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Vimos um mundo doente

Vimos um mundo doente

Vimos um mundo doente

Pandemias, surtos, surgimento de novas doenças ou variantes, a crise de valores ligada a isso, com as fake news, descrédito da ciência, baixa vacinação fazendo voltar doenças já erradicadas é o cenário que vivemos na atualidade, sobretudo a partir de 2020, com a Covid-19. A saúde mental tem ficado cada vez mais abalada e pela primeira vez se fala de pandemia de doença mental.

Neste artigo, vamos olhar para esse contexto a partir da Psicologia analítica de Carl Gustav Jung, buscando perceber a íntima conexão entre os mundos interno e externo, reconhecendo os desequilíbrios e unilateralidades presentes e vislumbrando um caminho de integração. Partindo da visão sobre o ser humano da Psicossomática, que o vê como unidade bio-psico-socio-espiritual – o que afeta uma esfera desequilibra o todo –, abordaremos as etapas do adoecimento e o sintoma como alerta e chamado. Um trecho da canção Índios, de Renato Russo, apoiará nossa reflexão.

Mal-estar generalizado

Desde o início da pandemia de Covid-19, em 2020, que assustou a humanidade com o número de casos e de mortes e colapso dos sistemas de saúde em vários países, frequentemente os noticiários comunicam o surgimento de doenças, como as novas subvariantes da ômicron (Covid), a varíola dos macacos e o novo tipo de hepatite, que acomete crianças pequenas; ou o ressurgimento no Brasil daquelas já erradicadas, devido à queda na adesão à vacinação, como o sarampo e a difteria, além da ameaça da poliomielite e rubéola. O número de pessoas com diabetes nas Américas mais do que triplicou em três décadas, segundo a Organização Pan-Americana da Saúde. A Organização Mundial de Saúde vem alertando sobre a importância da atenção à saúde mental com dados alarmantes: em 2019, quase 1 bilhão de pessoas no mundo viviam com um transtorno mental. Apenas no primeiro ano da pandemia, houve um aumento de mais de 25% nos quadros de depressão e ansiedade.

Parece tão atual a canção Índios, de Renato Russo/Legião Urbana, lançada em 1986, quando afirma: “Vimos um mundo doente”. Essa afirmação entra em sintonia com uma conferência pronunciada por Carl Gustav Jung em 1939 (JUNG, 2018b, §290), cuja atualidade impressiona ainda mais:

Não podemos negar que a nossa época é um tempo de dissociação e doença. As condições políticas e sociais, a fragmentação religiosa e filosófica, a arte e psicologia modernas, tudo dá a entender a mesma coisa. Será que existe alguém, mesmo tendo só um pouquinho de sentimento de responsabilidade, que se sinta bem com este estado de coisas? Se formos honestos, temos que reconhecer que ninguém mais se sente totalmente bem no mundo atual; aliás, o mal-estar vai aumentando. A palavra crise também é expressão médica que sempre designa um clímax perigoso da doença.

O mundo é uma entidade abstrata que, como tal, em verdade não existe. O que podemos ver somos nós, seus habitantes, cada indivíduo que participa do mal-estar generalizado descrito por Jung e em algum nível adoece. A estrofe completa da canção Índios na qual se encontra o verso citado é: “Nos deram espelhos e vimos um mundo doente. Tentei chorar e não consegui.” No fundo, não nos sentimos bem. Mas será que estamos nos vendo? Será que, olhando no espelho, enxergamos de fato o que em nós forma o mundo doente? Até que ponto estamos ligando para isso, e onde precisamos reconhecer que já não nos brotam lágrimas nos olhos diante do que vemos, sendo essa indiferença um dos sintomas?

Segundo Mello Filho, que concorda com Perestrello (MELLO FILHO et al, 2010, p. 40), o ser humano é uma “unidade psicossomática”. Sendo assim, todas as dimensões humanas — bio, psico, social e espiritual — estão interligadas, e é em sua interrelação e na totalidade da pessoa que deve estar o foco do olhar sobre a saúde e a perda dela.

Vemos de fato na pandemia da Covid-19 como algo que começou na contaminação por um vírus gerou ansiedade, afetou as relações interpessoais a partir do isolamento social e a dificuldade depois de voltar – por exemplo, os vários problemas com os estudantes tanto para se adaptar com as aulas online como para retornar ao presencial –; abalando mesmo o plano espiritual, do sentido e significado da vida.

A descrença nas vacinas começa a partir do problema social das fake news, que ataca o sistema de crenças e valores, gerando uma verdadeira paranoia que acaba por fazer voltar doenças já erradicadas. O caminho aqui foi social-espiritual-psico-físico. A própria dificuldade de suportar o outro, o diferente já é um sintoma social que se retroalimenta, pois vai criando uma atmosfera de intolerância que adoece, gera um contágio psíquico que coloca uns contra os outros o tempo todo, mesmo nas coisas mais banais. (cf. JUNG 2018b, §277) E, enquanto brigamos sem grandes propósitos, abre-se cada vez mais o abismo da desigualdade social, jogando famílias inteiras nas ruas das grandes cidades, sobrevivendo de esmolas e até do lixo, sem acesso ao mínimo que o humano precisa para viver com dignidade e saúde; os que conseguem trabalham em subempregos com condições insalubres, inclusive crianças; outros engrossam as cracolândias; aumenta a violência, mas também a indiferença e a omissão.

“Tentei chorar e não consegui”. Isso foi questionado pela canção na década de 1980. Hoje, já não sei se tentamos; quantos tentam? De novo, quantos veem o mundo doente – interna e externamente –, apesar de ele estar escancarado o tempo todo diante dos olhos? Estamos por demais embriagados nas redes sociais, verdadeiros templos a conseguir milhões de adeptos propagando os valores atuais: sucesso, performance, popularidade (número de seguidores); corpo esculturado – nem sei se podemos chamar de corpo o que está mais para estátua plastificada, cortada daqui, esticada dali, congelada de lá, cada vez mais artificial e menos viva. Os ideais são dar conta de tudo, sorrir o tempo todo, exibir-se em iates com champanhe na mão, trabalhar demais ou, de preferência, enriquecer sem trabalhar; ter, comprar, acumular; mostrar. Para quê? O tempo todo conectados, desconectamo-nos totalmente uns dos outros, vivendo alienados; não há um pingo de constrangimento em mostrar uma bolsa de 80 mil reais, que poderia matar a fome de milhares de pessoas. Aliás, fui modesta no valor, pois a bolsa mais cara do mundo foi avaliada em 3,8 milhões de dólares no início de 2022, ou 21 milhões de reais.

Se por um lado não importamos uns com os outros, por outro surgem preocupantes nós de uma conexão inconsciente e perigosa. Como analisa Jung (2018b, §326), essa tendência individualista atual “resultou numa volta compensatória ao homem coletivo cuja autoridade é por enquanto o peso das massas. […] A massa como tal é sempre anônima e irresponsável.” Em outro texto (2012, §1368), diz ainda: “Quanto maior a acumulação das massas, menor é o grau de inteligência e moralidade.” Juntamente com elas, levantam-se pessoas que as manipulam, movidas pelo abuso de poder e tendo nas mãos instrumentos de destruição, o que se torna altamente perigoso, devido à infantilidade egoísta que arrasta o processo. “Nada é tão contagiante como a emoção e nada é mais pacificador do que o cumprimento prometido de desejos egoístas.” (Ibidem, §§1367 e 1368) 

Promessas infantis de plena satisfação de indivíduos e no máximo seus pequenos grupos, e de defender os “cidadãos de bem” de ameaças projetadas, uma vez que a maior ameaça é a própria psique. Para Jung (2012), os conteúdos que antes eram projetados para fora, como bruxas, fantasmas, monstros, demônios, com o Iluminismo e a evolução da ciência não desapareceram nem deixaram de atuar, mas simplesmente mudaram de lugar, dado que sua fonte está na psique humana, que não cessa de criar. “Portanto, a multidão de fantasmas que existia do lado de fora deslocou-se para dentro da psique humana” (§1364) e “as próprias pessoas assumiram, sem saber, esses papéis” (§1363), trazendo uma desumanização nunca vista. 

Processo de adoecimento e o chamado do sintoma

Essa crise espiritual destrói o planeta e as pessoas e nos desumaniza. Só que nossa estrutura não aguenta viver de forma tão desalmada. O que em si é doentio nos transtorna psicologicamente e não demora começar a se manifestar em algum órgão. Na visão integral do ser humano, compreendemos a doença como forma de comunicação de um desequilíbrio interno, contextualizando-a tanto na história de vida como num todo maior, sociocultural. Nessa história, o adoecimento não é um evento pontual, mas um processo.

Primeiro ocorre uma tensão emocional, que pode ser percebida em maior ou menor grau e costuma ser múltipla, como falta de amor-próprio, baixa autoestima, sentimento de culpa, tristeza, inferioridade ou superioridade, “algo estranho” que incomoda. Ela pode vir acompanhada de algumas disfunções fisiológicas, como vômitos, diarreia, enxaqueca, dismenorreia (atraso menstrual) etc. São os primeiros sintomas que revelam a existência de um conflito. A pessoa pode não dar atenção aos sinais e o conflito apenas aumentar. A segunda fase do adoecimento, de distúrbio funcional, agrava os sintomas da primeira, ainda não aparecendo nos exames laboratoriais, o que vai ocorrer na terceira fase, de alteração celular, que já compromete o equilíbrio celular (note-se que o desequilíbrio interno persevera há algum tempo). Por fim, vem a doença anatômica ou destruição celular. O desequilíbrio pode predominar em um nível (somático, mental, social), mas nunca acontece unicamente nele. (cf. CUDIZIO, 2020).

Na visão junguiana, o sintoma é manifestação criativa do inconsciente, um represamento no fluxo da energia psíquica por um complexo que entrou em cisão e oposição com a atitude dominante da consciência. O complexo tem um núcleo dual, constituído de uma imagem arquetípica – conteúdos do inconsciente coletivo, universais, formados ao longo da vivência da humanidade, como mãe, pai, luz, trevas, feminino, masculino etc – e de experiências pessoais associadas a essa imagem, carregadas de memórias e afetos, que se aglomeram em torno dela, entrando em conflito com o ego, centro da consciência (cf. JUNG, 2018a, §198).

É que a pessoa se adapta às condições do ambiente em constante mutação até certo ponto, pois chega uma hora em que algo nela começa a resistir, colocando impedimentos de muitas maneiras, seja por sintomas físicos ou reações subjetivas perturbadoras, desde esquecimentos e trocas de palavras a explosões. “Extingue-se o sentimento de vida anteriormente existente, e em compensação aumenta desagradavelmente o valor psíquico de certos conteúdos”. (JUNG, 2016, §61) De qualquer forma, elementos inconscientes são trazidos à tona; e se conseguirmos, apesar do incômodo, olhar para eles suspendendo o julgamento (e a psicoterapia contribui com este processo), perceberemos neles “não só restos incompatíveis – e por isso rejeitados – da vida cotidiana, ou tendências condenáveis do homem animalesco primitivo, mas que neles também jazem os germes de novas possibilidades de vida.” (JUNG, 2016, §63) Para Jung, trata-se mesmo de “possibilidades de uma renovação existencial”. (Ibidem)

Vamos no piloto automático e quando algo nos faz parar, e este algo pode ser um sintoma, oferece-nos a oportunidade de reflexão. Como a própria palavra sugere, de flexionar-se sobre si, ou seja, de voltar a si mesmo e questionar: o que estou fazendo da minha vida? Para onde estou indo? Para quê? O que pode ser uma boa oportunidade para buscar o sentido e encontrar um caminho com mais significado. De acordo com Jung, só é capaz de se opor ao fenômeno das massas descrito anteriormente, com o adoecimento generalizado (“mundo doente”), “quem não vive apenas no mundo das exterioridades mas tem seu mundo interior.” (2018b, §327)

Se as grandes coisas estão mal, isto se deve exclusivamente ao fato de os indivíduos estarem mal, de eu estar mal. Por isso é muito razoável que, antes de mais nada, eu me coloque bem. Para tanto preciso […] de um saber e conhecimento dos fundamentos mais íntimos do meu ser subjetivo a fim de colocar minha base nos fatos eternos da psique humana. (2018b, §329)

Os sintomas podem contribuir com esse caminho de autoconhecimento e desenvolvimento da individualidade, cada vez mais necessário. Não fácil, pois passa por admitir o fracasso do estilo de vida anterior ou o beco sem saída a que ele levou. E no olhar para o mundo doente, passa por reconhecer o esgotamento coletivo ao qual chegamos, com ameaça para a vida de todo o planeta. Esse reconhecimento pode ser uma grande oportunidade. “A doença de dissociação de um mundo é ao mesmo tempo um processo de cura ou, melhor, é o ponto alto da gravidez, traduzido pelas dores de parto.” (JUNG, 2018b, §293) Desde que não insistamos em ficar no mesmo lugar, buscando mais do mesmo. “Esse entendimento é, na prática, muito importante, porque os pacientes têm a tendência de continuar chafurdando nos antigos métodos, que de há muito se mostraram inúteis, e assim piorar sua situação.” (2018b, §297)

Que tenhamos a coragem de olhar realmente no espelho e, vendo o mundo doente, ouvir o chamado a levar a sério os sinais e percorrer a trilha da transformação.

Tania Pulier — analista em formação/IJEP

Lilian Wurzba — analista didata/IJEP

Referências:

CUDIZIO, Oswaldo. Psicossomática e as diversas especialidades. 2020. 31f. Apostila de aula. Ijep: São Paulo, 2020.

JUNG, Carl Gustav. A energia psíquica. Vol. 8/2. 14.ed. Petrópolis: Vozes, 2016.

___. A natureza da psique. Vol. 8/1. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2018a.

___. A vida simbólica. Vol. 18/2. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

___. Civilização em transição. Vol. 10/3. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2018b.

MELLO FILHO, Julio de et alPsicossomática hoje. 2.ed. Porto Alegre: Artmed, 2010.

OPAS. Número de pessoas com diabetes nas Américas mais do que triplica em três décadas, afirma relatório da OPAS, 11 nov. 2022. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/11-11-2022-numero-pessoas-com-diabetes-nas-americas-mais-do-que-triplica-em-tres-decadas. Acesso em: 25 nov. 2022.

___. OMS destaca necessidade urgente de transformar saúde mental e atenção, 17 jun. 2022. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/17-6-2022-oms-destaca-necessidade-urgente-transformar-saude-mental-e-atencao. Acesso em: 25 nov. 2022.

VASCONCELOS, Ananda. Até R$ 21 milhões: conheça as 5 bolsas de grife mais caras do mundo. BM&CNews, 15 jan. 2022. Disponível em: https://bmcnews.com.br/2022/01/15/as-5-bolsas-mais-caras-do-mundo/. Acesso em: 25 nov. 2022.

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