Numa discussão recente a respeito de atendimentos psicoterapêuticos, fomos brindados com a exposição de um caso de uma jovem de 20 anos que estava queixosa por ter tido que terminar seu relacionamento com um colega. Ela tinha grande atração por ele, mas o achava um “careta”, porque ele queria transformar a relação deles para de ficante, fixo e fiel! Ou seja, aquilo que antigamente chamávamos de namoro sério.
Quando começamos a buscar melhor compreensão da queixa, chegamos ao cerne do sofrimento, a moça tem fortes convicções de se manter identificada com a pansexualidade, surpreendendo-nos inclusive com um discurso de que ela é até partidária do sexo incestuoso, afirmando que se “rolar” desejo e atração bilateral entre mãe e filha ou filho, pai e filha ou filho, e entre irmãos, hétero ou homossexualmente, qual o problema?
Essa exposição nos leva a refletir a respeito dessa imensa diversidade de identificação sexual. Creio que já temos catalogadas 69 possibilidades de tipos de orientação sexual e sexualidade, quando são combinados a identidade sexual mentalmente reconhecida e aceita, a atração sexual, a forma de expressão e a condição fisiológica de cada indivíduo, que agora pode ser modificada por intervenções cirúrgicas e químicas.
Contudo, o que tudo isso significa? Será que existe alguma razão para que essa diversidade, atualmente, esteja tão evidenciada, despertando ativistas de todas as crenças, validando ou negando a ideologia de gênero e todas as demais teorias, geralmente influenciadas pela identificação de seu idealizador e seguidores?
Parece que essa realidade vem confirmar a teoria de Freud, de que o princípio do prazer, via sexualidade, é a base fundante de todas as motivações humanas! Isso nos coloca numa condição de absoluto hedonismo, onde o corpo e o ego viram referências absolutas e dominantes. Já a alma, coitada, fica num plano secundário, a meu ver, tentando se expressar nos inúmeros sintomas psiquiátricos e todos os demais, que são psicossomáticos.
Outra possibilidade de compreensão desse quadro seria considerar que estamos tratando do contrário do prazer, isto é, de um processo de alienação da propriocepção corporal. Desse modo, a performance substitui a vivência, reiterando essa cisão entre corpo e alma. Neste caso, o corpo passa a ser apenas um laboratório alheio de toda e qualquer experiência, que não pertence à essência do ser. Este pode sofrer qualquer tipo de estímulo, independentemente de estar atrelado à dor ou ao prazer, inclusive justificando a crescente onda de automutilação.
Na perspectiva da analise junguiana, vamos em busca do simbólico, restabelecendo a capacidade imaginativa e toda sua potencialidade curativa. Isso se faz no sentido de promover a integralidade do ser, contribuindo para diminuir essa triste realidade, onde o literal passou a ser a única condição aceita!
Desta forma, precisamos refletir simbolicamente qual o significado e o sentido desse momento para a natureza anímica da humanidade, onde o ego está absolutamente encantado pela imagem da persona materialista, idealizada e projetada nas redes sociais. Nesse contexto ele atua como senhor absoluto sobre o corpo e o princípio de prazer ou alívio do desprazer imediato e, não raro, inconsequente. Por isso, temos tantas meninas de 13 anos grávidas, sem saber quem é o pai, porque a concepção aconteceu no bonde do baile funk, ou em qualquer tipo de balada!
Nosso desafio é tirarmos a primazia da imagem superficial, para que a alma possa assumir seu lugar de centro direcionador da vida. E, assim, diminuir a exuberância da perspectiva unilateral e materialista. Arquétipos e instintos são a priori. Já o gênero é biológico, pois vem de gene. Tanto que só existem duas possibilidades genéticas em função dos cromossomos: XY, para o masculino (Yang), e XX, para o feminino (Ying). Cada um destes princípios confere características únicas e universais para formas, cores, sons, texturas, cheiros e sabores. Salvo, obviamente, exceções raras e que possuem condições aberrantes e patológicas.
O que se faz com a identidade, atração e comportamento sexual é outra questão e, salvaguardando a pressão sócio cultural deste hedonismo e supervalorização do prazer corporal, não são opções. Tratam-se, na verdade, de condições anímicas, na forma de um imperativo da alma sobre o corpo. Por isso mesmo, qualquer forma de expressão deve ser respeitada, acolhida e amada, desde que não seja promiscua, abusiva e invasiva.
Como estamos dominados pelo pensamento binário e excludente, sofremos as consequências do conflito entre a ideologia de gênero. Esta acredita na ausência de sexo a priori, afirmando que ele vai surgindo como resultado de construções culturais e sociais. Do outro lado, a ciência biológica, reduz tudo ao gene, eliminando as influências culturais e sociais, chegando a negar a epigenética, isto é, a influência da crença na expressão genética. Para superarmos essa crise, precisamos encontrar o caminho do meio, aquele vai integrar a polaridade, por meio da função transcendente. A alma habita o corpo e vive na sociedade e é ela que deve ser valorizada, respeitada e aceita, independentemente da forma de expressão criativa que cada um assuma.
Precisamos resgatar a relação com a alma e valorizar a condição única, complexa e criativa de cada ser humano. Tratar o ser integral, ajudando-o a ingressar conscientemente no processo de individuação. Ao invés de ficarmos tentando catalogar e definir sua identidade, atração e atitude sexual, patologizando ou engessando-o num estereótipo qualquer, onde sua característica peculiar passe a ser mais importante do que sua alma. A alma é perene, hospede transitória de matérias orgânicas compostas em organismos que são finitos e decompostos, apesar de animar o corpo. Acho que a dimensão genética do gênero do organismo hospedeiro, apesar de influencia-la na sua experiência existencial, não é preponderante, porque alma não tem gênero! Evidenciar a matéria é uma ilusão transitória. A Psique é a informação que permanece na forma de energia. Esta sim, de forma perene!
*WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
Identidade de gênero e a alma*, texto de Waldemar Magaldi, analista junguiano do IJEP.