Resumo: O texto alerta novos estudantes da psicologia analítica sobre a figura crescente do pseudomístico junguiano — aquele que transforma Jung em profeta, a clínica em culto e o símbolo em fetiche. Enquanto o verdadeiro místico, no sentido clássico, aceita o mistério e suporta o numinoso, o pseudomístico vulgariza o termo, reduzindo a experiência simbólica a espiritualismo fácil e revelações instantâneas. Em vez do rigor metodológico defendido por Jung e da dialética necessária à clínica, entrega-se à inflação espiritual. Vende arquétipos como amuletos, prescreve mandalas como talismãs e confunde autoridade analítica com poder mediúnico. O ensaio aponta que a psicologia analítica não é religião, e que o maior risco do analista é tornar-se mágico do inconsciente — seduzido por certezas, respostas prontas e protagonismo espiritual — esquecendo que a psique não se abre a quem a idolatra, mas a quem a pensa com humildade, rigor e dúvida.
Palavras-chave: Pseudomístico. Psicologia Analítica. Jung. Inflação do ego. Fetichização do símbolo. Charlatanismo espiritual. Método dialético. Clínica junguiana. Sombra do analista.
Há um tipo peculiar de devoto que surge em toda tradição que toca o invisível. Ele aparece também entre os junguianos — não nos grupos de estudo sérios, mas nas trincheiras virtuais da espiritualidade de Instagram e nos consultórios que se parecem mais com templos do que com espaços de escuta. É o pseudomístico junguiano, espécie recente e em rápida expansão, que faz de Jung o novo Moisés e da psicologia analítica uma religião revelada. A ironia é que, na ânsia de “honrar o sagrado”, esse pseudomístico junguiano apaga precisamente o rigor com que Jung se esforçou para proteger o sagrado da superstição.
Faço questão de usar o prefixo “pseudo” — falso, imitação de algo, aquilo que parece ser, mas não é — nesta minha fantasia por um motivo específico: a palavra “místico” carrega uma ambiguidade que merece ser discriminada, sobretudo no contexto junguiano.
Em seu sentido histórico mais nobre, “místico” designa aquele que aceita o mistério como parte essencial da experiência humana — alguém capaz de suportar o numinoso sem reduzi-lo a fórmulas racionais, onde o sagrado é reconhecido como realidade vivida e não como espetáculo. Nesse uso clássico, o místico é o que habita e aceita o mistério, não o que o instrumentaliza. Contudo, o termo sofreu uma vulgarização contemporânea, tornando-se sinônimo de espiritualismo fácil, esoterismo performático e práticas de revelação instantânea.
Assim, quando falamos hoje em “místico”, muitas vezes não evocamos o contemplativo que suporta o indizível, mas o adepto do sobrenatural simplificado — o que transforma o mistério em produto superficial. Para quem não leu Jung, é fácil considerá-lo um místico no mau sentido — o que opto por chamar de pseudomístico —, porém para quem conhece profundamente a psicologia analítica, Jung realmente era um místico, mas no sentido de ser aquele que aceitava e suportava o mistério, sem tentar anulá-lo com racionalidade extremada.
Em Psicologia e Religião, Jung advertiu que seu ponto de vista era “exclusivamente científico”, limitado à observação dos fatos psíquicos e sem qualquer pretensão metafísica (§§4–7).
Isso não o impediu de lidar com o símbolo, o mito e o numinoso — ao contrário, foi o que o permitiu fazê-lo com seriedade. Quando o pseudomístico junguiano atravessa essa linha, porém, o que nasce não é o símbolo, mas o fetiche. E o fetiche, diferentemente do símbolo, não transforma: apenas decora o ego com o verniz da espiritualidade.
Esses novos sacerdotes da psicologia não leem Jung, invocam-no. Suas citações são como rezas: curtas, mal traduzidas e sempre a serviço de alguma “intuição inapelável”. Na clínica, trocam o diálogo por oráculos e a profundidade por “canalização de arquétipos” ou algo que o valha. Transformam o inconsciente em entidade falante e a sessão em consulta mediúnica. São herdeiros diretos do mesmo delírio que Jung criticava quando afirmava, em A Prática da Psicoterapia, que o trabalho analítico é antes de tudo um “procedimento dialético” entre duas pessoas, e não uma imposição unilateral de verdades espirituais (§§1–2).
O pseudomístico junguiano não compreende a dialética — ele prefere o monólogo da revelação.
E nesse monólogo, quem fala é sempre ele. Como se o inconsciente fosse um oráculo que o escolheu como intérprete autorizado da psique alheia. Ao paciente, resta acatar a “mensagem” recebida, muitas vezes travestida de insight, mas carregada de projeção e de arrogância. Jung alertou para esse perigo em O Eu e o Inconsciente, quando descreveu a inflação do ego — o estado em que a consciência se identifica com os conteúdos impessoais e passa a crer-se portadora de uma sabedoria supra-humana (Capítulo II da Parte I – Fenômenos resultantes da assimilação do inconsciente).
O pseudomístico junguiano vive precisamente disso: uma inflação espiritual que se disfarça de iluminação.
Mas é preciso reconhecer: esse tipo floresce porque Jung é difícil. Suas obras, circulares, labirínticas e cheias de contradições, não oferecem consolo imediato. É natural que a mente preguiçosa ou imatura, incapaz de suportar o não saber, busque atalhos. O problema é que o atalho muitas vezes acaba por se tornar doutrina. É mais fácil “ativar arquétipos” do que compreender o que Jung realmente quis dizer ao definir o arquétipo como forma vazia, predisposição formal à experiência, e não entidade viva com vontade própria. Mas muitos não resistem à tentação de imaginar-se magos do inconsciente. Afinal, dá mais prestígio dizer “sou guiado por Hécate” do que confessar “estou tentando entender a função transcendente”.
O resultado é uma psicologia travestida de teologia esotérica.
Multiplicam-se “analistas” que prometem integrar a Sombra com cristais, despertar o Self por meio de cartas de tarô, ou “manifestar o arquétipo da Deusa” via danças lunares. São práticas legítimas dentro de certos contextos simbólicos e específicos, mas não dentro da clínica analítica, cujo território é outro. Em Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade, Jung defendeu que investigar símbolos religiosos não é profaná-los, mas impedir que se tornem “ilogicidades chocantes” (§§170–171). Ele sabia que o símbolo precisa respirar dentro do pensamento. Caso contrário, vira superstição.
O pseudomístico junguiano, no entanto, sente horror à reflexão. Para ele, pensar é “racionalizar” e, portanto, profanar. Esquece-se de que Jung era médico, empirista, e que considerava a psicologia uma ciência natural do espírito. O mesmo autor que via sentido nas imagens de sonho também advertia que a fé é um carisma, mas o pensamento é uma faculdade universal (Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade, §170). O problema não é crer, mas fazer da crença uma desculpa para a ignorância.
Esse tipo de crença opera na clínica como anestésico. Em vez de confrontar a dor, ela a dissolve em jargões de energia e frequência. O sofrimento simbólico vira “baixa vibração”, o trauma é “memória cármica”, e a sombra, um demônio externo a ser exorcizado. A psique, reduzida a palco de forças cósmicas, perde sua dignidade humana. E o analista, tomado por essa inflação, acredita ter poder de cura mágica — o mesmo delírio que Jung denunciava em Psicologia e Alquimia, ao advertir que o contato com o inconsciente pode gerar “estados de semelhança a Deus” se o ego atribuir a si conteúdos impessoais (§563). O perigo não está no sagrado, mas no terapeuta que o confunde consigo mesmo.
A tentação pseudomística sempre ronda o analista porque o símbolo, em si, é sedutor.
O símbolo fascina, e o fascínio pede reverência. O problema é quando a reverência substitui o trabalho. O símbolo não está ali para ser adorado, mas decifrado. Jung, em A Prática da Psicoterapia, insistia que “ninguém que pretenda compreender o homem inteiro está dispensado de entender-se com a linguagem dos sonhos” (prefácio do autor). Compreender-se com essa linguagem implica estudo, história, comparação — tudo aquilo de que o pseudomístico foge, porque prefere o êxtase ao esforço.
O pseudomístico junguiano não suporta a ambiguidade. Quer respostas prontas, arquétipos definidos, símbolos domesticados.
Por isso, inventa uma cosmologia que substitui o trabalho simbólico pelo catálogo espiritual: cada deus tem uma função psicológica exata, cada sonho é mensagem do “plano superior”, cada paciente é uma encarnação de algo. O que deveria ser processo se torna dogma. Assim, transforma o inconsciente — que para Jung é vivo, dinâmico e autônomo — em sistema de crenças pessoais, quase um dicionário à sua disposição. Ele confunde a tarefa de acolher e tentar compreender as crenças e vivências do paciente pela arrogância de defini-las. “Desenhe uma mandala amarela e ganhará dinheiro!”, ele ordena. “Tome um banho de ervas e essa tristeza sumirá”, ele define, ingenuamente sem questionar que papel ele está tentando exercer na vida daqueles que nele confiam.
Há, contudo, algo mais perigoso do que a ingenuidade: a má-fé. Muitos desses “analistas mediúnicos” sabem muito bem o que estão fazendo. Perceberam que o mercado do sagrado rende mais do que o da psicologia. Vestem-se de Jung para vender espiritualidade, porque “Jung vende”. A palavra “arquétipo” confere credibilidade, a “função transcendente” soa mística, e “inconsciente coletivo” é uma mina de metáforas para qualquer discurso esotérico. O problema é que, ao fazerem isso, rebaixam a psicologia ao nível de propaganda religiosa.
Jung advertiu em A Prática da Psicoterapia que o analista corre o risco constante de infecção psíquica, isto é, de ser tomado pelas mesmas forças que pretende compreender (§23).
É por isso que a análise pessoal do terapeuta não é luxo, mas exigência ética. O pseudomístico junguiano, porém, dispensa a necessidade de estar em análise: ele “já transcendeu o ego”. A análise é para os mortais, ele já fala com o Self — às vezes, inclusive, ele parece acreditar ser o próprio Self encarnado. E assim se protege da autocrítica — o gesto mais antijunguiano possível.
Por isso, é preciso dizer com clareza: a psicologia analítica não é religião. É um método para compreender os fenômenos da alma humana, e não um sistema de fé. O próprio Jung, ao tratar do tema religioso, afirmava que o analista deve observar a experiência e abster-se de pretensões metafísicas (Psicologia e Religião, §2). A fé pode pertencer ao campo do indivíduo, mas jamais ao método junguiano. Quando o analista confunde um com o outro, cria-se um culto — e o culto, como todo dogma, mata o diálogo.
Aos novos estudantes, portanto, um aviso fraterno, ainda que incômodo: desconfiem de quem fala em nome do inconsciente. Desconfiem de quem reduz um símbolo a um único significado. Desconfiem de quem promete iluminação em oito sessões, ou “cura arquetípica” com mapas astrais. Desconfiem de quem cita Jung como escritura ou para justificar crenças sobrenaturais como método clínico. E, principalmente, desconfiem de si mesmos como psicoterapeutas ou analistas ao se perceberem fazendo quaisquer dessas coisas, mesmo com as melhores das justificativas. E não é preciso fazer isso com uma força condenatória, mas sim com um válido e genuíno desejo de aprendizado e melhoria, para ajustar a órbita da clínica e confrontar as possíveis sombras do charlatão e do falso profeta que todo analista carrega compensatoriamente em si, como um dia escreveu Adolf Guggenbühl‑Craig na obra Abuso de Poder na Psicoterapia.
Ler Jung é difícil — e deveria ser. Seu pensamento exige trabalho, paciência e dúvida. A dúvida, que o pseudomístico teme, é o caminho que conduz à compreensão viva e aos caminhos iluminados pelos símbolos. O resto é charlatanismo travestido de transcendência.
Em um tempo em que “psicologia junguiana” virou etiqueta para justificar qualquer discurso esotérico, o verdadeiro desafio não é ser espiritual, mas ser sério. O símbolo só se mantém vivo quando suportamos a tensão entre o que ele revela e o que oculta — sem a arrogância de transformá-lo em dogma, nem a covardia de reduzi-lo a slogan. Entre o crente e o cético, Jung escolheu o pensador: aquele que duvida, mas escuta.
O místico é um poeta que aprendeu a dançar com a tempestade rumo a sabedoria que convive com a dúvida, o não saber e as incertezas. O mágico é um burocrata que tenta prender o raio numa garrafa para poder vendê-lo como feiticeiro, curandeiro e charlatão. O caminho do mágico é uma tentação constante na jornada do místico. A sedução de acreditar que “eu” tenho o poder, que “eu” sou especial, é o canto da sereia para o Ego. A verdadeira maestria, a sabedoria que Jung tanto aponta, está no paradoxo: o poder autêntico emerge não da afirmação do Ego, mas da sua capacidade de se render a algo maior. O místico encontra a liberdade no serviço. O mágico, por sua vez, torna-se escravo do poder que acredita ter. Um constrói uma ponte para o infinito; o outro, um castelo de areia que a primeira onda do Self inevitavelmente levará.
Waldemar Magaldi – IJEP
O pseudomístico junguiano, esse mágico do inconsciente, escolheu o oposto do que seria o pensador: ele acredita em tudo, menos no trabalho. Mas a psique, essa deusa silenciosa, não se entrega aos que a veneram em busca de poder. Ela prefere enganá-los. Mas concede, às vezes, um lampejo aos que têm a humilde e paciência de pensar.
Leandro Scapellato – Membro Analista em formação/IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata/IJEP
REFERÊNCIAS:
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. 1. ed. São Paulo: Paulus, 2004.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
______ A prática da psicoterapia. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013c.
______ Interpretação psicológica do Dogma da Trindade. 10. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______ Psicologia e Alquimia. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
______ Psicologia e Religião. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
______ O eu e o inconsciente. 27. ed. Petrópolis: Vozes, 2015.

