“O mundo em que penetramos ao nascer, é brutal e cruel – ao mesmo tempo é de uma beleza divina. É uma questão de temperamento acreditar no predomínio do que faz sentido ou do que não faz sentido. Se este último dominasse de maneira absoluta, o aspecto sensato da vida desapareceria cada vez mais, em função da evolução. Mas não é, ou não me parece ser o caso. Como em toda questão de metafísica, ambos são provavelmente verdadeiros: a vida é sentido e não-sentido, ou possui sentido e não-sentido.Tenho a ansiosa esperança que o sentido prevalecerá e ganhará a batalha”.
C. G. Jung – Memórias, Sonhos e Reflexões
Cronos e Kairos são dois seres mitológicos advindos da cultura greco-romana. Cronos refere-se ao tempo de Saturno que é cronológico, quantitativo, lógico e sequencial, o tempo que se mede, o tempo que nos resta para a morte, o “tempo dos homens” – que pode ser dividido em anos, meses, semanas, dias, horas, etc. Kairós representa o tempo de Urano, um momento indeterminado onde algo especial acontece, é a experiência do momento oportuno, teleologicamente, é usado para descrever a forma qualitativa do tempo, o “tempo de Deus” – que não pode ser medido e, por isso mesmo, supera o medo da morte, representado pela expressão latina: Carpe Diem.
Cronos, na mitologia, castrou seu pai Urano, estabelecendo logos aos Caos, assumindo o poder e o trono de seu pai, passando a devorar seus filhos, para evitar futuros oponentes. Por isso, essa perspectiva do tempo é devoradora. Ele também é associado à figura das três Parcas ou Moiras, as “Fiandeiras do Destino”, filhas de Nyx, deusa da noite: Clotho é a tecelã, responsável por tecer o destino com seu fuso mágico, Lachesis é a medidora, distribui e avalia o fio da vida e Atropos, a que corta e dá fim à vida. Ele é cíclico e representa as estações e o tempo rítmico do Sol, entre dormir e acordar, nascer e morrer.
Kairós, por sua vez, nos dá a capacidade artística de compreender a qualidade do tempo. O tempo certo de cada coisa, que nos possibilita transformar o presente num agradável presente! É simultaneamente o tempo de ter tempo, perder tempo e se entregar ao tempo, com paz e fé. O tempo do encantamento, do Once Upon a Time – o era uma vez dos contos de fadas. É o tempo do agora, indo além da ilusão do tempo do relógio, com peso, cheiro, cor, sabor e som únicos, que nos faz re-cor-dar – lembrar para sempre, gravando na memória do coração, decorando, aquela experiência que pode representar toda a existência em apenas um atmo de tempo. Em função da existência do tempo de Kairós nenhum experimento é passível de ser repetido nas mesmas condições, porque cada momento é único. Abalando toda base da ciência mecanicista causal, por ser impossível controlar todas variáveis, por conta do princípio da incerteza e pela influência dos observadores, impossibilitando reproduzir o passado!
Carl Gustav Jung (1875-1961), uma das mais vigorosas expressões da ciência psicológica, trabalhou muito mais a serviço do tempo de Kairós, sempre comprometido com a ampliação da consciência do homem contemporâneo, que é menos abrangente que o homem moderno, por não saber reconhecer e integrar seus aspectos primitivos e ancestrais, presentes na sombra individual e coletiva. Desta forma, passamos a perceber que o homem contemporâneo, sem o engajamento com a modernidade, torna-se um ser individualista, consumista, alienando de si mesmo, tornando-se anestesiado, apesar de normoticamente adaptado a essa sociedade doente e cada vez mais dependente de substâncias psicoativas, lícitas ou ilícitas, e de uma infinidade de produtos supérfluos e descartáveis, num crescente desencantamento do mundo e dessacralização da vida!
O homem contemporâneo, preso exclusivamente no tempo de Cronos, fica oscilando entre as mágoas ou culpas do passado e a ansiedade ou medo do futuro, cada vez mais angustiado com a celeridade do tempo e o sentimento de falta de tempo. Devido sua incapacidade de tirar proveito saudável e pedagógico do passado ou de fazer planejamento com significado e sentido para sua evolução existencial, perde-se de si mesmo. Essa condição acaba, de forma defensiva e reativa à depressão, fazendo-o buscar apenas o consumo e o acúmulo material, negando a dimensão espiritual e, consequentemente, a paz. Isso faz com que ele confunda amor com desejo, transformando toda sua vida numa rotina de conquistas materiais e efêmeras. Uma outra metáfora para representar o contemporâneo e o moderno está na metáfora que Jung usa no Livro Vermelho (Liber Novus), fazendo a diferenciação entre o espírito da época e o espírito da profundeza:
“O espírito dessa época disse-me em voz baixa: ‘Este sentido supremo, esta imagem de Deus, esta interfusão do quente e do frio, isto és somente tu. Mas o espírito da profundeza falou-me: ‘Tu és uma imagem do mundo infinito, todos os últimos mistérios do vir a ser e do cessar de ser moram em ti. Se não possuísses tudo isso, como poderias conhecer?”
Carl Gustav Jung, Liber Novus
Enquanto o homem contemporâneo é um conceito cronológico que representa a totalidade dos indivíduos viventes, ligados ao espírito da época, o homem moderno é aquele que se diferencia da massa, por ter profunda consciência do presente, integrando-a ao espírito das profundezas, para que seu chamado teleológico e seus conteúdos imanentes, advindos do inconsciente coletivo, possam se expressar, egoicamente, no seu engajamento ao processo de individuação, visando sua transcendência. Óbvio que, diante das “tentações” do prazer sensorial, em todos os sentidos, da sexualidade, da vaidade e da riqueza, onde a ilusão do poder e do controle, promete ao homem contemporâneo muita alegria e sucesso, fica cada vez mais difícil, abrir mão desta promessa espetacular, ainda que vazia e líquida, para entranhar-se nos mistérios do amor, enfrentando a sombra, colocando em risco a persona do puritano realizado, até encontrar o sangue do dragão, o estado alquímico da rubedo, para contribuir na realização da alma.
Neste sentido, a prática das terapias, com abordagens junguianas, tem objetivo de despertar o ser moderno e a percepção do tempo de Kairós, no homem contemporâneo. Alinhando-o com o presente, consciente e consequente da sua trajetória temporal, do passado rumo ao futuro, com sentido e significado existencial, comprometido com a história e com a cultura, numa atitude de amor, valorizando o pleno exercício da liberdade, devido a prática da alteridade, e da consciência de si mesmo, apesar das contínuas e presentes interferências do Estado, do mercado e muitas instituições religiosas que, equivocadamente, podem tentar afastá-lo, simultaneamente e reciprocamente, destas conquistas! Para que a Paz e o Bem estejam com ele e sejam praticados por ele, todo tempo, na dinâmica do: Servir para Ser! Conscientemente engajado no processo de individuação que, em última instância, é a consecução teleológica presente na imanência do nosso Self, de acordo com esta citação de Jung, no livro Símbolos da Transformação – §99.
“Como o inconsciente impôs aos homens em última análise um destino espiritual em sentido mais amplo e em grau cada vez maior, foi desta experiência que resultou o conceito de que a figura de Deus é um espírito e este deseja o espírito. Isto não é invenção nem do cristianismo nem dos filósofos, mas uma experiência humana primitiva que também o ateu confirma. (Neste caso trata-se apenas daquilo de que se fala, não de sua aceitação ou negação.) A outra definição de Deus por isto diz: “Deus é Espírito”. A imagem pneumática de Deus acentuou-se de forma especial no Logos, conferindo ao “amor” que provém de Deus um caráter especial, isto é, o da abstração, como o encontramos no conceito do amor cristão.”
Carl Gustav Jung, Símbolos da Transformação
Autor: Waldemar Magaldi