Já tive a oportunidade de participar de alguns congressos internacionais no campo da Psicologia Junguiana e por diversas vezes me deparei com apresentações de analistas, renomados ou não, nas quais eles se limitavam a ler seus textos, mecanicamente, sem qualquer expressão de afeto ali envolvida – apesar de ao final sempre ter uma sessão de perguntas e respostas. Era basicamente uma leitura fria, sem demonstrar o atravessamento emocional que o tema causava no analista. Isso não significa que não tive experiências interessantes, profundas, marcantes e emocionantes, como as leituras de Gustavo Barcellos e Roberto Gambini no último congresso da Journal of Analytical Psychology (em abr/2021), simbolicamente sediado em São Paulo (na prática, foi online).
Mas o que está por trás de um analista que se “esconde” atrás da leitura de um texto em congresso, ou da persona de um psicoterapeuta afastado de seu cliente, que não se expõe em qualquer situação, na fantasia de que seus analisandos “acessem” suas vidas? “Não gosto de me expor”, dizem eles.
Não sei se exagero ao dizer que a grande maioria de nós possui vidas ordinárias, ou seja, trabalhamos, estudamos, pagamos contas, cuidamos da casa, dos filhos, da família, escrevemos, assistimos séries, filmes, comemos, tomamos banho e por aí vai; poucos de nós estamos, neste momento, construindo um grande feito para humanidade que não possa ser revelado. E até penso o oposto, se estamos fazendo algo pela humanidade, aí sim é que isto precisaria ser massivamente exposto. Normalmente o que corre nos porões dos segredos são mazelas quase sempre contra um grupo de pessoas, com pouco ou nenhum benefício coletivo maior – recorro aqui às minhas experiências de “projetos confidenciais” no meu período corporativo, nos quais todos eles tratavam basicamente de demissão de pessoas.
E é neste ponto que parece haver um aspecto sombrio constelado nos psicoterapeutas, não me referindo especificamente àqueles que praticam a Psicologia Junguiana, que é o estereótipo do profissional de palavras empoladas, e que se limita a buscar destaque na área acadêmica – a qual sabemos, é um extrato mínimo da sociedade e que não reflete a realidade da maioria das pessoas –, mas que não se expõe de outras maneiras que não as demarcadas pela égide acadêmica. Isso não se trata de um demérito ou da ausência de necessidade de se ter pessoas pensantes, pesquisadoras e influenciadoras no mundo acadêmico. Contudo, se cremos que podemos contribuir positivamente para promover as mudanças que queremos ver no mundo, precisamos nos expor, levar nossas ideias adiante, para que estas passem pelos crivos das críticas ou aprovações, de forma que elas ganhem vida e senso comunitário.
Há também aqueles profissionais que não revelam suas ideias com medo de plágio ou algo assim, ou até mesmo por egoísmo, acreditando que elas são suas e não uma composição das ideias de outros pensadores. As ideias são atravessamentos que nos possuem e não nós que as possuímos. Mas talvez por uma fantasia de unanimidade, brilhantismo ou egoísmo, as seguramos conosco, tais como crianças em fase de desenvolvimento que se apoderam de seus brinquedos, muitas vezes ouvindo de seus pais “empreste ao amiguinho para ele brincar também”, enquanto internamente o “amiguinho” é fuzilado por uma torrente de ódio momentâneo – pelo menos foi assim comigo.
É claro que não podemos nos esquecer do trabalho de Guggenbühl-Craig (2004) quando ele descreve os mecanismos sombrios do efeito da lisonja nos psicoterapeutas e profissionais das áreas de ajuda. Neste sentido, a hiperexposição, de maneira análoga à falta de exposição também pode revelar uma fantasia de poder e brilhantismo de quem o faz.
A provocação aqui não é para sairmos falando compulsivamente e aleatoriamente, a exemplo da popular anedota da carroça que faz mais barulho por estar vazia. A proposta é que nos capacitemos, interna e externamente, todos aqueles que se consideram neste campo das psicoterapias, para levar ao mundo conteúdo qualificado, com alma, saindo de nossas personas empoladas e criando comunidades de conhecimento. Aliás, a graduação de Psicologia, que apesar de ser uma ciência humana, estimula o distanciamento do aluno de seus clientes, influenciada fortemente pelas ideias da psicanálise clássica – e que perversidade é esta impingida aos alunos e egressos de Psicologia, que reproduzem esta persona por anos a fio, defendidos por meio de suas técnicas, testes, métodos, práticas interpretativas, emulando uma Psicologia-Médica, não entrando em contato com suas almas e replicando isso aos seus clientes.
Uma das coisas que me chama atenção na vida de Jung é que ele representa aquilo que ele descreveu em sua obra, e mesmo sendo comumente descrito como um tipo introvertido intuitivo, sempre se expôs, talvez até por certa arrogância intelectual, mas também por enfrentar e integrar a sua extroversão sombria. É “culpa” destes movimentos de Jung que chegamos até ele (imaginemos se ele guardasse tudo que nos trouxe com seu trabalho exclusivamente dentro de seu consultório?). Em uma das passagens da biografia de Jung elaborada por Bair (2006a, p. 136), ela descreve que “Jung gostava de ensinar na Universidade de Zurique e levava suas palestras a sério. Estava sempre bem-preparado e, ao contrário de muitos outros professores (especialmente Bleuler), nunca esperava até o último momento para aparecer. Ao contrário, chegava cedo e sentava-se calado em um dos bancos do corredor, onde qualquer pessoa que estivesse interessada no assunto podia falar com ele ou lhe fazer perguntas”.
Se tem algo que Jung fez em sua vida, foi se expor, seja pela obra que produziu, pelas aulas e seminários que conduziu, e até mesmo pela ousadia de expor seu próprio processo de “análise pessoal” quando meticulosamente organizou o Livro Vermelho, dando a entender que visava sua publicação mesmo que póstuma. O mesmo pode ser dito mais diretamente do Memórias, que se trata mais de um processo interno de Jung do que de acontecimentos factuais de sua vida. Mesmo na forma de conduzir as sessões com seus analisandos, ele tinha uma postura absolutamente aberta, a exemplo do que diz Joseph Henderson ao falar de seu próprio processo: “Durante a maior parte das entrevistas, ele ficava andando de um lado para o outro, gesticulando enquanto falava, e falava de tudo o que lhe vinha à cabeça, fosse a respeito de um problema humano, de um sonho, uma reminiscência pessoal, uma história alegórica ou uma piada. No entanto, podia ficar quieto, sério e extremamente pessoal, sentando-se quase que desconfortavelmente perto demais e dando uma interpretação oportuna do problema pessoal miserável da gente, de modo que a amarga verdade de fato fosse incorporada […]” (BAIR, 2006b, p. 35).
Mais próximo ao fim de sua vida, Jung se viu convencido a escrever um texto que fosse menos acadêmico e mais próximo de um público amplo, que é “O homem e seus símbolos”. Para tanto, mais uma vez ele revela sua vocação de compartilhar suas ideias de maneira colaborativa e participativa, ao afirmar que queria “que o livro não fosse uma obra individual, mas sim coletiva, realizada em colaboração com um grupo de seus mais íntimos seguidores […]”(FREEMAN in JUNG, ORG., 2008, p.8).
Neste momento da humanidade em que somos invadidos pelas redes sociais e nas quais começou a nascer, especificamente no Brasil, em 2014 (mais ou menos) uma nova forma de comunicarmos a psicoterapia às pessoas usando estas redes, movimento este que foi e é liderado por Bruno Soalheiro e Bruno Rodrigues, precisamos nos beneficiar destas e de outras ferramentas para levar conteúdos com profundidade e qualidade para a maioria das pessoas. E isso implica em se expor!
Não estou fazendo um ode à extroversão, até porque o ato de se expor não se limita ao tipo psicológico dominante (lembremos de Jung) e sim ao atravessamento emocional que a exposição causa em quem o faz. Inclusive é importante mencionar a confusão que se faz quando se associa o tipo extrovertido a alguém que possui mais capacidade de se expor do que o tipo introvertido. Isto é um erro. Enquanto o extrovertido vai em direção ao objeto, o introvertido subjetiva o objeto, e nas duas dinâmicas é plenamente possível se entusiasmar e contagiar pessoas com as exposições quando estas estão repletas de alma. O medo da exposição é ao mesmo tempo o medo de não satisfazer o público, isso vale para extrovertidos e introvertidos, e que em última instância, é o medo da insatisfação consigo mesmo. Quando assumimos que tudo aquilo que levamos à público deve atender a um ideal de ser irretocável, estamos revelando um grande apego do ego à persona da perfeição, a ao mesmo tempo mostrando um aspecto sombrio da insegurança.
Até com a ajuda de Jung, entendo que cada um de nós possui estilos diversos e que cada um tem mais ou menos dificuldade em gravar um vídeo ou escrever um texto público, por exemplo. Mas o que fazer com isso? Reter nosso conhecimento às paredes do consultório ou aos muros acadêmicos? Penso que isso é ruim. Um dos mais brilhantes livros que já li sobre o ato de se comunicar publicamente é o “TED Talks: o guia oficial do TED para falar em público”, de Chris Anderson. Anderson (2016, p. 225) afirma que “À medida que os homens se aproximam uns dos outros – não apenas graças à tecnologia, mas por uma compreensão recíproca cada vez mais profunda –, encontram novas maneiras de ver em cada um de nós as coisas que consideramos importantes. E é assim que as barreiras desmoronam e as almas se unem.” – essa mesma lógica poderia ser aplicada ao encontro analítico, e olha que ele sequer é um autor junguiano.
A despeito da fantasia solar de aparecer publicamente como um efeito perverso da lisonja, entendo como necessário esse dever público do psicoterapeuta, que antes de mais nada, é uma pessoa. Esconder-se atrás da persona de analista empolado, ainda que eu realmente goste do estímulo intelectual que o universo acadêmico pode proporcionar, é um desserviço à humanidade. Não precisamos de analistas que se prostem diante de seus textos para ler suas produções. Não precisamos de um congresso para escutar textos lidos, isto pode ser feito usando a internet, a exemplo desta leitura que você está fazendo agora. Não precisamos de analistas que se escondam por trás de suas fantasias de perfeição. O que precisamos, a exemplo do que Anderson diz, é da união de almas, ainda mais fortemente neste momento sociopolítico tão cruel pelo qual o Brasil passa.
Jung (2013, OC 16/1) destaca a importância do processo de análise do analista (na verdade, atender uma pessoa sem passar pelo próprio processo de psicoterapia deveria ser proibitivo) para que este reconheça sua sombra e seus complexos, a fim destes não serem projetados no analisando, e aqui podemos assumir que o mesmo vale para as exposições públicas. O medo de gravar um vídeo ou algo assim, muitas vezes revela um “arrogância contrária” na qual a pessoa tem uma fantasia de perfeição tão absoluta que qualquer tipo de imperfeição que ela perceber ao se observar indiretamente, lhe será ameaçadora, revelando que a almejada perfeição é inexistente, e que “cruel” isto pode ser.
Cada um tem sua fortaleza. Alguns são melhores com textos, outros com vídeos, outros com palestras, outros com aulas, com grupos, enfim, há uma miríade de possibilidades de se expor, usando os recursos que melhor nos caibam, mas nenhum deles será possível de se atingir sem reconhecer que por trás de qualquer um de nós existe algum aspecto falível, que pode denunciar nossa fantasia de “ser especial”.
Querer fugir desse embate consigo, no frigir dos ovos, é uma perda de tempo, pois como diz Wilhelm Reich no auge da sua ira contra os pseudointelectuais, os quais chamou pejorativamente de “zé-ninguém” e que o criticavam, todos nós temos nossa sombra, ou em suas palavras: “Áh, zé-ninguém, você tem profundezas sim, mas não sabe. Você tem é medo, um medo mortal das suas profundezas. É por isso que não as sente nem as vê. É por isso que você tem vertigens quando olha para as profundezas, que você cambaleia como se estivesse à beira de um precipício. Você tem medo de cair e perder seu ‘caráter especial’ […]” (REICH, 1998, p. 116).
Apesar da nossa individualidade, somos seres gregários, como diz Waal (2010), ou seja, aqueles que carecem de organizações sociais para sobreviver. Mas a nossa sobrevivência vai além da biossobrevivência. Carecemos cada vez mais de pessoas pensantes, com massa crítica, com capacidade de se insurgir contra injustiças de qualquer natureza. Para tanto, é fundamental que nos apresentemos à nossa própria humanidade, enfrentando nossas inseguranças, nossas sombras, para expor nossas ideias criativas e fazer parte desta construção de mundo que desejamos, a exemplo do que Jung, aquele que mais inspira a nós junguianos, fez.
Rafael Rodrigues, membro analista em formação no IJEP
Referências
ANDERSON, Chris. TED Talks: o guia oficial do TED para falar em público. 1ª ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.
BAIR, Deirdre. Jung: uma biografia, volume I. São Paulo: Globo, 2006a.
BAIR, Deirdre. Jung: uma biografia, volume II. São Paulo: Globo, 2006b.
FREEMAN, John in JUNG, Carl Gustav (Org.). O homem e seus símbolos. 2ª ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia: e na medicina, serviço social, sacerdócio e magistério. São Paulo: Paulus, 2004.
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia OC 16/1. 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
REICH, Wilhelm. Escute, zé-ninguém. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.