RESUMO: Em 1925, nas conferências de Tavistock, Carl Gustav Jung afirmou que o inconsciente é a natureza, e a natureza nunca mente. “Lá está o ouro, a coisa preciosa, o grande valor”. No adoecimento contemporâneo, a visão de que a psique nasce no emaranhado coletivo pode ser o caminho único de responsabilização individual para a criação de soluções curativas para o Todo.
O mundo nos parece de acordo com o lugar pelo qual o enxergamos.
Olhado por uma criança de dentro de um apartamento no centro de São Paulo, o mundo pode parecer cinza, barulhento de ruídos, povoado, habitado também por outros humanos que, por motivos incompreensíveis e inaceitáveis para alguns, moram nas calçadas das ruas pelas quais essa mesma criança passa para ir à escola. Por pessoas que se alimentam do lixo gerado por sua própria família.
Olhado por uma outra criança que vive numa comunidade quilombola à beira do rio São Francisco, em Pernambuco, o mundo pode parecer familiar. Barulhento de pássaros, cachorros e barcos. As histórias desta cidade são as histórias de sua família: a tia planta, o avô passa o café, a avó, a mãe e as primas dançam no meio da praça o Samba de Véio para preservar uma tradição que lhes é cara e que hoje ainda ajuda a pagar contas, por meio das apresentações aos turistas que, vira e mexe, aparecem de barco, comem peixe, tomam cerveja e tentam sambar junto.
“De onde?
De onde vem?
De onde vem a canção?
Quando do céu despenca
Quando já nasce pronta
Quando o vento é que inventa
De onde vem a canção?”
Músico consagrado, compositor premiado, especialista em orquídeas, Lenine expõe em “De onde vem a canção?” a dúvida que permeia quem é arrebatado por conteúdos prontos e que, simplesmente, encontram canais humanos para se revelar. Na música, ele duvida da própria inspiração e entrega à Natureza a força criativa.
De onde vem esse mundo de possibilidades que simplesmente nos acontece, seja nas cidades, seja à margem do rio São Francisco, seja na música de Lenine?
Carl Gustav Jung (1875 – 1961) nos propôs que esse mundo de possibilidades vem do inconsciente coletivo, esse poço sem fim de histórias, símbolos e significados inatos que contém toda a existência, de todas as vidas, em todos os tempos. Para Jung, o ser humano já nasce cheio de conteúdos inconscientes, coletivos e familiares.
A perspectiva junguiana que enxerga a partir do inconsciente coletivo é, ao meu ver, ao lado das cosmovisões dos povos originários e da cultura umbandista, capaz de transformar a lamentável realidade contemporânea, majoritariamente branca, capitalista e ocidental, inspirada no olhar que nos adoece: aquele que acredita no indivíduo antes do Todo, no individual antes do coletivo. Essa perspectiva hegemônica da qual brotam inúmeras versões do self-made-man: do vitorioso, do premiado, do melhor, do único, a despeito de tudo e de todos.
Em sua autobiografia, “Memórias Sonhos e Reflexões”, Jung expõe, logo de cara, sua experiência que transcende, em muito, seus próprios desejos individuais: “Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele repousa aspira a tornar-se acontecimento”, ele conta.
Se ao ler esta frase, formos tomados pela ideia do self-made-man, podemos acreditar na farsesca ideia do “foco, força e fé”, infinitamente vendida em cursos, em igrejas, em canais no Instagram e que, mesmo ao fomentar os bilhões da indústria da saúde mental, segue nos deixando adoecidos.
Mas a leitura atenta da Obra Completa de Jung e o acolher compassivo das sofridas experiências descritas pelo autor em O Livro Vermelho revela muito mais. Releva o destino humano do rendimento a algo que é infinitamente maior que si mesmo, que existe há milhões de anos antes e seguirá existindo a outros milhares de anos, depois da possível e provável destruição auto forjada pela espécie humana no planeta.
“De onde vem a canção?
Quando se materializa
No instante que se encanta
Do nada se concretiza
De onde vem a canção?”
Em 20 de novembro de 2025, viveremos no Brasil a inauguração da exposição A alma humana, você e o universo de Jung, que o Museu da Imagem e do Som – MIS aceitou receber já na primeira conversa com o diretor André Sturm.
De onde veio a exposição?
Como ideia, a exposição já nasceu pronta, despencou do céu, foi inventada pelo vento, quando eu estava em shavasana, a posição do cadáver, no yoga, depois de uma sofrida sessão de análise.
Como prática, nasce da redenção do ego ao inconsciente, à ideia que nasceu pronta, que me aconteceu. “O ego pertence à alma e sua maior realização é servi-la”, diz o analista junguiano Waldemar Magaldi Filho, em Fundamentos da Psicologia Junguiana, e que, ao lado de Simone Magaldi, assina a curadoria da mostra.
Em Fundamentos da Psicologia Analítica, que contém a série de encontros que Jung realizou no Institute of Medical Psychology, em Tavistock, o pensador suíço apresenta os preceitos de sua visão a médicos, em 1925:
O inconsciente é a natureza, e a natureza nunca mente. Lá está o ouro, a coisa preciosa, o grande valor. Se tivesse havido oportunidade, eu teria ido mais longe e dito alguma coisa sobre esse tesouro e os meios de assegurá-lo. E os senhores veriam a justificação do método que capacita o indivíduo a manter-se em contato com as imagens impessoais.
OC 18/1 §376
A ideia de uma psicologia que nasce do coletivo, embora quase centenária, é fundamental para esta contemporaneidade adoecida na unilateralidade de “eus”, do singular a despeito do coletivo.
Assim como em Tavistock será necessário tempo para que o visitante se renda ao inconsciente coletivo ao longo da exposição no MIS. Buscamos reunir saberes, olhares e estéticas para mostrar que tudo e todos nascemos de um mesmo lugar, do inconsciente coletivo que nos unifica. De onde viemos e para onde vamos, iguais, mesmo que nossas existências se dêem em tempos, culturas e condições distintas.
A realização da exposição A alma humana, você e o universo de Jung explicita que nada se faz sozinho.
A ideia pode ter-me ocorrido naquele tapetinho de yoga (e esta ocorrência me enche de responsabilidade e honra), porém nada tomaria a realidade em 20 de novembro sem o olhar intuitivo de André Sturm, diretor do MIS, empolgado pela possibilidade desde o momento primeiro, a Waldemar Magaldi Filho e Simone Magaldi por embarcarem com generosidade neste sonho, aos destemidos Naiclê Leônidas, Camila Whitaker e Flavio Vieira, produtora executiva e artistas com os quais trabalhei ao longo dos últimos dois anos. E todos os demais artistas que embarcaram neste mistério do qual todos são íntimos.
“Pra onde vai a canção
Quando finda a melodia?
Onde a onda se propaga?
Em que espectro irradia?
Pra onde ela vai quando tudo silencia?
Depois do som consumado
Onde ela existiria?”
De onde vem, para onde vai, tudo seguirá sendo o mistério batizado de inconsciente coletivo por Jung, pensador considerado o maior do século pela revista TIME e, para mim, altamente necessário para nos ajudar a compreender a contemporaneidade e seus devaneios individualistas e unilateralistas que podem nos matar.
Luciana Branco – Membro Analista em formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
LENINE, Oswaldo. De onde vem a canção?. São Paulo: Casa 9, 2011.
JUNG, C.G. Memórias Sonhos e Reflexões. 20ª impressão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1975.
______ Fundamentos da Psicologia Analítica. 1ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.
MAGALDI, W. Fundamentos da Psicologia Analítica. São Paulo: Eleva Cultura, 2022.

