Resumo: A metanoia, na visão da psicologia analítica, refere-se à transformação psíquica na segunda metade da vida, direcionando a energia do mundo externo para o mundo interno, impulsionada pela consciência da finitude. Relacionamentos amorosos, quando deixam de ser baseados em projeções e transferências, tornam-se caminhos para a individuação, pois superam as idealizações românticas, e passam a investir em autoconhecimento, abandonando pautas infantis e aceitando a si e o outro em sua singularidade. Relações autênticas emergem quando ambos os parceiros assumem responsabilidade por seu desenvolvimento, elevando a relação para o nível da alma.
Na metade da vida o título do best-seller de Marshal Berman se materializa em cada indivíduo: tudo que é sólido desmancha no ar. Nossas certezas, padrões físicos e psíquicos, gostos e desgostos sofrem abalos sísmicos que nos fazem questionar quem nós realmente somos.
A esse momento crísico Jung deu o nome de metanoia, processo que acontece na segunda metade da vida e que tem como característica a mudança na direção da energia psíquica, que na primeira metade da vida está voltada para o mundo externo e agora passa a apontar para o mundo interno.
A palavra metanoien, que significa “mudar de mente” ou “mudar a maneira de pensar”, que na segunda metade da vida é uma forma do ser humano ser resgatado da inconsciência, para tornar-se consciente de si. Neste período, com a mudança da direção do foco do ego, este passa a ter um diálogo mais intenso com o inconsciente.
Podemos questionar o que motivaria essa modificação na segunda metade da vida.
Jung propõe que tal mudança se daria em virtude da consciência da morte, que se torna uma realidade mais próxima, e que necessariamente deve ser aceita.
Ademais, para além da crescente consciência da morte física, se considerarmos apenas o processo em si, é possível observar que a metanoia proporciona algumas mortes simbólicas, seja do ideal de eu, seja no ideal de vida. Jung indica que este processo de morte simbólica tem como intuito proporcionar a individuação do sujeito.
Dentre um dos aspectos da vida humana que sofre grande influência da metanoia, podemos citar o casamento, que é visto contemporaneamente como o sanatório geral, fonte apenas de bem-estar, sofrendo a projeção do ideal da alegria e da felicidade “até que a morte nos separe”. Contudo, o casamento não deveria ser visto apenas como fonte de prazer, possuindo também um caráter religioso, de salvação (Hollis, 2011), posto que pode ser entendido como um dos caminhos para realização do processo de individuação.
A vida, em sua essência, é um processo contínuo de transformação, que teria como objetivo para o ser humano tornar-se mais próximo da pessoa inteira que se pretende ser (Hollis, 2011). Contudo, apesar de desejar saber quem de fato somos, há uma grande chance de evitarmos o derradeiro encontro conosco, pois estamos sempre projetando essas forças psíquicas.
Nas palavras de Jung:
Se o confronto com a sombra é obra do aprendiz, o confronto com a anima é a obra-prima. A relação com a anima é outro teste de coragem, uma prova de fogo para as forças espirituais do homem. Jamais devemos esquecer que, em se tratando da anima, estamos lidando com realidades psíquicas, as quais até então nunca foram apropriadas pelo homem, uma vez que se mantinham fora do âmbito psíquico, sob a forma de projeções. (OC 9/1, §61)
Isso porque, tal encontro requer que nos dispamos dos nossos falsos ‘eus’. Para tornamo-nos quem somos, uma série de mortes simbólicas precisam ocorrer, já que não dá para passar de uma fase a outra carregando ativos todos os aspectos da fase anterior. Essas mortes não são apenas de algumas capacidades físicas, mas também psicológicas, e representam o desprendimento de aspectos da nossa personalidade que já não servem. A cada dia, somos convidados a enfrentar essas pequenas mortes, que nos permitem renascer em versões mais autênticas e integradas.
A característica comum deste momento da vida é a desconstrução do falso self, que se formaria, principalmente dos valores e estratégias pregadas pelo coletivo. Cada pessoa é, então, convidada a desenvolver uma nova identidade, novos valores, novas atitudes em relação ao self, e ao mundo.
Segundo Holllis (2011), todos os relacionamentos amorosos usam dois estratagemas psicodinâmicos, a projeção e a transferência. Para ele, todos os relacionamentos começariam com a projeção, o que significa que conteúdos imagéticos pessoais são lançados para o outro na relação. Assim, o problema da projeção é que a relação não se dá com o outro, mas com as próprias imagens internalizadas, comprometendo o caráter único que a experiência da relação permite, distorcendo a realidade a serviço das imagens do passado. Haveria “o murmúrio dos nossos fantasmas (…) como um psicodrama que enfeitiça a consciência” (Hollis, 2011).
Já na transferência, transferiríamos padrões históricos e seus previsíveis resultados para as novas relações, principalmente as relações parentais estabelecidas na infância.
Nesse sentido, como é possível manter relacionamentos amorosos duradouros carregando toda essa bagagem? Ainda mais que tais relacionamentos evocam complexos poderosos, que aparecem muitas vezes de forma obsessiva?
Há que se ressaltar que na alma da cultura contemporânea, de todas as ideologias que a compõe, talvez a mais poderosa, mais atraente e possivelmente a mais ilusória é a fantasia do amor romântico, que prega que existe alguém lá fora que é certo para nós, uma alma gêmea, uma pessoa que nos compreenderá complemente, que cuidará de nós, que lerá nossas necessidades sem mesmo que precisemos verbalizar, que curará todas as nossas feridas (vejamos aí o grande o sucesso que os doramas tem no país).
Esse “outro mágico” (Hollis, 2011) nos libertaria da carga de nos desenvolver, de crescer, de atender sozinhos as nossas necessidades.
Contudo, a conta entre fantasia e realidade não fecha. Tanto que no Brasil foi constatado o aumento do número de divórcios em 2022, chegando à marca de 420 mil. A pesquisa do IBGE ainda demonstra que quase metade dos casamentos que terminam em divórcio duram menos de 10 anos; que cerca de 47,7% dos casais se divorciam com menos de 10 anos de união; 25,9% permanecem juntos entre 10 e 19 anos até o divórcio, e 26,4% se separam com mais de 20 anos de casamento.
Observando os dados, principalmente que metade dos casamentos terminam com menos de 10 anos, podemos imaginar que as duas principais causas psicológicas que levam à separação nos relacionamentos são impor expectativas exageradas sobre o outro e transferir bagagem velha para o presente. Fato é que aquilo que não sabemos sobre nós quase sempre prova ser uma terrível carga sobre os outros.
Se o relacionamento não se dá no nível da alma, ou seja, com um sentido maior, ele não se sustenta. Relacionamentos pautados exclusivamente na projeção ou na transferência tendem a terminar sem atingir o seu maior intuito, que é ser um caminho de individuação.
A forma atrativa da projeção é enorme. Quem não seria atraído por uma parte faltante de sua vida psicológica? Quem não gostaria de se encontrar sem ter que passar pela dor de se desenvolver?
Fato é que quanto mais fraca a consciência de uma pessoa, mais provável é que ela se fixe na projeção, mesmo que a realidade tenha se afastado disso há muito tempo, e mais ela permanecerá cativa dos seus complexos, ou seja, do poder da história, da pauta de intenções, do anseio e da roda da repetição. Contudo, tal mecanismo relacional não possibilita contato com outro, apenas consigo mesmo, mas sem saber disto. Já a queda da projeção possibilita ganho de consciência, o que não é fácil, pois, afinal, “não se chega à claridade pela representação da luz, mas tornando consciente aquilo que é obscuro.” (Jung, 2011, p. §335)
Estar apaixonado é de certa forma fácil e agradável. É um estar entorpecido temporariamente, é um desejo de fusão com o outro, especialmente para aqueles que não costumam olhar para si e que não assumem a responsabilidade por atender as próprias necessidades. Como a projeção é mais de nós mesmos, nós “despersonalizam o outro a quem dizemos amar. Ele se torna um objeto, um artefato de nossa psique, e a partir daí não estamos mais num relacionamento ético com ele.” (Hollis, 2011)
Estar apaixonado expressa, em certa medida, um desejo de obliteração de si a partir da dissolução no e com o outro. Tal fato psíquico nos leva a um processo regressivo, infantilizado e dependente, o que nos afasta do processo de individuação, de se tornar cada vez mais consciente de si.
Hollis enumera três implicações para a questão do apaixonamento:
- O que não conhecemos sobre nós tende a ser projetado na nossa vítima;
- Tendemos a projetar no outro as nossas pautas infantis, acabando por não investir no próprio crescimento;
- Como o outro não pode assumir a responsabilidade pelo nosso crescimento, as projeções inevitavelmente caem, e o que inicialmente parecia amor passa a ser uma luta pelo poder.
Assim, para melhor amar e relacionar-se, o que podemos fazer para o outro e por nós é assumirmos a responsabilidade pelo nosso desenvolvimento. E a partir daí é que podemos investir na relação como um caminho para individuação.
Contudo, tal intento é dificílimo, pois é necessário que cada um dos indivíduos envolvidos analise corajosamente a sua própria psicodinâmica, que muitas vezes possui raízes no sistema familiar. Além disso, ter hombridade de responsabilizar-se por sua própria jornada, abandonando suas pautas infantis, assumindo-se, com tudo que o compõe, sem sobrecarregar o outro.
A projeção e a transferência, mecanismos psíquicos inconscientes, apesar de inicialmente confortáveis são nefastas a longo prazo.
Quando frustradas, são vistas pelo ego como uma derrota. Mas nos trazem elementos preciosos de um aspecto nosso que quer voltar para nós. Este é o momento de aproveitarmos a oportunidade de crescer, ampliando um pouco mais a consciência de si.
Tal atitude constrói um relacionamento genuíno, vivo, íntimo, trazendo a verdade inescapável de que qualquer relacionamento “não pode alcançar um nível mais alto de desenvolvimento que o nível de maturidade que ambos os parceiros trazem para a relação” (Hollis, 2011).
Ao assumirmos a nossa diversidade nas relações, a diferença entre os pares, nos confrontamos com o mistério da união e com o mistério que é o outro, o que amplia o desenvolvimento psicodinâmico, aproximando-nos da totalidade.
Afinal, num relacionamento entre indivíduos, não projetivo, caminhamos para a individuação, já que “o ser humano que não se liga a outro não tem totalidade, pois esta só é alcançada pela alma, e esta, por sua vez, não pode existir sem o seu outro lado que sempre se encontra no ‘tu‘” (Jung, 2012).
Marta Guedes – Analista em Formação IJEP
Ana Paula Maluf – Analista Didata IJEP
Referências:
Guggenbühl-Craig, A. (1980). O casamento está morto – Viva o casamento! São Paulo, SP: Símbolo S.A. Indústrias Gráficas.
Hollis, J. (2011). Encontranso significado na segunda metade da vida. Osasco, SP: Novo Século Editora.
Jung, C. G. (2011). Estudos alquímicos. Petrópolis, RJ: Vozes.
Jung, C. G. (2012). Ab-reação, anpalise dos sonhos e transferência. Petrópolis, RJ: Vozes.
Martins, A. (27 de março de 2024). Número de divórcios no Brasil bate recorde e chega a 420 mil, mostra IBGE. (R. Exame, Ed.) Brasil. Fonte: https://exame.com/brasil/numero-de-divorcios-no-brasil-bate-recorde-e-chega-a-420-mil/
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