Resumo: Neste artigo, a indiferença ganha palco, mostrando como esse vírus simbólico atua em diferentes campos da vida humana e coletiva. Como também seus efeitos e como todos nós estamos propensos à anestesia da nossa alma em uma época na qual o Eu individualista é constantemente estimulado. Um paralelo com os rumores de guerra é levantado como fenômeno colateral da contaminação do ser indiferente à vida, às pessoas, ao mundo.
Entre rumores de guerra e comportamentos cada vez mais destoantes daquilo considerado como alma, um vírus invisível se espalha pela sociedade levantando muros e promovendo a anestesia da vida e das relações: a indiferença.
Nunca foi tão comum nos depararmos com frases e súplicas anunciando: “o que está acontecendo com as pessoas? Todo mundo ficou doido? Estamos regredindo para um estado animalesco? A cegueira se tornou coletiva? Estamos na geração de zumbis?”
Uma característica fundamental do ser humano é a possibilidade de se sentir afetado, tocado, remexido, por algo; afinal a alma e o corpo possuem poros que permitem a penetração das experiências do mundo e a consecutiva expressão da sensibilidade. Na psicologia junguiana, a anima mundi é um conceito bastante difundido, embora negado e coibido a todo instante na atualidade.
A anima mundi é uma sensibilidade primordial presente desde quando o homem vive imerso na natureza intercambiando ações, construções e interrelações. É a alma do mundo, a alma que liga todos os seres, a natureza e formas de vida.
Jung discorre sobre anima mundi ao citar:
“Diz ele que o sensus naturae é um sentido superior à capacidade perceptível do homem, e insiste, que os animais também o possuem. A doutrina do sensus naturae desenvolveu-se a partir da ideia da alma do mundo que tudo penetra e da qual se ocupou também um outro Guilielmus Parisiensis, predecessor de Alvernus, e conhecido por Guillaume de Conches, escolástico platônico que ensinou em paris.” (OC 8/2, §393)
“A alma do mundo é uma força natural, responsável por todos os fenômenos da vida e da psique.” (Jung; OC.8/2, §393)
Os significados e a profundidade basilar da experiência humana são construídos pela relação, pelo intercambiar, nunca por isolamento ou apatia. Jung, de forma bastante esclarecedora, comenta:
“Da mesma forma que as diversas partes de um organismo vivo atuam simultaneamente, numa harmonia recíproca e significativa, assim também os acontecimentos do mundo se acham mutuamente numa relação significativa, que não pode ser deduzida da causalidade imanente” (Jung, OC.8/3, §917).
Quando viver é algo pesado, sem sentido e totalmente automático, não há mais o Eros, a capacidade de se relacionar com aquilo que chega até mim, seja por anestesiar a minha existência ou por um isolamento narcísico daquilo que me toca. Se não há relacionamento, a tensão necessária para que ocorra a transformação e o desenvolvimento da consciência é enterrada, solapando potências e a possibilidade de diferenciação e integração da multiplicidade da vida. A anima mundi e o encanto perfumando da Anima entram na lista dos procurados; e, contaminadas pelo vírus da indiferença, pessoas e estruturas de uma sociedade (baseada no consumo, na disputa e na concorrência) acabam sendo drenadas e desconfiguradas.
Emma Jung contribui recitando as seguintes palavras:
“O papel de transmitir conteúdos inconscientes, no sentido de torná-los visíveis, recai acima de tudo sobre a anima. Ela ajuda na percepção de coisas que de outra maneira permanecem no escuro. Há uma condição prévia para isso: trata-se de uma espécie de escurecimento da consciência, portanto da instalação de uma consciência mais feminina, que é menos penetrante e clara que a masculina, mas que num âmbito mais amplo percebe coisas ainda vagas” (Emma, p. 45, 2020).
Os rumores de guerra externas clamam pela conscientização da cisão interna presente na subjetividade da massa e pela identificação de si com a disputa emocional com aqueles que habitam o mundo – pautado no vencer a todo custo. Na ausência da relação com o outro, as referências são perdidas e impossíveis de serem construídas, reformuladas. Tanto as referências pessoais como as coletivas se perdem. Assim, o inconsciente coletivo ganha energia psíquica e seus conteúdos primitivos e arcaicos, representados por imagens arquetípicas, invadem o campo consciente.
Como resultado, a função primordial do discernimento, da mediação e da correlação do ego e do campo da consciência ficam abalados, prejudicados. Deste modo, o comportamento de massa e a indiferença e apatia, a incapacidade de se indignar, se alastram como um vírus. O mais letal de todos, sucumbindo a humanidade e provocando uma guerra consigo mesmo, com a natureza, com as diferentes formas de vida, com o outro.
A criatividade, a capacitar de criar, é possível quando a opostos se tensionam, se relacionam. A apatia e o sentimento de solidão se fortalecem quando nada mais é criado, nada mais é tensionado. Várias terapias e técnicas são criadas com o intuito de trazer sentido e significado para uma realidade seca e fria, sem contatos, sem troca e sem a capacidade de se indignar perante a realidade imposta. Será que são eficientes em um mundo contaminado pela indiferença?
“Todo ser criador é uma dualidade ou uma síntese de qualidades paradoxais. Por um lado, ele é uma personalidade humana, e por outro, um processo criador, impessoal.” (Jung, OC 15, §157)
A capacidade de ação e de escolha criativa, rica, múltipla perpassa pelo conhecimento do mundo do outro, pelo palco desconhecido por mim. É no cruzar fronteiras, é o sair da estagnação, é ouvindo o grito do arquétipo do herói que realidades são transformadas e nosso mundo interno renovado.
Com a inovação da inteligência artificial (que chegou no mundo levantando dúvidas sobre o futuro da humanidade), a fantasia de uma solução imediata, virtual e fria se tornou uma obsessão. Algo a se conquistar a todo custo. Campo fértil para que o vírus da indiferença se alastre.
Logo, vale a pena destacar as principais áreas de atuação do vírus da indiferença: relacionamentos afetivos que não mais se sustentam; a vivência interna que aumenta o conhecimento de nós mesmos se tornando cursos de coaching; e a diminuição do contato com outro ser humano estimulando a loucura. Deste modo, a subvalorização dos elementos do princípio feminino (como receptividade, sensibilidade, acolhimento, abertura para o outro, se relacionar) se torna um efeito colateral perigoso, indesejado e brutal.
“ela (a anima) é algo que vive por si mesma e que nos faz viver; é uma vida por detrás da consciência, que nela não pode ser completamente integrada, mas da qual pelo contrário esta última emerge” (Jung, OC.9/1. §57)
Há uma demanda crescente na prática clínica sobre a dificuldade em construir relacionamentos ricos em troca, em encontrar pessoas abertas e disponíveis para uma união, em sustentar os desafios e os sabores amargos presentes em um se relacionar, em se entregar para um outro corpo tanto nas relações sexuais como no conhecimento do próprio prazer e seus limites. O vírus da indiferença contamina o campo relacional e a possibilidade do vínculo, pois todo encontro é também uma transformação de sistemas psíquicos diferentes interagindo constantemente.
Quanto mais se busca a independência e a indiferença, mais guerras pela busca do amor são travadas.
Emma Jung explica: “A configuração de relações pertence preferencialmente à configuração da vida, e esta é a área apropriada para a energia criativa feminina” (Emma, p.39, 2020)
A terceirização do próprio processo de conhecimento e desenvolvimento de consciência é o mais novo produto das prateleiras digitais e marketing em redes sociais. Um requisito fundamental para qualquer jornada de individuação é sair da postura de indiferença consigo mesmo e olhar todos os contrastes e conteúdos sombrios que nos tocam e provocam. Não há curso digital que substituirá a própria jornada e construção de um conhecimento de si próprio. Não há integração de conteúdo inconsciente de forma automática e paga, mas sim através de um processo pessoal, singular, subjetivo, reflexivo. Assim, ser indiferente ao próprio processo é se identificar com o processo do outro.
Von franz comenta:
“A única orientação que recebem é na reunião com outros xamãs, mediante a troca de experiências, o que lhes possibilita não estarem a sós com suas experiências interiores. De um modo geral, os mais jovens procuram os xamãs mais velhos, receosos de que se não o fizerem poderão enlouquecer, como também nos aconteceria” (Franz, p.30, 2022).
Quando não se tem com quem compartilhar nossas angústias, sonhos e temores, quando a indiferença assume o palco da vida, a loucura se torna uma via de escape, uma via para a expressão dos conteúdos inconscientes, compensando a vida que deixou de ser humana e ficou estéril.
Por fim, é no comungar, no se aproximar, no se permitir afetar e ser tocado, no contato com o outro, que se reconhece a verdade natureza da alma humana. Como consequência, se afasta o autoritarismo e a ilusão da individualidade absoluta preponderante que vai dominando e destruindo outras formas de vida diferentes. Rompantes autoritários pelo mundo nunca foram tão frequentes. Demostrando assim que o vírus letal da indiferença não é mais apenas individual, mas coletivo. Reforçando a ideia junguiana de uma psicologia pautada em um intercâmbio entre o individual e o coletivo, entre o singular e o arquetípico.
Pedro Pimentel Rocha – Analista em formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
FRANZ, V. Alquimia. Uma introdução ao simbolismo e seu significado na psicologia de Carl. G. Jung. 2º. Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2022.
JUNG, E. Animus e anima. Uma introdução à psicologia analítica sobre os arquétipos do masculino e feminino inconscientes. 2º. Ed. São Paulo: Editora Pensamento Cultrix, 2020
JUNG, C. G. O espírito na arte e na ciência. OC.15. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. A natureza da psique. OC.8/2. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Sincronicidade. OC.8/3. Petrópolis: Vozes, 2021
JUNG, C. G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC.9/1. Petrópolis: Vozes, 2021