Em momentos importantes e às vezes cruciais de sua obra, Hannah Arendt (1906-1975) e Carl Gustav Jung (1875-1961), cada um a seu modo e também a partir do campo próprio de atuação de cada um, trazem para o debate o tema do Mal. Arendt o faz na esfera do pensamento político, e Jung, da psicologia.
Ducunt volentem fata,
nolentem trahunt.[1]
Um pequeno ensaio sobre o Mal
Aquilo a que Carl Gustav Jung dá o nome de “materialismo” do pensamento contemporâneo, em sua matriz mais saliente, foge como o Diabo da cruz de uma conversa séria, honesta e responsável sobre o tema do Mal. Foge? Como seria possível fugir de algo que não está em nós ou em nós reside, mas que em nós é, ou, mais precisamente, que em nós acontece, como parte integrante do drama trágico-cômico do próprio existir humano?
Quanta ousadia a nossa! Julgamos poder, por meio de alguma espécie de mágica, varrer para debaixo do tapete algo que compõe de modo indelével tanto os níveis, digamos, mais rasos (do inconsciente pessoal, na visão junguiana) quanto mais profundos (do inconsciente coletivo) do humano ser e do humano agir. O “mais profundo”, neste caso, pode assumir muitos e diferentes significados. Um deles, porém, quando se trata do Mal, reveste-se de uma importância bem difícil de poder ser avaliada. Porque é nesse nível mais profundo, com efeito, que as histórias individuais de todos nós se banham no rio imenso da espécie, numa solidariedade de tipo arquetípico que abrange também, e necessariamente, o Mal.
Doce ilusão, portanto, a infeliz ideia de querer esconder o Mal de qualquer uma das muitas esferas da vida. Trágica ilusão, aliás! Porque a falta de consciência do Mal, somada às múltiplas artimanhas que arquitetamos para escondê-lo, negá-lo ou imaginá-lo ausente, acaba por impedir um diálogo saudável, ainda que difícil, com a vocação humana para a vida, o significado, a felicidade possível. Vocatus atque non vocatus, Deus aderit (Chamado ou não, Deus comparece, está presente): o oráculo de Delfos, gravado em pedra sobre a porta de entrada da casa de Jung em Küsnacht, Suíça, poderia ser neste ponto acionado também em sua relaçao com o Mal. De fato, o Mal nem precisa ser invocado. Nunca.
Do Mal não se escapa, assim como sem o confronto com o Mal não se avança.
O não-confronto com o Mal nos mantém como reféns acorrentados do sombrio e ilusório mundo da caverna platônica. Dali, desse mundinho pequeno e triste, mas com os seus atrativos, como entende Platão, só mesmo Deus, só o Eros-Deus para nos arrancar – Jung chamaria esse gesto erótico, essa escolha de vida, de “metanóia”, do grego = mudança, transformação, conversão.
Fugir dali não é fácil; como regra, custa muita dor: a dor representada imageticamente na alegoria da caverna pelo ofuscamento inicial da visão do protagonista, quando este ousa encarar as sombras e se voltar para a luz; a dor que toda ruptura com com a vida besta transporta consigo; outras tantas dores, que dor parece que nunca acaba. É, no final, a dor do sacrifício da própria vida: a dor de se morrer assassinado, curador-ferido ad extremum, ao se retornar com o elixir da bem-aventurança. O herói da história é trucidado pelos habitantes da caverna. Prefere-se a Sombra à Luz. Mas, se a semente não morre…
Neste muito breve e em parte despretensioso texto sobre o Mal, eu pretendo lançar mão daquela liberdade de espírito que o gênero de expressão chamado ensaio permite, e até pressupõe, para dizer umas poucas coisas sobre esse tema sempre e infelizmente muito atual e em certo sentido fascinante. Um tema extremamente difícil de se abordar, convenhamos. Porque com ele você toca irremediavelmente no Mistério tremendum et fascinans, na visão de Rudolf Otto. Essa liberdade na produção deste texto inclui, também por isso, a mobilização do mundo encantado dos símbolos, que mais compreendem (no sentido original latino de comprehendere) que explicam, que abrem para múltiplos sentidos possíveis, que chamam para o diálogo e, terapeuticamente, também nos libertam do vício de colocar pontos finais em momentos do pensar e em práticas humanas onde o mais correto é trabalhar com vírgulas e reticências… e com muitas interrogações. Muitas.
A “liberdade de espírito” é uma expressão usada por Theodor Adorno em “O ensaio como forma” (1986). Com Adorno, num texto que se tornou clássico sobre o ensaio moderno, se aprende, também, que um ensaio não precisa ter um início muito bem definido, em algum lugar específico da conversa, nem se deve imaginar um fim para o mesmo. Não se busca propriamente uma conclusão, que é o que outras formas de expressão do pensamento – o artigo científico ou o tratado filosófico, por exemplo – insistem em exigir. Assim, a escolha do ensaio se adequa bem ao propósito de conversar sobre o Mal, que é algo que por natureza pertence ao mundo das muitas perguntas, mais do que das ansiadas respostas. “A resposta é a desgraça da pergunta”, diria Maurice Blanchot.
Nesse sentido pode ser até cruel, ou no mínimo arrogante e autoritária, como exemplo, a pretensão de se explicar o Mal que, como todos sabemos, constitui o objeto principal das atenções no julgamento do carrasco nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, no ano de 1961. Hannah Arendt tudo vê e tudo escuta, como enviada da mais importante revista jornalística do mundo, a The New Yorker, dos Estados Unidos. Leu cuidadosamente as 3.600 páginas do inquérito policial. Judia, prisioneira do nazismo que conseguiu escapar por pouco da morte, na sala do histórico julgamento em Israel, quase trinta anos depois da ascensão de Hitler ao poder, Arendt ri, diversas vezes. Ri em voz alta, chamando a atenção dos presentes. Não consegue senão rir de algo tão profundamente dramático, absurdo, incomensurável, e que ela se esforça por compreender. Explicar o quê, senhores e senhoras?
A opção pelo ensaio representa um exercício difícil na arte de convidar alguém para a compreensão, para a conversa e o diálogo sobre um assunto, também porque os interlocutores somos o tempo todo instados a renunciar à fantasia de que seja possível alcançar uma verdade última e final sobre a coisa a respeito da qual conversamos. Uma verdade acachapante, arrasadora. Autoritária, sempre. Deixemos que os clérigos da Verdade e da Certeza – que desprezam o contato sadio com o universo dos símbolos abertos e com os mistérios – vegetem em sua triste condição unilateral frente ao mundo e frente à vida! Aliás, a conhecida promiscuidade entre o pensamento monocausal e a tirania foi muito bem ressaltada por Adorno no texto que estou citando. Nesse ponto, a cegueira pode ganhar as cores da mais pura ideologia, e, aí, a inocência desaparece, envergonhada.
Assim, mais vale reiterar com humildade e sem alarde a afirmação da complexidade do mundo e de suas variâncias que produzir castelos teóricos de areia. Filosofices, diria Jung. Contentemo-nos, pois, com um “como se”, ou também com um cum grano salis, na perspectiva junguiana. Abracemos compreensivamente a incerteza e a dialogia complementar entre os opostos. “O si-mesmo”, escreve Jung, “como símbolo da totalidade, é uma ‘coincidentia oppositorum’, portanto contém luz e trevas ao mesmo tempo” (OC 5, 2012, § 576).
“Recuperar a humildade” é também o que sugere Arendt ao afirmar a necessidade de se “recompor o vínculo entre conhecimento e compreensão” (Arendt, 2008, p. 334).
O Mal que nos acossa
Sombra e Luz, Encanto e Assombro, Deus e o Diabo constituem partes da festa da vida em geral e das dinâmicas do inconsciente em particular – e cobram a todo instante o seu direito à existência, as partes boas e as partes ruins. Só mesmo aquilo que Jung chama de “burrice esclarecida” (OC 5, 2012, § 100) poderia ter alimentado no homem contemporâneo a fantasia de poder, com uma pá e uma vassoura, varrer, para Deus sabe onde, todo o lixo que emporcalha o nosso mundo e as nossas vidas.
Jung em momento algum hesita em colocar o dedo na ferida da “propensão elementar ao pecado”, dos “demônios que a alma humana abriga”, da “brutalidade da natureza humana” (OC 5, 2012, § 106). Como na tragédia grega, a fantasia ingênua da fuga só nos aproxima, assustadora e cada vez mais de forma mais rápida, do cumprimento do nosso destino trágico: Édipo mata o pai e se casa com a própria mãe, e o oráculo terrível se cumpre. Você e eu pensamos ter decifrado o segredo da Esfinge, e festejamos a sorte de não sermos devorados pelo monstro, mas ai! Caímos na armadilha que a Esfinge nos prepara, sendo enfim devorados de fato por ela, no exato momento em que a tragédia nos agarra firmemente em seus braços.
Esconder, esquecer, negar ou pretender driblar o inconsciente, tanto em suas virtudes quanto em suas mazelas, nos priva da possibilidade da Bênção, e nos mantém acorrentados no mundo triste da Maldição. Se não vamos ao encontro dele, reconhecendo o que Jung chamaria de sua “numinosidade”, acabaremos, sem chance alguma de escapar, tendo de ir de encontro com ele: a tragédia anunciada por Tirésias, o cego que, não vendo, enxerga. É quando o diálogo entre um lado e outro não se dá. Os dois lados de uma mesma moeda. Dois lados?
Eis a verdade intrigante, oposto-complementar, que uma miríade de símbolos do universo dos mitos e das religiões, dos sonhos, do imaginário e também desses nossos devaneios cotidianos nos sugere e para cujo convívio nos convoca. Movemo-nos, neste campo, nos ambientes da “verdade simbólica” para a qual Jung (OC 5, 2012, § 336) tantas vezes, e de forma tão veemente, chama a atenção. O símbolo não mente: evoca, provoca, às vezes encanta e outras assusta. Abre, não fecha. Sugere, não exige. O inconsciente, nesse sentido, nunca mente. Tem as suas linguagens, dinâmicas e doidices, e por certo não opera no nível da Razão e da Lógica. “[…] quem se ocupou com os fenômenos do inconsciente sabe com que estonteante irracionalismo e com que chocante falta de tato e respeito o ‘espírito’ insconsciente passa por cima de conceitos lógicos e valores morais” (Jung, OC 5, 2012, § 575).
O “pensamento dirigido” (Jung, OC 5, 2012, § 4-46) da Ciência, da Filosofia e até da Teologia, bem como de todo esforço humano racional e sistemático de compreensão do mundo e da vida, em suma, não pode se orgulhar de possuir a virtude de não mentir. “Tornamo-nos mais ricos em conhecimentos, mas não em sabedoria”, reclama Jung (OC 5, 2012, § 23) do nosso tempo. O inconsciente não é da ordem das coisas, dos objetos. É da ordem dos significados, vocacionado à sabedoria. À compreensão.
Assim, neste nosso “mundo misturado” (Guimarães Rosa), o Céu encontra-se bem ali, onde o Inferno nos sorri. Eros e Tânatos. “Amor e morte têm muito em comum”, diz Jung (OC 5, 2012, § 432). O apóstolo Paulo ama perdidamente o seu Jesus, e é capaz até de dar a vida para levar adiante a boa notícia de salvação que o seu Mestre trouxe ao mundo (evangelion, em grego), mas sofre com um espinho que atravessa as suas carnes (2Cor 12,7).
Trata-se, como Paulo mesmo interpreta, de um presente de Deus na sua vida, para que ele “não se glorie” de nada. Foi-lhe trazido por Satanás esse presente. Satanás! Para a sua cura espiritual, vamos dizer assim, se ouvirmos o que Paulo nos conta. “Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias, por amor de Cristo. Porque, quando estou fraco, então, sou forte” (2Cor, 12,10). “Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero”, reflete Paulo em outra de suas cartas, a dos Romanos (7,18-19).
O tema da “divisão do querer humano” interessa demais a Jung. “Uma parte da alma quer o objeto externo, a outra porém quer voltar ao mundo subjetivo de onde acenam os palácios aéreos e frágeis da fantasia” (OC 5, 2012, § 253). Na economia da alma humana, inteligentes e provocantes/provocadores como se apresentam, os símbolos operam o tempo todo à luz dos princípios da incerteza e dos opostos complementares. Enantiodromicamente, como aponta Heráclito, para quem “da guerra dos contrários surge a mais bela harmonia”.
“A cruz, ou qualquer que seja a carga que o herói carrega, é ele mesmo, ou, mais exatamente, seu próprio eu, sua totalidade, Deus e animal a um só tempo, não só ser humano empírico, mas a plenitude de seu ser, que tem suas raízes na natureza animal e transcende o meramente humano e atinge a divindade. Sua totalidade significa uma contradição enorme, mas que aparece una em si, como a cruz, que é um excelente símbolo de contradição” (OC 5, 2012, § 460).
Essa Luz/Sombra, esse Bem/Mal, essa dualidade do humano ser não encontra dificuldade alguma de se expressar, de forma plena e com todas as letras, em toda a tradição mítica e religiosa da humanidade. Nos mitos de qualquer tempo e lugar, o Mal e o Bem costumam trocar juras de amor nas encruzilhadas do mundo. Ali, Exu – como psicopompo, mediador, guia, laroiê! –, para citar um exemplo mais próximo de nós, estabelece o seu reino. Trágico e cômico, brincalhão às vezes, qual trickster, Exu ri: rá-rá-rá… Hannah Arendt ri diante da monstruosidade do Mal, naquele momento estampada na fala indecente de Eichmann.
“Todo extremo psicológico contém secretamente o seu oposto ou está de alguma forma em estreita relação com ele. Na verdade, é desta contradição que ele deriva a dinâmica que lhe é peculiar”, escreve de novo Jung, em outro trecho (OC 5, 2012, § 581), em que ele volta ao tema dessa “estranha relação com o próprio oposto”.
A banalidade do Mal
Quando o debate gira em torno do nazismo e da Segunda Guerra Mundial, num primeiro e muito relevante aspecto concordam Hannah Arendt e Carl Gustav Jung, não obstante os diferentes pontos de vista e suas distintas cosmovisões: há ali algo que nossas categorias tradicionais de pensamento não captam, de que nossas ciências e nossos instrumentos jurídicos não dão conta e onde a filosofia é, literalmente, vã. Somos duramente confrontados com o tema do Mal, da Sombra, da Culpa Coletiva. Fácil, muito fácil – e ilusório e enganador – é nos escondermos detrás de um nada divertido dualismo, que coloca de um lado os bons e do outro os maus, santos e pecadores, civilizados e não-civilizados…
Civilizados. Oh! “O mais espantoso, porém, é que num país verdadeiramente culto, que se acreditava já bem distante da Idade Média, um antigo deus da tormenta e da embriaguez, Wotan, que durante muito tempo permanecera em repouso histórico, qual vulcão extinto, pudesse redespertar” (Jung, OC 10/2, 2012, § 373). Jung sabe que podia e pode, sim, redespertar. Como sabe que a falsa contraposição entre Idade Média – supostamente, a das Trevas! – e Idade Moderna – supostamente, a das Luzes – se reveste em mais de um momento da História, desgraçadamente, dos símbolos das mais cruéis e sangrentas alianças entre a Cruz e a Espada, a Religião e o Império, o Capital e o Estado Moderno, a Ciência e o Poder, a Técnica e Auschwitz!
Nesse mundo estranho, onde a “civilização” conta pouco, por isso mesmo, Jung se sente à vontade para propor “a heresia de que o velho Wotan, com seu caráter abissal e inesgotável, é uma explicação bem mais acertada do nacional-socialismo do que todos os outros três fatores reunidos”, a saber, os fatores econômicos, políticos e psicológicos (OC 10/2, 2012, § 385).
Num outro ponto concordam Jung e Arendt, quando não economizam palavras para a mais completa desqualificação psíquica e moral de Adolf Hitler – “um psicopata megalomaníaco”, na visão de Jung (10/2, 2012, § 413) – e de suas milícias do Mal. Medíocre, muito medíocre, de inteligência abaixo da média, era antes de entrar para a máquina assombrosa do regime nazista o Adolf Eichmann, digamos, original, um funcionário público sem nenhum brilhantismo, na percepção de Arendt. Mas, de novo, é fácil, muito fácil cair no dualismo, “atirar a primeira pedra” (…) e pensar, por meio dessa estratégia, livrar-se do Mal.
Em sua agonia por compreender esse “mundo sombrio onde essas coisas acontecem”, Arendt se pronunciou contra a teoria muito pouco complexa do chamado vansittarismo (do inglês Robert G. Vansittart), que propugnava a ideia de algo assim como uma crueldade inata do povo alemão.[2] Ora, uma guerra não se deixa compreender assim, de modo simples e raso; nem muito menos aceita ser explicada, como imaginam sombriamente as narrativas dos Vencedores da História. Auschwitz não se deixa apreender pelas terríveis imagens e pelas histórias comoventes da indústria cinematográfica!
“A culpa coletiva psicológica é uma fatalidade trágica; atinge a todos, justos ou injustos” (Jung, 10/2, 2012, § 405). “O assassino acontece, em parte, dentro de cada um e todos, em parte, o cometeram”, uma vez que “estamos irremediavelmente imiscuídos na impureza do mal” (Jung, 10/2, 2012, § 408). “Ninguém imagine poder escapar a esse jogo de contrários” (Jung, 10/2, 2012, § 410). “Quem somos nós para achar que algo semelhante nunca se passaria conosco?”, pergunta Jung, referindo-se à sua Suíça, neutra, distante de muitas formas da loucura que atravessa a Europa em transe (Jung, 10/2, 2012, § 412). “Com espanto comprovamos que o homem é capaz de tudo, que nós somos capazes de tudo e desde então paira uma dúvida atroz acerca da humanidade a que pertencemos” (Jung, 10/2, 2012, § 412).
lua à vista
brilhavas assim
sobre auschwitz?
Melhor mesmo talvez seja delegar ao poeta brasileiro Paulo Leminsky a tarefa de, pela via da imagem e do simbólico, levantar a pergunta, a boa pergunta, como se dizia na Grécia Clássica. Aquela que nos comove e que nos move, Deus sabe direito como, Deus sabe direito por quê. Mas pode ser interessante ouvir também o outro lado, representado por alguém que, como Arendt, sofreu na carne todo o peso do desprezo e do ódio pelo fato de ser judeu, judeu filósofo, judeu e filósofo e de esquerda, na Alemanha nazista, de onde teve de fugir. Segundo Theodor Adorno, o mesmo de “O ensaio como forma”, “escrever um poema após Auschwitz é um ato de barbárie”.
Amo a terra
como o viajante
um lugar estranho,
e apenas assim.[3]
Entretanto, mesmo sentindo na carne o “horror atônito perante o que o homem é capaz de fazer e o que o mundo é capaz de se tornar”, e mesmo tendo em conta a barbárie a que se refere Adorno, Hannah Arendt, na poesia acima (apud Kohn, 2008), se sente em condições de compreensivamente afirmar o seu Amor mundi, uma noção que ela buscou principalmente de seus estudos sobre Santo Agostinho. Compreender o Mal – não explicar; e, sobretudo, não tentar (se) esconder, na mais hilária política do avestruz; compreender o totalitarismo; compreender as sombras de todos nós e as sombras do mundo; compreender, no sentido de integrar, abraçar, conversar com… Esta é a maneira de se chegar “a um acordo e a uma conciliação com a realidade, isto é, sentirmos o mundo como nossa casa” (Arendt, 2008, p. 330).
Compreender, no sentido aqui evocado, não pode ser sinônimo de perdoar![4] Ação infindável, que não acaba nunca na vida, que não se confunde com o conhecimento científico e nem com a pura informação, e que também não garante nenhum resultado a quem se decide andar por esse caminho, a compreensão, como sublinha Arendt, constitui “a maneira especificamente humana de viver”, neste mundo em que nascemos e permanecemos como estranhos. “Compreender o totalitarismo não é desculpar nada, mas nos conciliar com um mundo onde tais coisas são possíveis” (Arendt 2008, p. 331).
Se algum resultado pode se vislumbrar nos caminhos da compreensão, não terá por certo a ver com uma explicação, um conceito, uma definição, uma receita, uma mágica, um placebo qualquer. Terá sim a ver com “o significado a que damos origem no próprio processo de viver, na medida em que tentamos nos conciliar com o que fazemos e sofremos” (Arendt, 2008, p. 331).
Condição fundamental para uma luta, de todo dia e desde sempre, contra toda forma de totalitarismo, a compreensão a que se refere Arendt dialoga bem com a ideia de integridade que emerge do pensamento junguiano. Não é a perfeição ilusória que se aspira, e, sim, a atitude verdadeira, o comportamento íntegro – talvez possamos especular aqui em torno da ideia de “homem justo” do Antigo Testamento. Por isso, não convém mesmo esperar a luz resplandecente de uma compreensão total, que não existe, e nem o encontro com algum maravilhoso paraíso perdido, para se iniciar a luta. “Não podemos adiar a nossa luta contra o totalitarismo até tê-lo ‘compreendido’, porque não podemos esperar compreendê-lo definitivamente enquanto ele não for definitivamente derrotado” (Arendt, 2008, p. 332).
O indivíduo no mundo
“O que em última instância não caminha bem é o homem”, pontua Jung (OC 10/2, 2012, § 441) , antes de se perguntar: “De que maneira eu convivo com essas sombras? Que atitude é necessária para se viver apesar do mal?” (OC 10/2, 2012, § 443). Os revolucionários de carteirinha costumam encontrar neste ponto o que consideram um desvio perigoso no mais impróprio individualismo por parte de Jung. Não é o caso de se pensar assim. Jung nunca conseguiu separar a vida do espírito da vida do corpo, a ordo idearum da ordo rerum. René Descartes (1596-1650), sim, fez isso. E assentou, com essa separação, as bases filosóficas para o materialismo e o racionalismo de que se falava no início deste ensaio. Acusar Jung de cartesianismo seria, além de errado, risível.
“Para se encontrar respostas adequadas a essas perguntas faz-se necessária uma renovação mental abrangente que não pode provir de alguém especial, devendo ser conquistada por cada um. Também as velhas fórmulas que um dia tiveram validade não podem ser aplicadas irrefletidamente, pois as verdades eternas não podem ser transmitidas mecanicamente. Elas precisam ser geradas novamente em cada época pela alma humana” (OC 10/2, 2012, § 443).
De novo, eu gostaria de chamar a atenção para um paralelo interessante, também neste ponto, entre o Jung da psicologia analítica e a Hannah Arendt do pensamento político contemporâneo. Para Arendt (2008, p. 333), “o processo de compreensão também é, com toda a evidência e talvez em primeiro lugar, um processo de autocompreensão”. Compreender a si mesmo nesse processo agonístico de embate contra o Mal, que a todos nos envolve e que de nós mesmos de distintas formas e complexamente extrai as suas energias: somos contemporâneos ao nosso mundo, insiste Arendt (2008, p. 346), “na exata medida do alcance de nossa compreensão”.
Ser contemporâneo, compreensivamente, não deve significar outra coisa que tentar “superar o estranhamento”, para termos “uma moradia neste mundo, mesmo ao preço de adotar como lar este nosso século” = este nosso mundo, com as suas sombras. Para tanto, “temos de tentar participar do interminável diálogo com a essência do totalitarismo” (Arendt, 2008, p. 345). No fundo, com a essência de todos nós.
Dialogar com o Mal? Com Santanás? Sim, nada menos que isso. E de novo Jung e Arendt se entendem bem sobre isso. Arendt fornece umas poucas dicas. Fala, por exemplo, sobre a “única bússola interna de que dispomos”, a saber, a nossa capacidade de imaginar. “Sem esse tipo de imaginação, que de fato é a compreensão, nunca seríamos capazes de marcar nossas referências no mundo” (Arendt, 2008, p. 346)
Ora, imaginação, de qualquer tipo que seja, nos remete sempre de novo ao mundo imaginal. Ao mundo dos “símbolos que vivem mais do que os humanos” (Harry Pross). Ao mundo dos símbolos “cuja gramática precisamos aprender” (Joseph Campbell). Curioso que o último livro que Jung escreveu – na verdade, uma coletânea sob a sua responsabilidade, e que acabou de ser produzida após a morte dele, em 1961), se chame justamente “O homem e seus símbolos”.
Mas não é essa obra post mortem que dá força ao argumento aqui empregado. Sem a grandeza e a miséria dos símbolos, podemos dar adeus à psicologia analítica. Matem todos os símbolos, os mitos, essa sede danada pelo Transcendente, tudo, não deixe nada de pé! Pode pegar o relógio na mão e ficar atento: eles nascerão no minuto seguinte, como sugere Jung. Com sua importância para a História e seu valor terapêutico para todos nós.
E porque o Mal vem lá do fundo, do fundo do inconsciente, desse território do humano que nos irmana de vários modos, tanto na dor quanto na esperança, vale ouvir mais um ensinamento de Jung, agora em forma de texto recuado, por ser mais longo:
Chamamos o inconsciente de um “nada”, e no entanto ele é uma realidade in potentia: o pensamento que pensaremos, a ação que realizaremos e mesmo o destino de que amanhã nos lamentaremos já estão inconscientes no hoje. O desconhecido que o afeto descobre, sempre esteve aí e mais cedo ou mais tarde se apresentaria à consciência. Por isso devemos contar constantemente com a existência de algo ainda não descoberto.
Podem ser, como dissemos, qualidades desconhecidas de caráter. Podem manifestar-se também possibilidades futuras de desenvolvimento, talvez numa explosão emocional, que transforma radicalmente uma situação. O inconsciente é como o Janus bifronte: por um lado, seus conteúdos apontam para trás, em direção a um mundo do instinto pré-consciente e pré-histórico; por outro, antecipa potencialmente um futuro, devido a uma prontidão instintiva dos fatores determinantes do destino. Um conhecimento completo de um traçado de fundo existente desde o início em um indivíduo poderia ser em grande parte a condição de possibilidade da predição do seu destino (Jung, OC 9/1, § 498).
E porque o ensaio termina, como entende Adorno, não pelo fato de o assunto ter acabado, mas por outra qualquer razão momentânea, vou encerrar por aqui. O que me parece ter ficado claro é que não é de fato o Bem, o Amor, a Beleza ou qualquer outra qualidade positiva que nos distingue como humanos. Nem o Mal, o Pecado, o Sofrimento ou a Dor.
A conta de qualquer dualismo não fecha no mundo em movimento de nossas sombras e dores, esperanças e utopias. Daí por que o pensamento compreensivo, se não nos traz respostas – que o tempo não é de pontos finais –, pode provocar em nós algum alento. A conversa muito rápida e curta com Hannah Arendt e com Carl Gustav Jung neste ensaio pode nos trazer um sentido de cura que nos vem da rejeição à ideia de perfeição, verdade, certeza – para nos autocompreendermos como seres duais e em contínuo movimento à procura do mais precioso dos bens: nós mesmos.
“Nesse sentido, a antiga prece que o rei Salomão, que certamente sabia alguma coisa sobre a ação política, dirigiu a Deus – rogando que lhe desse um ‘coração compreensivo’, a maior dádiva que um ser humano pode receber e desejar – ainda pode ser válida para nós”, propõe Arendt (2008, p. 345). “Poderíamos dizer que a dádiva do ‘coração compreensivo’ corresponde à faculdade da imaginação.”
Imaginação! Imagens, símbolos, mitos…: as doidices do inconsciente. “Como o Janus bifronte”. De lá de onde vem o Mal podem vir também as energias para se lutar contra o Mal. O Mal no mundo e o Mal em nós. O Mal no Brasil – Oh, tempos sombrios! –como o Mal dentro da nossa alma e do nosso cotidiano mais comum. Comum, mas não besta. Isso, não! Jamais!
Dimas A. Künsch – Analista Junguiano em Formação no IJEP
Didata Responsável: Waldemar Magaldi
IMAGEM: “Guernica”, de Pablo Picasso, 1937: “Uma declaração de guerra contra a guerra e um manifesto contra a violência”.[5]
Referências:
ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno. São Paulo: Ática, 1986, p. 167-187
ARENDT, Hannah. Compreensão e política. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 330-346.
ARENDT, Hannah. O que resta? Resta a língua. In: Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008a, p. 31-53.
ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
GRUNENBERG, Antonia. Hannah Arendt e Martin Heidegger: história de um amor. São Paulo: Perspectiva, 2019.
JUNG, Carl Gustav. Wotan. In: Aspectos do drama contemporâneo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 13-27. (OC 10/2,371-399).
JUNG, Carl Gustav. Depois da catástrofe. In: Aspectos do drama contemporâneo. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 28-51. (OC 10/2,400-443).
JUNG, Carl Gustav. Símbolos da transformação. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (OC 5).
JUNG, Carl Gustav. O arquétipo e o inconsciente coletivo. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (OC 9/1).
KOHN, Jerome. Introdução. In: ARENDT, H. Compreender: formação, exílio e totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008, p. 7-28.
[1] “Os que têm vontade, o destino os conduz; os que não têm, o destino os arrasta.” A expressão latina remonta a Sêneca (ca. 4 a.C.-65), que a refere a outro estóico, Cleante. É citada por Jung como epígrafe ao ensaio “A importância do pai no destino do indivíduo” (OC 4 – Freud e a psicanálise. 6.ed. Petrópolis: Vozes, 2012).
[2] A expressão “tempos sombrios” é utilizada frequentemente por Hannah Arendt para se referir aos tempos de que estamos tratando. Aparece, por exemplo, na obra Homens em tempos sombrios (2008), em que traça o perfil de um conjunto de personagens desse período cujos nomes são conhecidos, entre eles Rosa Luxemburgo, Karl Jaspers, Walter Benjamin, Bertolt Brecht e Martin Heidegger. Uma das reclamações mais comuns de Hannah Arendt, no confronto com o nacional-socialismo, dizia respeito ao silêncio ou, até, ao compromisso de intelectuais com o nazismo. Foi o caso de Martin Heidegger, por exemplo, a quem Arendt amava. A história desse amor e o drama humano por trás dela é contada com brilhantismo por Antonia Grunenberg, em Hannah Arendt e Martin Heidegger: história de um amor (Grunenberg, 2019). “O problema, o problema pessoal, não era o que nossos inimigos faziam, mas o que nossos amigos faziam”, escreveu Arendt (2008a, p. 40).
[3] Ich lieb’ die Erde / so wie auf der Reise / den frenden Ort / und anders nicht.
[4] “Perdoar (com certeza, uma das maiores capacidades humanas e talvez a ação humana mais ousada”, escreve Arendt (330), “na medida em que tenta o aparentemente impossível, a saber, desfazer o que foi feito, e consegue criar um novo começo quando tudo parecia ter chegado ao fim) é uma ação única e culmina num gesto único”.
[5] Guernica, uma pequena cidade do País Basco, na Espanha, foi violentamente atacada pela Luftwaffe nazista, em 1937, como teste para os aviões alemães de guerra, a pedido do ditador espanhol General Franco no contexto da Guerra Civil Espanhola.