasa, o que ele compara com o animal selvagem não sendo, pois, uma evolução, mas sim um atraso em nosso processo evolutivo. Segundo Han, falta ao ser humano atualmente pausas para o tempo contemplativo. Diz Han:
Hoje em dia, as coisas ligadas ao tempo envelhecem muito mais rápido do que antes. Elas decaem rapidamente naquilo que é passado e fogem à atenção. O presente se reduz à ponta da atualidade. Assim, o mundo perde algo de sua duração. A causa do encolhimento do presente não é, como se assume equivocadamente, a aceleração. Antes, o tempo, como uma avalanche, lançasse adiante, porque ele não tem mais uma parada. Aqueles pontos do presente entre os quais não existiria nenhuma força gravitacional e nenhuma tensão, pois são meramente aditivos, desencadeiam a ruptura do tempo, o que conduz ao aceleramento sem direção e sem sentido. (HAN, 2013, p. 28)
O tempo da alma: ciclos e finitude
Diante do exposto, nesta sociedade fatigada, com uma enxurrada de dados e de informações, em sua maioria desnecessárias e superficiais, onde fica a alma? Como pensar e se associar e este tempo mais amplo, profundo e restaurador, a partir do qual fomos criados? É preciso lembrar que a vida corre, dentro de um tempo que se desenrola, seja qual for nossa percepção a cerca dele.
Este movimento bruto e pouco acolhedor que vivenciamos na atualidade, faz com que o tempo se torne nosso inimigo e nosso algoz, assim como era Cronos com seus filhos. Mas, se pudermos retomar um pouco do processo de tomada de consciência de si-mesmo, tão falado por Jung em seus escritos sobre desenvolvimento de consciência e da própria individuação, poderemos observar que o tempo é o espaço onde realizamos o propósito de nossas vidas juntamente com aqueles que nos cercam, de modo integrado com as solicitações do nosso si-mesmo.
O tempo é este deus que tudo muda, que tudo realiza, à revelia do que gostamos queremos ou pretendemos olhar com gentileza e de forma genuína para isto.
Nossa alma não é nutrida por planos e projetos e resultados. Isso nutre o ego.
O que alimenta a alma são coisas mais simples, que com esta vida corrida e exaurida deixamos de ver – o nascer do sol, o canto de pássaros, o sorriso de nossos filhos, abraços, beijos e palavras de afeto. O que toca a alma é mais simples do que podemos pensar. O ego quer coisa grande por que equivocadamente criamos uma imagem de que o grande é o sofisticado, mas não é. O grande é o que faz diferença no momento que o sofisticado, o superficial e o objetificante não tem mais sentido.
Verena Kast nos lembra de Kairós, o deus irmão de Zeus, logo, filho de Cronos, que é deus do bom tempo, da oportunidade, e do carpe diem. Ela nos fala sobre este momento de Kairós como “[…] um momento de profunda alegria, talvez seja um momento no qual nos sentimos unidos com tudo que existe no mundo: um momento de intensidade, do envolvimento completo com a vida, talvez um momento de presença plena.” (KAST, 2016, p. 100)
Fazer as pazes com o tempo é aceitar que as coisas acabam.
Quando não concluímos nossos planos, projetos e promessas de ano novo e chegamos ao final do ano, sentimo-nos culpados. Por quê? A quem devemos estas tarefas, metas e explicações? Com isso não quero dizer que não é importante ter algum direcionamento, ter um plano, mas entendo que estes não podem ser maiores, ou mais importantes do que a própria vida. Podem ser ousados, desafiadores sim, mas é necessário e urgente buscar a compreensão do que de fato nos cabe, o que é nosso, nestes planos e projetos. O quanto de projeção de sombras coletivas e mesmo individuais estão habitando estes planos e projetos?
A vida é certamente bem maior do que uma planilha de Excel, e se não tomarmos cuidado, nós nos tornamos reféns de sequestradores que nem sabe que existimos (deuses da internet, os tais influenciadores, as capas de revistas, o resultado financeiro etc.).
Antes de pensar no tempo da vida, seria mais oportuno pensar a vida no tempo.
A natureza nos ensina que as coisas têm seus ciclos definidos. A vida por exemplo de uma planta, uma flor, ela não está preocupada em fazer outra coisa, a não ser florescer, e estar o tempo presente no espaço tempo que lhe cabe ofertando, cor, perfume, leveza. Como humanos somos munidos de uma psique complexa, que quer realizar-se e tornar-se uma, mas paradoxalmente, temos dificuldades de aceitar sua finitude como parte do processo. Jung, no livro A natureza da psique tem uma fala muito linda e profunda sobre isso, conforme segue:
Por fim, o tempo é este fenômeno complexo e multifacetado que nos acompanha, aliás que nos convida para a jornada da vida, que nos apresenta oportunidades de realização nessa jornada, e que sim, também nos conduz para a saída quando já não mais precisamos estar por aqui. Que possamos compreender a nós e a seus desígnios para seguir em paz e em harmonia com o que quer o tempo possa representar para cada um de nós, sempre e a cada novo ciclo!
Gilmara Marques Fadim Alves – Membro Analista IJEP
Maria Cristina Guarnieri – Analista ditada IJEP
Referências:
HAN, Byung-Chul. Favor fechar os olhos. Em busca de um outro tempo. Petrópolis: Vozes, 2013.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Petrópolis: Vozes, 2015.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da Psique. O. C. 8/2, 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1991a.
________________. Sincronicidade. O. C. 8/3, 5. ed. Petrópolis: Vozes, 1991b.
KAST, Verena. A alma precisa de tempo. Ed. digital. Petrópolis: Vozes, 2016.
VON FRANZ, Marie Louise. Mistérios do tempo. Portugal. Edições Del Prado, 1997.
[1] https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44760
Canais IJEP:
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