Desvende sonhos coletivos e conexões mitológicas: ondas gigantes, Jörmungund e o Ragnarok contemporâneo.
“Todos os que virem os irmãos Fenrir, o lobo, e a serpente de Midgard Jörmungund, filhos de Loki, conhecerão a morte. Esse é o princípio do fim.” – Mitologia Nórdica, Neil Gaiman.
Ragnarok, a escatologia Nórdica começa assim: com catástrofes climáticas. Uma delas em especial é produto de Jörmungund, a serpente de Midgard, que produz ondas gigantescas que varrem terra e céu.
Curiosamente, sonhei e tenho recebido muitos sonhos com ondas gigantes invadindo a terra. Não somente isso, esses sonhos iniciaram antes mesmo do mar invadir diversos locais no Brasil e no mundo neste fim de ano de 2023. Por isso mesmo, minha curiosidade se aguça a entender e perguntar “quem está aí?”. E, como um lampejo, a resposta foi Jörmungund.
Antes que comecemos a colocar tudo em caixas do bem e do mal, vale a ressalva junguiana que tudo e todos, ao mesmo tempo, são positivos e negativos, criativos e destrutivos, bons e maus. Jörmungund não é diferente, por isso destino essa reflexão à serpente.
Jörmungund, a serpente de Midgard, é filha de Loki com a gigante Angrboda; e inimiga mortal de Thor, o deus do trovão.
Angrboda já nos dá uma pista em sua etimologia: Angr-: Este elemento do nome vem da palavra nórdica antiga “angr”, que significa “tristeza”, “aflição” ou “dor”. Mas, podemos também pensar em “anger”: raiva. Este termo está associado a sentimentos de miséria ou angústia. –boda: Este segmento vem da raiz “boda”, que significa “mensageira” ou “aquela que anuncia”. Na mitologia nórdica, os nomes frequentemente refletem as características ou o destino de uma pessoa ou ser.
Já, Loki, é uma divindade andrógina, complexa e multifacetada, frequentemente associado ao arquétipo do “trickster” ou enganador, por isso mesmo Loki não deve ser visto nem como herói, nem vilão. Loki é filho de Fárbauti e Laufey e é muitas vezes descrito como um jötunn (gigante), mas vive entre os deuses Aesir, em Asgard. Loki usa sua astúcia e habilidade verbal para manipular situações a seu favor. Loki é em síntese um símbolo da ambiguidade. Ele não é inteiramente mau, nem completamente bom. Sua natureza trickster o torna um ser antinômico, paradoxal per se.
Podemos imaginar que a dualidade amoral se acasala com angústia raivosa. Dessa união surgem três filhos: Fenrir, Jörmungund e Hel. É deste segundo que quero aprofundar.
Um dia Odin sonha que Loki tem filhos e isso o preocupa. Quase como se ele sentisse o leve vento de Ragnarok passar por sua barba ruiva. O Pai de Todos pede, então, para Thor e Tyr averiguar no mundo dos gigantes – um lugar onde os deuses nunca são bem-vindos. Os deuses encontram os três filhos de Loki. E, curiosamente, os gigantes permitem que os filhos sejam levados. O que causa preocupações em Thor e arrepios em Tyr.
Chegando a Odin, os deuses apresentam a serpente: “Jörmungund cospe um veneno negro nocivo. A serpente cuspiu esse veneno em mim, mas errou. Por isso amarramos sua cabeça à árvore desse jeito, num tronco de pinheiro”, disse Tyr; que na viagem ficou menor devido ao seu rápido crescimento. “É uma criança”, observou Odin. – “Ainda está em fase de crescimento. Vamos mandá-la para onde não possa machucar ninguém.”
O tronco de pinheiro está associado à Yggdrasil – a árvore do mundo; apesar da Yggdrasil ser mais comumente descrita como um freixo. Existe aqui uma prenuncia da missão da serpente. Enquanto criança ela é amarrada ao pinheiro; já adulta, o pinheiro é amarrado à ela. Possui, portanto, uma característica de cosmos/caos, isto é, nem somente caos, nem somente cosmos. Assim como outras mitologias e símbolos urobóricos (a serpente que morde o próprio rabo). Jörmungund é, portanto, o a priori do a priori.
Já o veneno, podemos nos lembrar de Vênus – a deusa da beleza e da fertilidade. Para que haja o belo, sabemos que é necessário um observador, um observado e, principalmente, a beleza que une os dois. Para isso é necessário de antemão, a diferenciação. Já, o veneno é seu lado sombrio: a feiura, a putrefação e a indiferenciação. Jörmungund é um ser que cria a indiferenciação. Poderíamos dizer que ela é o que sustenta o universo. Chegou antes dele e talvez seja a última a fechar as portas desse eterno retorno se algum dia tiver fim. Por ter característica urobórica, devemos ter em mente os ciclos. Jörmungund também representa a ciclicidade do todo.
No mito, Odin levou Jörmungund até o confim do mar, localizado além de todas as regiões conhecidas, um mar que envolve Midgard. Naquela fronteira distante, ele soltou Jörmungund, assistindo enquanto o ser se deslocava sinuosamente e submergia sob as ondas, afastando-se cada vez mais. Com seu olho solitário, manteve seu olhar sobre Jörmungund até que a serpente sumisse de vista, questionando-se sobre sua decisão. Odin, Pai de Todos, sabe o que está por vir. A serpente, então, se desenvolveu nas águas cinzentas do oceano que envolve o mundo, crescendo até ser capaz de rodear a terra inteira. Jörmungund passou a ser conhecida como a Serpente de Midgard.
É demasiadamente óbvio que podemos relacionar o mar com o inconsciente, mas seria reducionista e até patética uma interpretação de um sonho coletivo de ondas gigantes afirmar que é o inconsciente querendo dominar. O mar é misterioso, turvo, sem luz, gênese da vida, volátil e amedrontador. Mas qual a relação da serpente com o mar?
Podemos, por um lado, entender que Jörmungund foi reprimida. Sua presença era perigosa demais; sua força destrutiva era amedrontadora; e ela era ainda uma criança. Odin, talvez, com sua incerteza pode ter pensado “e se mantivéssemos ela aqui? Será que Ragnarok aconteceria?”. Talvez o Pai de Todos soubesse que Ragnarok deveria acontecer, e por isso mesmo, o fez.
Por outro lado, podemos entender que era o destino de Jörmungund. Assim como Zeus sabia de tudo o que aconteceria na Guerra de Troia, talvez Odin saberia o que estava por vir, e sentia por isso. Devemos lembrar que Odin é um deus belicoso que traz a tempestade e a morte. É sua natureza, mas também é de sua natureza a proteção.
Eis que a escatologia nórdica começa: o Ragnarok. Acontece enquanto os deuses estão dormindo. Todos menos Heimdall, que se vê impotente de impedir o fim. Por isso Odin chora e ri: irmãos lutam contra irmãos, pais matam filhos. Mães e filhas são postas umas contra as outras. Irmãs entram em batalha contra irmãs e veem seus filhos assassinarem uns aos outros. Assim como estamos presenciando no mundo hoje e sempre.
Ventos cruéis devastam tudo e “o crepúsculo chegará para o mundo, e os lugares onde os humanos vivem se transformarão em ruínas, queimando com intensidade e, logo em seguida, desmoronando e se desfazendo em cinzas e devastação” (Gaiman, 2017).
Não podemos deixar de correlacionar esses acontecimentos escatológicos com as ondas de calor que vivemos nos últimos dias, os tornados súbitos que surgiram; tempestades de areia no norte do país, vulcões, e muitos outros vividos nesses últimos meses de 2023. A teoria junguiana não é cerebrocêntrica – podemos entender o planeta como um uno que cria sintomas para percebermos quanto patológicos somos. O Ragnarok que vivemos hoje está, definitivamente, nos avisando sobre a crise ecológica.
No mito, surge o Fimbulwinter, o Grande Inverno – um frio que dói na respiração e congela as lágrimas. Podemos relacionar a respiração e as lágrimas com a alma. É, portanto, um frio que dói na alma – a frieza do coração. Quantos de nós não estamos ignorando as crises em que estamos inseridos? Nossa inconsciência prenuncia a catástrofe.
A catástrofe e a tragédia são como Loki em união com Angrboda: uma amoral angustiante. Não à toa, o que se segue são os terremotos. As montanhas começam a tremer e desmoronar. Estamos sem chão. “Os terremotos são tão poderosos que todos os grilhões, correntes e amarras serão destruídos. Todos” (Gaiman, 2017). Aquilo que nos sustenta desaparece: desde nossos padrões sociais às instituições que realizam a manutenção sistêmica do consumismo, do individualismo e do capitalismo estão para rachar, mas eles também são deuses e ainda segue a batalha.
Estamos em uma crise sem precedentes. Crise significa a possibilidade da função transcendente ocorrer. De um símbolo surgir e podermos rumar para uma nova atitude. Como sabemos, é necessário que a alma traga o que vem do inconsciente para criar tensão na consciência. E, num ato de construção, sem que um dos lados desista e submeta-se, um terceiro surja. Estamos sonhando com ondas gigantes pois o Ragnarok contemporâneo está em andamento.
No mito, a alma traz os filhos de Loki. Gaiman aponta que “Fenrir, o grande lobo, vai se libertar de sua prisão. Sua boca se abrirá, e sua mandíbula superior chegará aos céus, enquanto a inferir tocará a terra. Não há nada que ele não possa devorar, nada que ele não possa destruir. Chamas saem de seus olhos e de suas narinas. Onde quer que o lobo Fenrir vá, um rastro de fogo e destruição restará em seu caminho”. (Gaiman, 2017)
No mito, os mares varrerão a terra devido a Jörmungund, a serpente de Midgard, que vai se contorcer em ira, cada vez mais perto da terra. “O veneno de suas presas vai ser derramado na água, envenenando toda a vida marinha. A serpente lançará sua peçonha no ar em um borrifo, matando todas as aves marinhas que a respirarem”. (Gaiman, 2017)
Evidentemente, no mito, os deuses tentam impedir, assim como os deuses contemporâneos estão tentando. Thor assassina Jörmungund. Com seu martelo, o deus do trovão dará um golpe na cabeça da serpente. Sabendo de seu veneno, Thor tenta esquivar-se pulando para trás, quase três metros de distância, mas não é suficiente. Em um ato último, a serpente abre sua boca e seu veneno atinge o deus do trovão, que cai ao chão, morto, envenenado pela criatura que matou.
Podemos relacionar Thor com Prometeu – o redentor da humanidade, aquele que entrega o fogo dos deuses aos humanos. Thor é um deus celeste, portador do raio e do fogo divino. Thor pode ser um símbolo da consciência.
Jörmungund e Thor formam o par inconsciente e consciência, inimigos mortais e amantes. Sua batalha é a própria tensão da função transcendente. É necessário o empate para gerar a empatia entre os dois e o terceiro elemento surgir. Não à toa a ideia de opus contra natura (obra contra a natureza) pode ser trabalhada pelo alquimista, mas também pelo ferreiro (Eliade, 1983).
Heimdall, a ética; e Loki, o amoral, também vão batalhar mortalmente. Eles também formam um par de opostos. Nesta batalha, Heimdall diz a Loki que ele e seus filhos não venceram, algo ainda resiste: a Árvore da Vida – Yggdrasil. Nela, diz Heimdall a Loki: “estão escondidos dois: a mulher Vida e o homem Desejo de Viver. Não é o fim. É simplesmente o fim dos velhos tempos. O renascimento sempre se segue à morte”.
No fim, aposto tudo ser queimado, as águas limparam as cinzas, lavando a terra para algo novo, assim como a Alquimia nos ensina com a calcinação e a solução. O verde floresce e se erguerá; o novo Sol toma o lugar do Sol engolido; A Vida e o Desejo de Viver sairão do pinheiro ou do freixo de Yggdrasil. O homem e a mulher, segundo o mito, farão amor, assim Eros retoma seu fluxo. Daí, ressurge a humanidade.
E então: “Asgard terá desaparecido, mas Idavoll se erguerá onde antes ficava Asgard, esplêndida e constante. Os filhos de Odin, Vidar e Vali, estarão lá. Em seguida virão os filhos de Thor, Módi e Magni. Eles trarão Mjölnir com eles, porque, com a morte de Thor, é preciso dois para carregar o martelo. Balder e Hod voltarão do mundo inferior, e os seis se sentarão à luz do novo Sol e conversarão entre si, recordando mistérios e discutindo o que poderia ter sido feito diferente, se perguntando se aquele resultado era inevitável. Vão falar de Fenrir, o lobo que devorou o mundo, e da serpente de Midgard, e vão se lembrar de Loki, que era um dos deuses mesmo não sendo um deles, que salvou os deuses e os destruiu.
– Olhem. Ali, o que é aquilo? — dirá Balder então.
– O quê? — perguntará Magni.
– Ali. Brilhando no capim alto. Estão vendo? E ali.
Vejam, tem outro.
E eles vão se ajoelhar no capim alto, deuses parecendo crianças. Magni, filho de Thor, será o primeiro a encontrar um dos objetos no capim alto, e, quando o encontrar, saberá o que é. É uma peça de xadrez de ouro, do tipo que os deuses usavam para jogar quando ainda eram vivos. É uma pequena escultura dourada de Odin, o Pai de Todos, em seu trono alto: o rei.
E vão encontrar mais peças. Ali estará Thor, segurando seu martelo. Ali estará Heimdall, com a trombeta nos lábios. Frigga, esposa de Odin, é a rainha.
Balder erguerá uma das peças de ouro.
– Este parece você — dirá Módi.
– Sou eu — concordará Balder. — Eu muito tempo atrás, antes de morrer, quando era um dos Aesir.
E vão encontrar outras peças na grama, algumas bonitas, outras nem tanto. Ali, meio enterrados na terra negra, estarão Loki e seus filhos monstruosos. Haverá um gigante do gelo. Ali estará Surt, com o rosto em chamas.
Logo descobrirão que tem todas as peças de que precisariam para montar um jogo completo. Eles vão montar uma partida de xadrez: no tabuleiro sobre a mesa, os deuses de Asgard vão encarar seus eternos inimigos. A recém-criada luz do sol refletirá nos homens do xadrez, em uma tarde perfeita.
Balder vai sorrir como o sol nascente, estender a mão e mover a primeira peça.
E o jogo começa outra vez.” (GAIMAN, 2017).
REFERÊNCIAS:
ELIADE, M. Ferreiros e Alquimistas. Madrid: Aliança Editorial, 1983.
GAIMAN, N. Mitologia Nórdica. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2017.
Leonardo Torres, membro analista em formação IJEP
Waldemar Magaldi, membro didata IJEP