A pressão interna, exigente de perfeição, de produtividade, de utilidade, vem nos transformando em verdadeiras máquinas eficientes enquanto que, ao mesmo tempo, vivemos um século marcado por várias doenças psíquicas, como a Depressão, Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade (TDAH), Transtorno de personalidade limítrofe (TPL), Síndrome de Burnout (SB).
Byung-Chul Han desenvolve esse tema em seu ensaio A Sociedade do Cansaço, mostrando como nós, ocidentais, estamos doentes em decorrência do nível de auto exploração e auto extorsão do “sujeito de desempenho”. Aqui trago essa temática à luz da psicologia analítica, que nos mostra a problemática da unilateralidade da consciência e a negação da sombra.
Hoje nega-se a falta de capacidade de ser tão produtivo e de não termos que ser úteis a todo momento. Hoje somos uma sociedade em que o chefe é interno, bem diferente da sociedade do século passado em que havia um controle com normas rígidas e punições para quem descumprisse o estabelecido. As pessoas tinham algo ou alguém externo para ser combatido, a ser negado.
Hoje o opressor mora dentro de nós, pedindo mais, exigindo mais, numa coação interna. Então surgem os conflitos. Percebemos, através de muita dor, que a busca da produtividade ilimitada e da performance impostas pela nossa autocobrança, não estão em ressonância com o si-mesmo. Quando somos os comandantes de nossas próprias vidas há um amadurecimento, que não está livre de sofrimento, já que é necessária a escuta interior do nosso lado sombrio.
A integração desses opostos pode nos levar a um novo tipo de sociedade, que não será controladora, nem de desempenho, mas integral e humana.
PRECISO MAIS, PRECISO DE MAIS, PRECISO DEMAIS!!!
Acredito que cada vez mais vemos acontecer, ao nosso lado, ou conosco mesmos, a exigência da perfeição, da produtividade total, da necessidade de ser útil, estimulados por uma voz dominadora interior dizendo sempre: você não fez o bastante, eu sei que pode mais!
Byung-Chul Han (2017), filósofo coreano e professor de filosofia na Universidade de Berlim tornou-se popular no Brasil com seu ensaio Sociedade do Cansaço. Nele Han coloca que a sociedade do início do séc. XXI é marcada, patologicamente, por doenças neuronais, como a depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), transtorno de personalidade limítrofe (TPL) ou a síndrome de burnout (SB), diferentemente do século anterior, marcado pela loucura e a delinquência. E o que aconteceu?
DO EXCESSO DE CONTROLE E NEGATIVIDADE EXTERNOS, CAMINHAMOS PARA O EXCESSO DE POSITIVIDADE E COAÇÃO INTERNAS
No século passado, diz Han, vivíamos uma sociedade controladora, havia uma estrutura externa nos monitorando, normas a serem seguidas e, sujeitos que não se adequavam às regras, eram punidos. Havia também uma nítida divisão entre quem era amigo ou inimigo, o que era próprio ou estranho e, como defesa, atacava-se o diferente, “em virtude de sua alteridade”. A divisão também se encontrava no tempo: horas de trabalho, horas de escola, horas de lazer. Não havia nenhuma dificuldade com a determinação de espaço/tempo.
Esta era a sociedade da negatividade, ou seja, havia algo externo a nós, o impositor, o chefe, o padre, o pai, e que também era passível de ser combatido. Lutávamos para vencer as proibições ou as regras que eram impostas externamente a nós ou então simplesmente nos submetíamos a elas. Mas vencemos!!!
Hoje não temos mais isso. Segundo Han (Cf. HAN, 2017, pp. 23-30), a sociedade do séc. XXI é determinada pelo desempenho, pela hiperprodutividade, pelo poder ilimitado da positividade. Tornando a pessoa seu próprio chefe, seu próprio algoz, forçando-a a ultrapassar todos os limites, porque é apregoado que ela pode, basta esforçar-se. Hoje não existe mais a figura do agente controlador, o sujeito faz esse papel consigo mesmo, ele é o dono do seu próprio destino. Mistura-se liberdade com coação interna, de sempre ter que ser melhor, e nada escapa ao excelente desempenho, como superar o número de passos que andamos num dia, ou quantos litros de água conseguimos tomar, ou seja, qualquer instância é passível de ser performada. A competição interna, imposta pelos seus pares, pelas mídias sociais e por uma persona perfeccionista levam o sujeito aos limites extremos de exigência própria em todos os setores da vida.
SEM CHEFE PASSAMOS A PRODUZIR MAIS
Esta é a forma mais eficaz que a sociedade capitalista encontrou de alcançar patamares cada vez mais altos de produção e consumo desenfreado, como Han coloca:
Para elevar a produtividade, o paradigma da disciplina é substituído pelo paradigma do desempenho ou pelo esquema positivo de poder, pois a partir de um determinado nível de produtividade, a negatividade da proibição tem um efeito de bloqueio, impedindo um maior crescimento. A positividade do poder é bem mais eficiente que a negatividade do dever. Assim o inconsciente social do dever troca de registro para o registro do poder. O sujeito de desempenho é mais rápido e mais produtivo que o sujeito da obediência.
(HAN, 2017, p. 25)
Para Han, o Burnout e a Depressão ocorrem pela imposição social da performance, o que segundo ele, produz “infartos psíquicos”. O sujeito depressivo “não pode mais poder”, levando-o a sentimentos de culpa, invalidez, autoacusações e a uma autoagressão, em guerra consigo mesmo: “A depressão é o adoecimento de uma sociedade que sofre sob o excesso de positividade. Reflete aquela humanidade que está em guerra consigo mesma” (HAN, 2017, p.29).
Segundo Maslach & Jackson, “a Síndrome de burnout pode ser considerada uma resposta crônica aos estressores interpessoais advindos da situação laboral, uma vez que o ambiente de trabalho e sua organização podem ser responsáveis pelo sofrimento e desgaste que acometem os trabalhadores”. (apud CARDOSO et al, 2017, p.122)
NEGAÇÃO DO QUE VEM DO LADO CONTRÁRIO
Todas essas reflexões mostram uma problemática já levantada por Jung no século passado, quando não existiam essas terminologias: a cisão entre os conteúdos do consciente e inconsciente (JUNG, 2014, p.31).
Tanto o excesso de negação como o excesso de positividade são unilaterais. A unilateralidade provoca cisão, pois no inconsciente a força contrária cresce proporcionalmente a sua repressão. A positividade nega a negatividade e vice-versa. Tanto a sociedade controladora, quanto a sociedade do desempenho, são contraditórias, sofrem pressão do seu oposto de forma neurótica. A sociedade apenas mudou a sua forma, mas continua unilateralizada e com certezas absolutas!
Cada um de nós evita encarar seus problemas, enquanto possível. Não se deve mencioná-los, ou melhor ainda, nega-se a sua existência. […] Queremos certezas e não dúvidas; queremos resultados e não experimentos, sem, entretanto, nos darmos conta de que as certezas só podem surgir através da dúvida, e os resultados através do experimento. […] Para obtermos certeza e claridade, precisamos de uma consciência mais ampla e superior.
(JUNG, 2013, p.344)
MAS, AFINAL, SERMOS OS COMANDANTES DE NOSSAS PRÓPRIAS VIDAS NÃO É UMA COISA BOA?
Jung, em uma conferência sobre As etapas da vida humana, explica como ocorre o processo de desenvolvimento da infância para a juventude, bem semelhante ao processo que levou a sociedade controladora para a sociedade do desempenho:
No estágio infantil da consciência, ainda não há problemas; nada depende do sujeito, porque a própria criança ainda depende inteiramente dos pais. […] Até este período, a vida psicológica do indivíduo é governada basicamente pelos instintos e por isto não conhece nenhum problema. Mesmo quando limitações externas se contrapõe aos impulsos subjetivos, estas restrições não provocam uma cisão interior do próprio indivíduo. Este se submete ou as evita, em total harmonia consigo próprio. Ele ainda não conhece o estado de divisão interior, induzido pelos problemas. Este estado só ocorre quando aquilo que é uma limitação exterior torna-se uma limitação interior, isto é, quando um impulso se contrapõe a outro.
(JUNG, 2013, pp. 346-347)
Neste texto Jung mostra a questão do desenvolvimento, que nos parece bem semelhante com o processo que ocorreu com a sociedade, partindo de um sistema controlador, como ocorre com a criança que depende inteiramente dos pais, agentes externos, e desenvolve-se para a juventude, quando o agente limitador passa a ser interno. Não existe mais um chefe de fora, regulador. Este agora é um algoz interior, exigente de desempenho, de performance, de produtividade, de utilidade.
O PROCESSO DE EVOLUÇÃO DÓI
Parece que o nível que a sociedade se encontra hoje é um patamar além da sociedade anterior, porém não livre de sofrimento. Jung, na mesma conferência, coloca que apenas conhecemos conteúdos que estejam ligados a outro e só podemos alcançar um nível de consciência mais alto quando já tivermos passado pelo processo anterior (Cf. JUNG, 2013, p. 346), ou seja, o nível que a sociedade se encontra hoje é a evolução da sociedade anterior.
Porém, essa evolução está se mostrando bem doída. Jung exprime, no seguinte trecho, como o processo de conscientização é penoso: “[…] e é assim que vemos qualquer problema que nos obriga a uma consciência maior e nos afasta mais ainda do paraíso de nossa infantilidade inconsciente”. (JUNG, 2013, p. 344).
O “SIM, VOCÊ PODE!” NÃO ESTÁ EM RESSONÂNCIA COM O SI-MESMO
Han aponta o Burnout e a depressão como estados do ser que não pode mais, que chegou no seu limite total. Jung nos fala: “só o Ser Humano adulto é que pode ter dúvidas a seu próprio respeito e discordar de si mesmo.” (JUNG, 2013, p. 347). O conflito desse sujeito para com essa sociedade está na sua percepção de que a vida em busca de produtividade ilimitada, performance, empenho total à nível físico e emocional, impostos pela consciência coletiva através de seus pares, das mídias sociais e de um complexo do ego motivacional que lhe diz o tempo todo “sim, você pode”, não está em ressonância com o si-mesmo.
Este é um indivíduo problemático, mas não neurótico como o restante da sociedade autômata. “O neurótico é doente porque não tem consciência dos seus problemas, ao passo que o indivíduo problemático sofre com seus próprios problemas conscientes sem ser doente”. (Cf. JUNG, 2013, p. 348)
CONCLUSÃO:
Viver como seres conscientes é um processo árduo. Muito mais fácil, até certo ponto, seguir a manada como seres autômatos. Porém a alma nos impulsiona. Os sintomas da cisão com o nosso verdadeiro propósito de vida são pesados! Vemos isso justamente em todos os casos existentes de doenças que se manifestam na esfera psíquica, social, espiritual e física. Essa sociedade cansada está realmente esgotada, como Han fala, “infartados psíquicos” (Cf. HAN, 2017, p. 27). Sem dúvida o fato de termos chegado nesse nível de sociedade, em que possuímos o impulso interno para nossa superação, é um ganho. Porém precisamos aprender a escutar o nosso lado sombrio, que não quer performar, que não quer ser o melhor. Esse lado existe e não pode ser abafado. O si-mesmo é o centro psíquico integrador desses dois lados!
A função transcendente, trazida por Jung, é uma função do ser humano e por isso é natural, segue seu caminho, queiramos aceitá-la ou não. Porém, para que a união desses opostos ocorra há necessidade de haver uma leitura simbólica que una essas antinomias, senão o cansaço ou as doenças serão apenas eventos, e nada mais.
Então, evoluamos mais! Já saímos da sociedade controladora, estamos na sociedade do desempenho e, com muito esforço de consciência, individualmente poderemos alcançar a integração com o si-mesmo e assim uma sociedade mais humana e consciente!
Denise Largman – Analista em formação IJEP
Lia Romano – Analista Didata IJEP
Referências:
CARDOSO, Hugo Ferrari, et al. Síndrome de burnout: análise da literatura nacional entre 2006 e 2015. In: Rev. Psicol., Organ. Trab. vol.17 no.2 Brasília Abr.- Jun. 2017. Disponível em:<https://doi.org/10.17652/rpot/2017.2.12796>. Acesso em: 14 nov. 2024.
HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
______. Psicologia do inconsciente. 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
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