Dia desses uma amiga me enviou um vídeo de um famoso “treinador de vencedores” falando sobre as pessoas precisarem sair do lugar de vítimas se quiserem ter “sucesso” na vida. Ela queria saber minha opinião sobre o “deixar de ser vítima”, e esta aqui é minha resposta, aproveitando para trazer um pouco da teoria junguiana:
A ideia em si, sobre a necessidade de sair do papel de vítima, guarda a sua verdade. Mas o problema é que quando ela é defendida superficialmente, de maneira generalista, sem uma real análise sobre o que se diz e o que isso significa dentro na complexidade da vida humana particular. Em cada caso, também guarda potencial de injustiças extremas e não traz melhora psíquica alguma para o indivíduo — às vezes, inclusive, traz pioras drásticas.
Não é preciso buscar muito para assistir “especialistas” de diversas perspectivas invalidando experiências traumáticas, situações sociais e acobertando responsabilidade de agressores como forma de “cura”.
Para que isso não aconteça, primeiramente é preciso compreender que sair do papel de vítima em nada tem a ver com tirar a responsabilidade de quem atuou ativamente nas injustiças acontecidas, quando elas realmente aconteceram.
Não à toa, o primeiro passo em um trabalho de cuidado nesses casos é o de acolhimento da dor e da realidade psíquica de quem sofre. Para que essa pessoa possa validar e vivenciar seus sentimentos e emoções frutos do acontecido, sem culpa, e tomar atitudes relacionadas a isso, quando necessárias.
Sair do papel de vítima não tem nada a ver com essa parte da trajetória, e qualquer profissional que defenda o contrário pode se tornar, também, um agressor de seus clientes.
Mas, então, o que significa sair do papel de vítima?
Em um trabalho sério, no tempo adequado e respeitando as particularidades de cada pessoa, significa, em algum momento do caminho, depois do acolhimento e cuidado das feridas, sair internamente do peso de ser apenas a vítima — ou da glória, porque muitas vezes esse papel pode ser usado para ganhos diversos na vida ou vingança consciente ou inconsciente —, e isso em nada interfere nas esferas objetivas do acontecido, quando existem. Seja ela administrativa, criminal ou judicial, por exemplo.
É muito comum pessoas dominadas pelo que chamarei didaticamente de complexo de vítima serem guiadas inconscientemente por caminhos que tragam novas experiências traumáticas que de alguma maneira lembrem as antigas. Vale ressaltar que os complexos são núcleos afetivos de personalidade, formados a partir de experiências emocionais significativas do indivíduo, e funcionam como aglomerados de conteúdos psíquicos temáticos.
Se algum complexo se encontra dominante na psique, ele possui relativa autonomia e deseja e se “alimenta” de acontecimentos da mesma temática presente no acontecimento significativo do seu surgimento. Então, para esse complexo específico, que possui em si a temática da injustiça sofrida, é interessante que continuemos a nos colocar em situações traumáticas que venham fortalecer esse lugar de vítima — pois isso, para ele, significa fortalecimento até que ele se torne um imperador tirano absoluto em nossa psique, o dono incontestável de nossa “casa” psíquica.
Quando somos possuídos por um complexo, somos guiados por ele.
Ele molda o mundo à nossa volta, influenciando nossas atitudes e oferecendo uma visão favorável a ele, que se impõe hierarquicamente ao ego. Por isso, o complexo de vítima não nos deixa perceber sinais claros de que alguns caminhos ou pessoas não serão benéficas para a nossa vida — mas depois que as coisas “dão errado”, todos esses sinais se tornam rapidamente óbvios e, além de nos sentirmos vítimas do outro, tornamo-nos vítimas de nós mesmos, porque costumamos nos julgar negativamente por termos sidos ingênuos. Chamamo-nos de imbecis e nos massacramos a nós mesmos. Repetimos conosco aquilo que afirmamos que o outro fez. Tornamo-nos nossos próprios algozes.
Primeiramente, guiados por um complexo que esteja exercendo bastante poder em nossa psique, somos atraídos por um algoz em potencial, para que a temática seja fortalecida em nossa vida. Ficamos fascinados por esse algoz e nos tornamos cegos em relação a esse potencial destrutivo. E, depois que algo acontece, percebemos essa atração e nos sentimos culpados por ela, por termos “escolhido” isso, e nos tornamos nossos próprios algozes.
Além disso, o complexo que se encontra dominante é capaz de controlar o que conseguimos ver.
Nós passamos a enxergar apenas o que ele deseja que enxerguemos. E isso faz com que ele seja capaz de, caso a realidade concreta não seja aquela desejada por ele, criar realidades psíquicas, fantasias, que distorcem a realidade concreta para que nos sintamos vítimas, mesmo quando isso não está acontecendo concretamente. Sobre isso, o analista junguiano Edward Whitmont escreveu:
Resumidamente, quando caminhamos em direção à repetição de nossas dores, continuamos vítimas e perdemos ainda mais de nossa autonomia. O ego, que deveria colocar ordem “na casa”, como um bom zelador, torna-se apenas um observador fora da hierarquia, impotente em relação ao que acontece. Por seu turno, o complexo de vítima ganha mais poder em nossa psique, para nos guiar novamente para novas roupagens do mesmo caminho.
Agora vamos ao ponto principal: o que significa sair do papel de vítima?
Significa um caminho, um processo, que envolve fortalecer o ego positivamente, para que consigamos confrontar o complexo que se encontra dominante em nossa psique e a realidade fantasiada — recolhendo nossas projeções. Significa enxergarmos os sinais de repetição antes que ela aconteça e conseguirmos sustentar uma mudança de atitude — como, por exemplo, não entrar em determinado trabalho que já deixou claro que nos guiará novamente para o excesso negativo; ou não cultivar um relacionamento sério com uma pessoa que já deu sinais claros de ser abusiva. Além de “tirar os óculos de lentes vermelhas”, para desmontar conscientemente as nossas fantasias de injustiça, caso elas existam.
A partir desse ponto, significa também, aí sim — percebe o problema do discurso raso do “treinador de vencedores”? —, compreender as próprias responsabilidades no acontecido, mesmo que sutis e fora do mundo concreto, e encontrar leveza nessas responsabilidades.
Quando começamos a acessar nossas responsabilidades naquilo que nos acontece repetidamente, é muito doloroso. É infernal — e por isso muitos não chegam até essa fase e preferem se proteger eternamente, de maneira infantil, no lugar de vítima —, mas quando você compreende a dinâmica da vida e que suas responsabilidades, quando existem, não anulam as responsabilidades concretas do outro, isso tudo se torna uma libertação.
Enquanto somos apenas vítimas, estamos presos a algo que não podemos mudar, porque está apenas no outro. Mas quando enxergamos nossas responsabilidades, tornamo-nos capazes de transformar as coisas que estão sob nosso domínio, tirando força e ganhando controle sobre o complexo que teima em guiar nossos caminhos. E isso é uma liberdade porque significa que não mais estamos presos ao que fizeram conosco no passado.
E essa é minha definição de “sucesso”.
Membro-analista em formação: Leandro Scapellato
Analista didata: Dr. Waldemar Magaldi
Referência:
WHITMONT, Edward C. A busca do símbolo: conceitos básicos da psicologia analítica. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
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