A projeção é um dos mecanismos mais intrigantes da psique. Ao mesmo tempo que é um mecanismo defesa do ego, como já explicava Freud, é um mecanismo que confere sentido e significado aos conteúdos internos representados no mundo externo, conforme nos ensinou Jung. É um mecanismo defesa porque entra em ação quando o ego, ameaçado diretamente por um conteúdo que lhe é incômodo, age quase que instantaneamente para achar um “lugar” para encaixar este conteúdo, garantindo que este não seja atribuído ao próprio sujeito. Mas ao mesmo tempo confere sentido e significado às coisas porque, como diz Jung, tudo que existe no mundo exterior aconteceu antes no mundo psíquico (JUNG, OC 8/2). É como se quase tudo – ou tudo – fosse projeção!
Contudo, por mais simples que seja a explicação sobre a projeção, lidar com sua dinâmica é desafiador para todos nós, afinal, o multiverso da psique encontra terreno fértil na externalidade para se expressar, mesmo que o ego possua uma fantasia de controle e poder absoluta, achando que só ele pode dar conta de entender e explicar tudo, tal como algumas vertentes da psicologia defendem.
E é assim, de projeção em projeção, que nossa vida vai acontecendo. Atribuímos valores às nossas relações humanas (mãe, pai, família), qualificamos nossas experiências (profissionais, relacionais, triviais) e desenvolvemos crenças diversas (religiosas, místicas, fantasiosas). Junto a tudo isto vai surgindo uma série de preconceitos “de cada dia” que vão paulatinamente colando ao ego, e categorizando nossa forma de administrar a vida.
Pensamos que quando é evocada a palavra “preconceito” naturalmente emergem temas comumente associados a ela, tais como racismo, questões LGBT+, gordofobia, misoginia e alguns outros. Mas ao incluir a expressão “de cada dia” junto à palavra preconceito, nos referimos a coisas mais triviais, como por exemplo, preconceito contra pessoas que gostam de sertanejo; preconceito contra quem gosta de rock; preconceito contra quem gosta de curtir festas lotadas; preconceito contra quem prefere curtir coisas com poucas pessoas ou solitariamente; preconceito contra quem fala “todes”; preconceito contra quem fala “todos”; preconceito contra quem fala alto demais; preconceito contra quem fala baixo demais; preconceito contra os mendigos; preconceito contra os arrogantes; preconceito contra os feios; preconceito contra os bonitos; preconceito contra a esquerda; preconceito contra a direita.
Nossa intenção com este artigo não é argumentar que deveríamos despir-nos de todos os preconceitos que nos habitam, ainda que idealmente isso seria bastante nobre. Mas entendemos ser uma tarefa por demais penosa. O que gostaríamos é de chamar a atenção para que o nosso ego possa refletir a respeito da persona social que, infelizmente, é construída preponderantemente em cima de preconceitos, muitas vezes contribuindo para que o ego, esse complexo dominante, se suponha onipotente e capaz de, em 100% das vezes, atribuir sentido e significado a algo que lhe deixe em situação confortável, isentando-se de qualquer responsabilidade de olhar para outro lugar que não apenas o que acontece no mundo externo, ignorando o mundo interno.
Jung (OC 3) deixa claro que o ego é um complexo dominante, talvez um dos mais importantes, mas que habita um universo de complexos que também almejam se realizar. Cabe ao ego “gerenciar” essa situação. E a questão é que inevitavelmente os complexos se realizam: pelos sintomas, pelas angústias, pelos sonhos, pelas doenças, pelas expressões artísticas e pelas projeções! Não poderíamos dar, portanto, outros caminhos possíveis para nosso mundo interno se realizar que não apenas pela projeção?
Por ser um mecanismo complicado, a projeção é concomitantemente construída pelo arsenal arquetípico da psique, portanto imanente, mas ao mesmo tempo é retroalimentada pelas experiências que vamos adquirindo ao longo de nossa vida. Muito provavelmente uma pessoa que nasceu numa região da Terra que é essencialmente fria, terá uma relação com frio muito diferente de quem mora num país tropical e bate os queixos de frio quando está 14º, maldizendo a temperatura “fria”. E aí surgem aqueles que têm preconceito contra o fio, os que têm preconceito contra o calor, etc.!
Se nossos preconceitos de cada dia se limitassem a situações triviais como algumas das que descrevemos, talvez não causassem tanto problema. Essencialmente, esse preconceito de cada dia, que tem como base fundante o mecanismo da projeção, se dá especialmente nas relações entre as pessoas. E aqui nos referimos às relações em sentido amplo: de amizade, familiares, profissionais, românticas, todas as possíveis. Na maioria das vezes, quando dizemos “me identifico muito com fulano”, o que ocorre, na verdade, é uma projeção positiva de si: enxergamos no fulano algo que não parece ameaçador ao ego e que representa algo de bom.
Por outro lado, e aqui residem os problemas, as projeções dos nossos conteúdos sombrios, ou de complexos que intencionam se realizar, encontram ótimos “espelhos” nos outros para se enxergarem. Mas o ego, que não necessariamente quer ter de lidar com estes conteúdos, apenas os ignora, qualificando, preconceituosamente, a pessoa que, em essência, está funcionando apenas como um espelho para um conteúdo que é originalmente nosso.
Em termos de análise esse é o nosso desafio enquanto analistas, levar nossos analisandos a retirarem suas projeções e, consequentemente, seus preconceitos de cada dia, para reconhecerem quanto daquilo que causa tanto incômodo na sua relação com o outro é, na verdade, de si mesmo. Evidentemente que existem pessoas que são chatas, assim como existem pessoas que são legais, mas, mesmo assim, se queremos ter uma atitude de autoconhecimento genuína é imperativo que problematizemos nossas qualificações de cada dia em termos de dinâmica da nossa própria psique, e não apenas culpando alguém.
Que tipo de incômodo um mendigo sugere? Seu provável cheiro ruim, que evidencia a condição da minha sujeira psíquica? Que tipo de incômodo uma pessoa arrogante me causa? Evidencia minha sensação de falta de inteligência ou astúcia diante de uma situação? Ou ainda deixa claro quanto minha “síndrome de pequeno poder” não passa de um desejo fantasioso?
Categorizar, classificar, sistematizar, qualificar, valorizar coisas é uma das nossas grandes heranças em termos de desenvolvimento da consciência da espécie humana. Jung (OC 6) deixa claro quão complexas são as funções psíquicas da consciência, pensamento, sentimento, sensação e intuição. Mas é também na mesma obra que Jung faz um esforço tremendo para nos chamar atenção para função simbólica da psique, isto é, aquela que sai das literalidades e nos convida a experimentar metaforicamente uma situação, vide os exemplos do mendigo e do arrogante que mencionei acima. Em outras palavras, quanto de arrogância poderia habitar um mendigo e quanto de mendicância poderia habitar um arrogante?
Ao investigar os sonhos Hillman (2018) sugere que fiquemos com a imagem, sem querer lhe atribuir significados que trarão apenas satisfação ao ego. Conversar simbolicamente com os nossos preconceitos de cada dia, nos permite sair das projeções e enxergar quanto estamos “recheados” daqueles conteúdos que mais repudiamos, como também destaca claramente Hollis (1999). É fácil lidar com o que gostamos ou com as projeções positivas no mundo externo, mas lidar com a sombra, ou com os complexos, é extremamente incômodo, pois isso é revelador em termos de reconhecimento da fragilidade do ego diante dessas forças inconscientes. Ficar com a imagem é refletir sobre ela, tecer considerações sobre ela, como se nós mesmos fôssemos uma terceira pessoa, saindo do estado de “entorpecimento” que a projeção nos deixa.
Johnson (1987) deixa claro que que um apaixonamento é uma espécie de envenenamento, palavra que vem de “Vênus”, a versão romana da deusa mítica Afrodite. E o apaixonar-se, de maneira extremamente simples, nada mais é do que uma potente projeção. Mas também sabemos que em muitas situações essa mesma pessoa que outrora foi objeto de paixão, torna-se uma das mais repugnantes possíveis. Seria um “milagre” essa mudança tão repentina? Na verdade, não. O que acontecia era uma forte projeção atrativa, que dá a ilusão de positividade, que mudou seu polo para uma projeção repulsiva, dando a ilusão de negatividade. Com isso, até aquilo que chamamos de positivo ou negativo, passa pelo preconceito. Nem tudo que é negativo é patológico e nem tudo que é positivo é saudável. Assumindo que toda projeção tem origem psíquica, significa que a mesma pessoa, aquela absolutamente atraente e que se torna absolutamente repugnante, simbolicamente, habita nossa psique. Sem que haja projeção, não há paixão, nem repulsa. Aquilo que não desperta nossa projeção nos é, genuinamente, indiferente (não nos referimos àquela indiferença forçada que muitas vezes é ressaltada somente como recurso do ego para esconder a inveja sombria, que neste caso é o desprezo).
Esse mesmo mecanismo do apaixonamento vai se refletir nas inúmeras projeções que fazemos em cada dia de nossa existência. O não reconhecimento destes conteúdos como nossos só causará mais discórdia, mais intolerância, mais brigas e mais estabelecimento abstratos de limites relacionais e geográficos. Não significa que tudo deve ser aceito, pois é preciso que saibamos entender quais são os limites éticos nas relações. Mas simplesmente evitar relações com outras pessoas porque elas são “chatas”, ou possuem preferências diferentes daquelas que consideramos mais nobres, é bastante distante daquilo que Jung chamou de individuação. Aliás, precisamos questionar o que este “chato” desperta em nós, porque no fundo ele é aquele que incomoda. Se aproveitamos essa oportunidade como um exercício de ampliação da nossa consciência, buscaremos entender o que é “chato” em nós e que nos deixa “achatados” e com isso, podemos refletir sobre as imagens das possibilidades de nossa amplitude interior.
Ter a oportunidade de se reconhecer um pouco no outro, naquilo que é bom e naquilo que é ruim, é uma das dádivas que o Self nos deu, pois assim temos a chance de perceber quão perfectíveis somos, e não perfeitos, como muitas vezes o ego se imagina. Do contrário, corremos o mesmo risco de Narciso: ficarmos presos a uma imagem “perfeita” de nós mesmos que jamais será alcançada.
Mas nada disso será vivenciado sem a responsabilização, sem uma atitude da consciência que “autorize” a pessoa (ou o ego) a olhar para as suas projeções e seus preconceitos de cada dia, evitando sentenciar outras pessoas (o que é diferente de julgar, verbo que muitas vezes usamos em substituição a sentenciar).
Ao nosso ver, entreveros e situações ruins entre pessoas podem ser resolvidas com uma conversa honesta, respeitando e escutando o que o outro tem a dizer, mas ao mesmo tempo falando de si, expondo o que sente e o que entende da situação, não com o objetivo de criar “novas” sentenças, mas sim de ampliar as possibilidades de compreensão de si e do outro naquele contexto, assim como nos ensina Hillman (2018) sobre a atitude diante das imagens oníricas.
Além do mais, em sentido mais aberto, é interessante experimentar novas experiências, como ir a um show lotado de pessoas, mesmo que não goste muito, ou ter um retiro meditativo num fim de semana, mesmo que não goste muito. Adentrar a novas experiências é também dar a possibilidade de desenvolver novos repertórios, atualizando nossos complexos com outras formas de vivências, construindo, portanto, novas possibilidades de projeções saudáveis, reduzindo substancialmente o preconceito de cada dia.
Rafael Rodrigues de Souza – Analista ditada em formação do IJEP
Analista Didata: Waldemar Magaldi
Referências
HILLMAN, James. Uma investigação sobre a imagem. Petrópolis: Vozes, 2018.
HOLLIS, James. Os pantanais da alma. São Paulo: Paulus, 1999.
JOHNSON, Robert A. We: a chave da psicologia do amor romântico. São Paulo: Mercuryo, 1987.
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos – OC 6. 7ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique – OC 8/2. 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.