Têmeno, herói da mitologia grega criou e educou Hera, e em homenagem a ela ergueu três santuários: um para Hera Menina; o segundo para Hera Núbil, quando esta estava casada com Zeus; e o último para Hera Viúva, quando separada do marido. A etimologia da expressão não é muito clara, mas, segundo Junito Brandão, parece se referir a um local, sítio ou habitação. Jung utiliza a expressão temenos em sua obra para se referir a um espaço sagrado e protegido onde é possível encontrar os deuses. Nesse espaço existe a possibilidade do encontro com os conteúdos inconscientes, secretos e obscuros da nossa personalidade, e consequente aprofundamento no processo de individuação. Por isso, simbolicamente, ele também pode ser comparado ao vaso alquímico, recipiente utilizado pelos alquimistas para trabalhar a transmutação da matéria. Jung descreve esse espaço como uma área tabu, um lugar onde, de maneira protegida, podemos entrar em contato com aqueles conteúdos. O temenos deixa de fora os espíritos das doenças, forma assim uma espécie de mônada protetora constituída de partes, porém indissolúvel e indestrutível em sua totalidade. Esse círculo mágico (mesmo que seja geometricamente quadrado – quadratura do círculo ou quadratura circuli) protege o indivíduo da ameaça de cisão que pode ser causada pela multiplicidade do inconsciente.
“Traçar um círculo protetor é um antigo recurso usado por todos que se propõem a realizar um projeto estranho e secreto. Desta forma, protegem-se dos “perils of the soul” (perigos da alma) que ameaçam de fora quem quer que se isole por um segredo. Por outro lado, usa-se tal recurso desde os tempos mais remotos, a fim de delimitar um território sagrado e inviolável; assim o “sulcus primigenius”, por exemplo, era traçado por ocasião da fundação de cidades.” (JUNG, O.C., Vol 12, p. 63)
A expressão simbólica desse círculo mágico pode se dar, por exemplo, através de desenhos e visões de imagens mandálicas. É constituído de partes que formam um todo indivisível e que busca no seu centro a conexão com o divino, formando assim o corpo diamantino que indica a integração de todos os aspectos formadores da personalidade. Dessa necessidade arquetípica por um espaço sagrado surgem, nas diferentes culturas, diferentes expressões do temenos. Todo espaço considerado como templo sagrado, que tem como objetivo principal possibilitar a proteção necessária ao indivíduo para que este encontre seus deuses de maneira segura, caracteriza um temenos. As Igrejas, os templos, o kwoon chinês, o dojo japonês, são exemplos de espaços especialmente designados para a imersão, o aprendizado e o desenvolvimento de si mesmo. É claro que a utilização desses espaços da maneira correta depende de cada um que os visita, não existe uma garantia de que, estando num lugar como este, estaremos automaticamente no caminho da busca pelo si mesmo. Assim como o círculo mágico a que se refere Jung, esses espaços precisam ser demarcados e rituais devem ser necessariamente executados ao entrar e ao sair desses lugares. Eles servem para delinear a fronteira simbólica, ao mesmo tempo que nos dão permissão para ir ao inconsciente e voltar de maneira segura.
Na China, temos um grande exemplo de um temenos que pode ser visitado e apreciado: a famosa Cidade Proibida. Foi construída entre os anos de 1406 e 1420 e serviu como morada da família imperial chinesa desde o ano de conclusão da sua construção até 1912. Hoje abriga um complexo de museus que são visitados por cerca de 80 mil pessoas por dia, sendo considerado o mais visitado do mundo. O nome em chinês da cidade proibida é Zijin Cheng, traduzida literalmente essa expressão significa “cidade proibida roxa”. O espaço celestial onde está localizada a morada do imperador e sua família é chamado ziweiyuan, cuja tradução seria “recinto””, “morada” ou “reino” celestial roxo. A expressão Zi é traduzida como “roxo”, mas na verdade é uma referência, dentro da astronomia chinesa, à Estrela do Norte, Polaris, estrela mais brilhante da constelação Ursa Minor. Essa estrela e os seus arredores demarcam a morada celestial do imperador. A expressão terrena dessa morada, seu correlato no plano dos homens, é a Zijin Cheng, a Cidade Proibida. A expressão Jin significa proibida, e Cheng significa cidade. Essa cidade, residência do imperador, considerado a expressão do ser celestial na terra, era proibida aos homens comuns. Destinada somente à família imperial e àqueles que faziam parte da corte, só podia ser visitada por pessoas de fora com ordem expressa do imperador.
Assim como a busca dos alquimistas pela transformação da matéria era também simbólica, – uma alegoria ao processo de individuação – a construção da Cidade Proibida foi também uma busca do encontro com o si mesmo. Segundo dados históricos, mais de um milhão de pessoas estiveram envolvidos no processo de construção da cidade, e cerca de dezessete milhões de pessoas a visitam anualmente. Sua força como símbolo vem do fato de ser uma representação arquetípica do espaço sagrado que buscamos como espécie humana, e, sendo assim, representa uma projeção daquilo que tentamos encontrar em nós mesmos. Sobre o processo alquímico, Jung afirma:
“Seu trabalho com a matéria constituía um sério esforço de penetrar na natureza das transformações químicas. No entanto, o mesmo tempo era – e as vezes de modo predominante – a reprodução de um processo psíquico paralelo; este podia ser mais facilmente projetado na química desconhecida da matéria, uma vez que ele constituía um fenômeno inconsciente da natureza, tal como a transformação misteriosa da matéria. A problemática acima referida do processo de desenvolvimento da personalidade, isto é, do processo de individuação, é expressa no simbolismo alquímico.” (JUNG, O.C., Vol. 12, p. 40)
A palavra proibição tem sua origem no latim prohibére, que é composto pelo prefixo “pro”, “em frente”, “longe”, e o verbo “habere”, “ter”, “manter”. Proibir é manter algo longe, fora do alcance dos outros. O problema é que, muitas vezes, os outros que são mantidos afastados do círculo mágico, são na verdade partes não integradas da nossa própria personalidade, habitam, portanto, a nós mesmos. Como expressão arquetípica, a potencialidade de criação de espaços sagrados existe em cada um de nós. Vivendo um momento cultural carente de simbolismo, e, com o consequente afastamento de si mesmo, o ser humano fica proibido, mantido longe, do acesso ao temenos que poderia existir em si.
A imensa procura pela visitação de um espaço sagrado como esse, antes proibido, agora permitido aos cidadãos comuns, revela uma projeção de mesma proporção de algo que precisamos buscar dentro de nós mesmos. Não que a visita não seja útil, ao contrário, ela é, inclusive, importante para que possamos entrar em contato com essas imagens arquetípicas. Porém, a transformação precisa acontecer em nós, precisamos criar nossos próprios espaços sagrados, do contrário, nos tornamos meros consumidores daquilo criado por outros. Se o encontro com a expressão criativa alheia não aguçar a nossa própria, se não houver reflexão sobre o fenômeno experienciado, proibimos a nós mesmos de entrar em contato com nossos próprios deuses.
Me parece que a grande maioria da população vive hoje, exatamente, essa proibição de si mesmo. Se proibir, é manter o outro afastado de algo, quando vivemos de maneira apenas literal e unilateral, negando acesso aos nossos conteúdos inconscientes, proibimos a nós mesmos à entrada em nossa cidade celestial e o consequente encontro com nossos deuses e demônios também será impedido. Aquilo que é divino em nós fica interditado. Somado ao medo causado pela possibilidade do encontro com os conteúdos assustadores que nos habitam, a sociedade atual é marcada pela busca incessante da produção ininterrupta, do consumo exagerado e do prazer hedonista, fatores que nos empurram cada vez mais para fora, para o externo, causando e reforçando assim a falta de contato com nosso mundo interno.
A nossa cidade proibida deveria ser permitida, num primeiro momento, a nós mesmos, para que, mais tarde, graças a uma tomada de consciência dos nossos espaços internos, fosse possível abrir as portas de si mesmo ao outro. No entanto, numa cultura marcada pela televigilância constante e, pela autoexposição mediática viciada e viciante, não sobram espaços secretos, íntimos e privados. Negamos a nós mesmos o acesso à nossa cidade proibida, ao mesmo tempo em que concedemos a outros que invadam nossas intimidades. Proibimos a nós mesmos o acesso aos lugares mais profundos – que são importantes e necessários para nosso processo de individuação – -, permissão essa que deveria ser nossa por direito. O pavor da escuridão nos impede de viajar para dentro da nossa psique, enquanto a esperança de uma luz constante e reveladora, porém falsa, nos impele a viver de aparências. Vivemos o reinado das personas, onde os imperadores celestiais que deveriam nos governar se encontram aprisionados em masmorras psíquicas.
“Introjetamos as câmeras e nos moldamos à visibilidade absoluta, não há espaço de intimidade que não esteja atravessado pelos olhares públicos ou ao menos pela percepção de que tudo existe para ser visto. Temos chamado esse fenômeno da destruição do ambiente da intimidade de extimidade, um estado no qual tudo é realizado para ser mostrado, e o sentido vivencial das coisas se transforma em produto de visibilidade.” (Malena Segura Contrera: https://ijep.com.br/artigos/show/caminhos-de-resiliencia-na-sociedade-mediatica-da-televigilancia-e-da-paranoia)
Nesse sentido, a cidade proibida está em nós, e só depende de nós para torná-la acessível e passarmos a visitá-la diariamente. É necessário criar nosso círculo mágico em nossas casas, escolas, consultórios, igrejas e templos. Mas, acima de tudo, em nossa própria psique e corpo, que são a morada simbólica e literal do nosso ser durante essa existência material.
*Jose Luiz Balestrini Junior, ser humano, psicólogo, especialista em psicologia junguiana pelo IJEP, analista junguiano em formação pelo IJEP, especialista em medicina tradicional chinesa, e Sifu (mestre) de Kung Fu.
E-mail: balestrini@lungfu.com.br
Atende e dá aulas na Zona Sul de São Paulo – Av. Ibijau, 236 – Moema
Consultório: (11) 98207-7766
Referências
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia, O.C. vol. 12, Petrópolis, Vozes, 2016.
(Malena Segura Contrera, https://ijep.com.br/artigos/show/caminhos-de-resiliencia-na-sociedade-mediatica-da-televigilancia-e-da-paranoia)