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A arte da cura, apesar da medicalização da vida e negação dos ritmos.

Somos gerados e gestados de forma natural, em sintonia com a mãe natureza e no ritmo da dimensão lunar, como toda expressão de vida do planeta. Porém, o processo de socialização acaba tornando-nos “normais” e, em função da nossa disfuncionalidade sociocultural e econômica, que está exageradamente patriarcal e solar, na realidade ficamos normóticos, muito propensos para negar, e até destruir, nossa natureza interna e, consequentemente, a externa.

Nesta sociedade competitiva, consumista e cumulativa, Gaia é desrespeitada, abusada e reprimida. Mas, como a natureza não pode ser controlada, começam a surgir os pruridos, as “coceiras” existenciais, por conta da desconexão com a finalidade existencial, que a homeopatia chama de Psora.

Gaia, a mãe terra, deseja e necessita trocar livremente. Dar, receber e retribuir, de forma harmoniosa e circumambular, em sintonia com o Sol e com a Lua, no ritmo eterno da espiral tridimensional e evolutiva do Unus Mundus. Infelizmente, o antropoceno está, como fez Urano no passado, interditando esta dança cósmica do planeta Terra, conspurcando a pericorese divina.

Parece que estamos reproduzindo, arquetipicamente, relatos históricos da mitologia greco-romana, presente em nosso inconsciente coletivo, quando Urano, criado por Gaia com o propósito de estabelecer com ela uma união saudável, criativa e harmoniosa, assume o poder e aprisiona toda criação no ventre dela, nas suas entranhas, para continuar eternamente no controle e no poder.

Depois de algum tempo, Gaia surpreendeu Urano com o surgimento de seu filho Cronos já adulto, também conhecido por Saturno, que castrou seu pai com sua foice, libertando toda criação do ventre da sua mãe Gaia. Porém, como o poder patriarcal é inebriante, assumindo o lugar do pai, ele passa a devorar seus filhos para evitar futuros competidores. E assim a história segue, passando por Zeus até chegarmos nos tempos modernos, em que ainda sofremos com os reflexos de Saturno nas atitudes e ideologias presentes nas camadas dominantes e materialmente mais ricas.

Esta realidade gera muita desigualdade, exclusão e desconforto existencial. Mantendo a maioria das pessoas alienadas de si mesmas, atuando preponderantemente na manutenção da vida, em busca de biosobrevivência, matando para não morrer, comendo para não ser comida, muitas vezes literalmente. Mesmo assim, neste estado reptiliano que transforma a maioria dos seres humanos em bem de produção, o Self tenta contribuir para que alguma possibilidade criativa venha à tona, para resgatar a humanidade e a restabelecer a conexão com alma, o universo inconsciente que aspira realização, como Carl Jung nos ensinou.

Os meios mais usuais, naturais e espontâneos que o Self utiliza para essa religação são os sonhos, as ocorrências de sincronicidade, as produções criativas que nos atravessam, e quando nada disso funciona, começam surgir os sintomas, com mal-estar, desconfortos e outros transtornos de humor.

Caso esses pequenos desconfortos não sejam suficientes para que o indivíduo, aquele é indivisível – apesar de ser múltiplo, complexo, único, criativo e plural – encontre sua integralidade e reconecte-se ao Self e a Grande Mãe, os desconfortos vão se agravando, individual e coletivamente, até surgirem as tragédias, os desastres, os sintomas de adoecimento, que chamamos de intercorrências psicossomáticas, e as neuroses como meios para tentar restaurar, enantiodromicamente, os ritmos negados, para que o processo de individuação possa ser acionado e vivenciado conscientemente.

A hipertrofia do patriarcado produz o monoteísmo da razão, a egolatria, o egoísmo, a rigidez hierárquica, o territorialismo exagerado, a competição desenfreada e desumanizada. Retornamos, arquetipicamente, na dimensão do Saturno devorador, e dos excessos das divindades greco-romanas Héstia, Ares e Hermes, respectivamente fazendo-nos defensores amedrontados e obcecados daquilo que imaginamos ser nossa propriedade territorial, lutadores parciais e violentos, crédulos consumidores de bugigangas e informações rasas.

Essa realidade estimula a unilateralidade. Porém, na teoria da psicologia junguiana sabemos que a Psique é bipolar por excelência e quanto mais rejeitamos isso, tentando manter apenas um no inconsciente, abrindo mão do modo simbólico, em detrimento do diabólico, compensatoriamente, o Self irá se encarregar de fazer o contraponto opositivo, de forma tranquila, por meio de expressões criativas ou sonhos, ou de forma violenta, por meio de sintomas, como já foi dito.

Todas as dinâmicas individuais, familiares e culturais, expressas na consciência, possuem seus contrapontos opositivos no inconsciente. Desta forma, quando um lado fica muito potencializado, o outro também fica provocando projeções ou identificações sombrias.

Nesta situação atípica que estamos vivenciando, os polos podem ficar mais exacerbados, os complexos mais ativados e até autônomos, e a sombra potencializada, projetada no entorno relacional ou assumida no próprio indivíduo.

No âmbito familiar tudo isso fica mais exagerado ainda, porque o núcleo familiar, devido as questões trasngeracionais, somadas com as expectativas depositadas multilateralmente, irá sintonizar todos os membros em complexos e sombra, presentes no inconsciente familiar.

Estudando a dinâmica do Self familiar, fica evidente que todos os membros, consciente ou inconscientemente, sabem onde fica o “botão” do pânico dos demais parentes. Desta forma, se o grupo familiar conseguir estabelecer, respeitosamente, a prática do diálogo, com transparência e socialização das emoções, conscientes da necessidade de criar meios de equidade entre todos, surgirão transformações surpreendentemente saudáveis, deixando todos mais predisponentes a seus processos de individuação.

Na individuação, que é uma meta utópica, chegamos na consciência unitiva da não dualidade. Neste caso, acaba a dimensão opositiva entre Ego e Sombra, Persona e Anima/us, Instintos e Arquétipos. Mas, quem é ou foi individuado? Apenas na condição de ataraxia e aponia, que é a condição da morte dos deuses gregos, que saberemos.

Egoicamente deveríamos saber que não somos nada e, quando a experiência deste estado de não ser e de nada saber afloram, podemos vislumbrar reflexos do Tudo e do Todo. Apenas alguns fragmentos da pluralidade e diversidade do Self já possibilitam que aquilo que chamamos de Eu reconheça sua finitude diante da infinitude de Deus, ou Self.

Como somos adestrados exageradamente para o dinamismo patriarcal, tendemos a ficar literais, materialistas, hierárquicos, competitivos, cumulativos, consumistas, rasos, superficiais, negando e fugindo desesperadamente do mundo interior, assumindo cada vez mais atribulações, compromissos e ocupações, ficando insones, compulsivos e obsessivos, até recebermos o diagnóstico de depressão, quando não surgem doenças auto imunes e outras psicossomatizações ainda mais graves.

Depressão deveria ser compreendida como uma oportunidade para descermos no “poço” para resgatar a relação com a nossa Psique ou alma. É o momento em que a energia psíquica deixa de fluir na dinâmica de progressão e adaptação ao mundo externo, voltando-se para as demandas do mundo interno, o âmbito do inconsciente, deixando de ficar direcionada exclusivamente para frente, para fora e para cima, passando para a direção regressiva, que equivale a ir para trás, para dentro e para baixo.

A regressão da energia psíquica serve para que o ego possa reconhecer, servir e contemplar o Self, que tem equivalência à Imago Dei em nós, podendo ressacralizar nossa existência. Infelizmente, a regressão da energia psíquica, que é natural, rítmica e muitas vezes necessária para compensar unilateralidades e monotemáticas do ego, que tendem para a inflação e o monoteísmo da consciência, foi transformada em patologia e é amplamente medicalizada, para ser negada.

A depressão virou um grande guarda-chuva abarcando outros movimentos da energia psíquica, com suas respectivas emoções, num senso comum que acabou com a diferenciação dela entre angústia, tristeza, melancolia, ansiedade ou medo.

Essa narrativa reducionista e patologizante dos movimentos rítmicos da energia psíquica nega e desrespeita os mais variados ritmos, que nos atravessam consciente ou inconscientemente. Ritmos que deveriam ser aceitos como as estações do ano, onde na primavera e verão tudo fica mais colorido, quente, alegre, florido e expansivo, enquanto no outono e inverno mais cinza, frio, triste, incubado e introspectivo.

A mais provável razão para esse reducionismo patológico dos ritmos, movimentos e direções da energia psíquica, que são naturais e necessários, é a falta de sentido e significado existencial onde o ego sucumbe aos condicionamentos, códigos de conduta sociais ou adaptações a traumas ou micro traumas, mantendo-se aprisionado na sua miserabilidade egoísta.

Este estado de negação e distanciamento do si mesmo faz com que seja negada tanto a multiplicidade psíquica, quanto a diversidade e pluralidade humana, produzindo ressentimentos ou culpas pelo passado, medo e ansiedade pelo futuro, e dificuldade de reconhecer a infelicidade comum em nós mesmos e na maioria das pessoas, que fogem da experiencia de estar presentes no presente, por conta do estado neurótico da normose materialista, competitiva e cumulativa, deixando de vivenciar o aqui e o agora como uma eterna oportunidade de aprendizado e expansão da consciência. O eterno presente do presente.

A indiferenciação e a psicopatologização das emoções humanas ou estados de espírito, geralmente reduzidas na vala comum da depressão, impediu que as variações de humor, que são naturais e podem servir para anunciar as demandas do Self e nossas reações frente aos diferentes afetos que nos acometem estimulou, ainda mais, a medicalização da vida.

A angústia, é o aperto pela falta de sentido existencial. Pode ser mais uma excelente oportunidade para o a percepção e o questionamento do mal-estar e a busca de um propósito existencial, acabou associada a depressão. A tristeza, que serve para digerirmos perdas de algo ou o fracasso, um luto a ser vivenciado, o nojo necessário para lidarmos com a efemeridade da vida, que consome vida para não ser consumida por outra vida, também virou depressão e é medicalizada.

A melancolia, que também virou depressão, é a nigredo que serve para propiciar a percepção da sombra, apesar do medo do negrume da noite escura da alma, pode apresentar e anunciar a numinosidade do Eros, e nos ensinar amar estar amando de forma altruísta universal e incondicional.

A ansiedade expressa a falta de paciência, a falta e o vazio, o descontentamento pela inexistência de conteúdo, o descontentamento. Por fim, medo, que é um instrumento necessário para preservar a vida, quando fica ausente, transforma-se em loucura, e quando fica exagerado, impede a vida, mas quando suficiente e saudável pode nos proporcionar a coragem, que é a ação do coração para criarmos, transgredirmos a normose e seguirmos adiante a serviço do Self. Por isso, Jung sempre aponta para a arte, como instrumento de transcendência e ressignificação da vida.

“Cruel, obscena, egoísta, imoral, indômita, eternamente selvagem, a arte é a superioridade humana – acima dos preceitos que se combatem, acima das religiões que passam, acima da ciência que se corrige; embriaga como a orgia e como o êxtase.” (Raul Pompeia – O Ateneu)

Para que as expressões criativas aflorem, a alma precisa de tempo, a anergia psíquica precisa fazer seu caminho regressivo, para que o Ego possa resgatar a criança divina, a representante da função transcendente, que pode propiciar a união mística da transmutação simbólico do chumbo em ouro, na metáfora alquímica.

Para isso, precisamos nos libertar das dívidas contraídas pela persona dominante, renunciar à ilusão do poder e reconhecer nossa vulnerabilidade e compreender que o mal é uma realidade presente, que precisa ser vigiado constantemente, e que a cura é a verdadeira arte. E aceitarmos que a felicidade depende de vivenciarmos e aceitarmos integralmente e conscientemente o sofrimento do nosso existir, com alegrias e tristezas, amarguras e doçuras, beldades e fealdades, ganhos e perdas, atrações e repulsões, prazeres e dores, nascimentos e mortes! Porque só encontramos a verdadeira luz depois do reconhecimento da sombra e de fazermos a união simbólica das partes.

Waldemar Magaldi Filho – Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto junguiano de Ensino e Pesquisa (www.ijep.com.br), oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.

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