Resumo: A busca pela parentalidade perfeita tornou-se uma característica marcante da contemporaneidade, amplificada pelas redes sociais e o padrão de performance estabelecido. Essa pressão constante leva ao esgotamento emocional e físico dos pais e filhos, resultando no fenômeno conhecido como Burnout Parental. Distante dos saberes instintivos e ancestrais, os pais se veem presos a um ideal de perfeição inalcançável, desconsiderando as reais necessidades de seus filhos e de si mesmos. Sob a perspectiva Junguiana, o artigo convida à reflexão sobre as a sombra dessa parentalidade, revelando o impacto psicológico profundo desse padrão idealizado.
A busca da perfeição
A rotina de muitas famílias parece ter se tornado uma grande maratona sem direito a medalha no final do dia. É preciso acompanhar de perto todas as tarefas escolares e extracurriculares dos filhos, dar conta do trabalho e, de forma alguma, demonstrar que os filhos “roubam” o tempo dedicado à vida profissional. Criar crianças super bem-educadas, excelentes alunos e autorregulados emocionalmente. Enquanto tudo isso acontece, os pais e mães devem ressignificar toda criação que recebeu e aplicar, sem direito a erro, novas metodologias baseadas no repertório emocional que adquiriu há menos tempo do que se torno pai ou mãe.
A busca pela parentalidade perfeita tornou-se um sintoma que evidencia o peso e a expectativa gerada sobre a criação de filhos na contemporaneidade, trazendo impactos negativos aos pais e às crianças. Trata-se de uma meta de performance inatingível e cruel para toda a família, uma vez que a perfeição é algo sempre imaginal e muito distante do real.
Abandonamos os saberes ancestrais, transgeracionais e instintivos sobre o cuidar, o nutrir e o acolher – ligados ao complexo materno presente no inconsciente coletivo – e passamos a adotar fórmulas, dicas e regras difundidas nas redes sociais por “influenciadores digitais” totalmente alheios à realidade social, econômica e psíquica vivida na intimidade de cada família. Perdemos a rede de apoio familiar e comunitária e, com isso, acreditamos não saber mais maternar e paternar, que é proporcionar à criança – com afeto e presença – o desenvolvimento de todo o seu potencial psíquico, físico e emocional. Aspectos que nada tem a ver com performance.
Assumimos novas demandas impostas por uma sociedade que acredita na fórmula certa para a construção da família perfeita.
O resultado dessa pressão é um estresse crônico, aliado à uma sensação de fracasso, impotência e exaustão, que já conhecemos pelo nome de Burnout. Porém agora, estamos falando do Burnout Parental.
O estudo “O poder da parentalidade positiva: evidências para ajudar os pais e seus filhos a prosperarem” (tradução livre), desenvolvido pela Universidade de Ohio, nos Estados Unidos, em 2023, apresenta dados alarmantes sobre o adoecimento dos pais que não conseguem alcançar o ideal da família feliz pautado por padrões irreais e distorcidos sobre o que é parentalidade e, mais especificamente, parentalidade positiva.
O material divulgado menciona que cerca de 60% dos pais entrevistados relatam estarem com Burnout. Sentem que não são bons pais e mães. Quando se dedicam ao trabalho, acreditam que falham no cuidado com os filhos, e, quando dedicam tempo aos filhos, sentem que precisam exaustivamente compensar essas horas de trabalho. As expectativas que têm de si e de seus filhos são muito mais altas do que de fato é possível ser e fazer.
Ainda de acordo com o estudo, o padrão de parentalidade positiva pressupõe, no imaginário coletivo, pais que são modelos de paciência e calma, cujos filhos são sempre bem-comportados e respeitáveis. Havendo, portanto, no ideal coletivo, uma associação intrínseca entre os conceitos de parentalidade positiva e parentalidade perfeita.
No artigo técnico publicado no site News Medical Life Sciences, a Dra. Liji Thomas, amplia o estudo americano e aponta o sentido real do que seria a parentalidade positiva.
A parentalidade positiva incorpora múltiplos objetivos, o mais importante dos quais é construir um relacionamento de confiança e carinho com os filhos. Comunicação e escuta com respeito à criança são essenciais para isso. Além disso, estabelecer limites, elogiar e recompensar resultados comportamentais desejáveis, e amá-los não importa o que aconteça. O amor, a segurança e o conforto que a criança ganha com esse relacionamento são essenciais para desenvolver uma pessoa emocional e relacional saudável quando adulta. (THOMAS, 2024).
No entanto, na sociedade contemporânea, onde tudo se torna objeto de competição e performance, os conceitos ganham novos sentidos e significados.
Na perspectiva Junguiana, podemos ampliar para a unilateralização desse ideal de comportamento parental, onde não cabem erros, frustrações, medos e muito menos uma curva de aprendizado.
Parentalidade Contemporânea e o Papel das Redes Sociais
A parentalidade traz o início de uma transição, ou seja, uma nova fase de incertezas e mudanças sem um destino certo. Nessa era digital, onde a rede social dita as “regras”, os conhecimentos se tornam incertos e superficiais. Como muito bem analisou Zygmunt Bauman ao longo de anos de estudos sobre a sociedade pós-moderna e suas relações superficiais e líquidas, são tempos de medo, insegurança e, portanto, de muita negatividade. “Há uma propensão natural a negar o que se teme muito e o que não se sabe resolver”. (BAUMAN apud ABRANCHES, 2017, p. 29). E o que o filósofo chama de negatividade, faço um paralelo com o que Jung denominou Sombra. Aquilo em nós que desconhecemos, tememos ou negamos.
A sombra vem à tona, muitas vezes, com uma convocação moral, uma atitude compensatória do ego. Nesse sentido, entendo que o Burnout Parental é um sintoma contemporâneo manifestado por essa sombra coletiva da performance, da parentalidade perfeita e desconectada com a real necessidade desses pais e crianças em sua singularidade.
Segundo o filósofo contemporâneo Byung-Chul Han, tudo virou trabalho, produtividade e performance. Entendo que até a parentalidade embarcou nesse modus operandi. Perdeu-se a alma e o sentido. Entrou em cena a parentalidade pautada por metas e que busca resultados.
O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão do desempenho.
Visto a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida. […]. O que torna doente, na realidade, não é excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho. (2021a, p. 27).
Se tememos o desconhecido, não entramos em contato com saberes primordiais que “aprendemos” a negar. O resultado é uma sociedade desconectada com o si-mesmo mas hiperconectada com a materialidade, a racionalidade e a performance. Pais e filhos que seguem cartilhas irreais e surreais de padrões inatingíveis.
A natureza instintiva é o guia que nos conduz a nos reconectarmos com o nosso ritmo interno, nossas necessidades, nossa intuição cuidadora e protetora, ou seja, o nosso ciclo vital.
O instinto são, entretanto, fatores impessoais, universalmente difundidos e hereditários, de caráter mobilizador, que muitas vezes se encontram afastados do limiar da consciência […]. […] são forças motrizes especificamente formadas, que perseguem suas metas inerentes antes de toda conscientização, independente do grau de consciência. (JUNG, 2021b, p. 52-53).
Talvez não exista nada na nossa experiência ontogenética que nos permita responder aos desafios experienciados na parentalidade de forma prévia. E é esse desconhecido que nos faz buscar respostas ou referências externas, sujeitos a pressões sociais em busca do sucesso parental.
O largo número de perfis nas redes sociais voltados para a parentalidade, isso inclui influenciadores e anônimos digitais que disseminam conceitos, sugestões e vivências sobre maternidade, paternidade e ambos, reforça o importante papel que as redes têm sobre a construção do “ideal” de parentalidade no século XXI. De acordo com relatórios do projeto social: We are Social em parceria com o Hootsuite, em 2022, no Brasil eram 150 milhões de usuários com perfis ativos em redes sociais – um dos maiores percentuais do mundo – sendo 130 milhões no Facebook e 69 milhões no Instagram. Já de acordo com a plataforma Shopify, no mesmo ano, o TikTok chegou à marca de 1,7 bilhão de usuários, sendo 98,6% ativos no Brasil.
No entanto, o que há em comum entre esses perfis parentais é a revelação de uma parentalidade cansativa e estressante.
Percebemos então que existe nesse ambiente digital, ora implícita ora explicitamente, um modus operandi de parentalidade. Ou como Jung aponta, uma persona idealizada: a persona de pais e mães perfeitos e filhos mais que perfeitos, resultantes de uma parentalidade super perfeita. Uma identificação total, onde pais e mães incorporam, sem qualquer crítica ou reflexão, a projeção da perfeição.
No entanto, Jung sugere que os instintos perseguem suas metas. Ou seja, podemos nos conectar as nossas experiências filogenéticas, aos saberes primordiais e instintivos, encontrando mais e melhores respostas do que a larga rede social e toda a inteligência artificial são capazes de responder. Precisamos trabalhar a favor da diferenciação, desenvolvendo conteúdos inconscientes e sombrios e retirando o ego do padrão defensivo e autômato.
Nessa jornada pela parentalidade perfeita esbarramos em outra dualidade: Mimar ou não mimar os filhos, eis a questão!
O Amor Incondicional X Pacto de Amor
Um padrão de comportamento transferido para as crianças que precisam ser atendidas não em suas necessidades vitais, psíquicas ou afetivas, mas em seus caprichos vazios de afeto e responsabilidades. Algo que a psicanalista Marcia Neder denominou como infantolatria, o culto à criança.
A cultura ocidental, a partir de um determinado momento, transformou a criança em uma divindade, um ser divino. […]. A partir do século XIX, houve uma grande mudança na imagem do filho, da mãe e do pai. Em vez de organizada pelo poder do pai, a família passou a ser organizada pelo amor à criança. […]. Quem perdeu o poder foi o adulto e quem ganhou o poder foi a criança, e ganhou porque nós demos esse poder a ela. (NEDER apud SOUZA, 2022, p.120).
E por que será que o ideal de crianças sempre bem-educadas que a parentalidade positiva sugere, resultou em uma realidade de crianças mimadas e pais esgotados?
A falta de referenciais positivos e acolhedores, sejam eles internos ou externos, nos empurrou para o medo. O medo de falhar, o medo de “não dar conta”, o medo de perder o amor dos filhos. Uma atitude compensatória de uma geração que foi para o mercado de trabalho e terceirizou a criação das crianças e agora busca equilibrar essa equação, mas sem renunciar à alta performance em nenhum âmbito da vida, seja pessoal ou profissional. Parece que o resultado é uma parentalidade insegura, polarizada e adoecida. Saímos da relação autoritária e dominadora entre pais e filhos para a relação permissiva e passiva.
Confundimos amar com mimar. Mas não o mimar necessário na relação primal positiva na primeira fase da vida, essa que é sinônimo de um eixo ego-Self saudável. Adotamos o mimar que atende aos caprichos e vontades, ultrapassa limites físicos, psíquicos e emocionais.
Segundo NEUMANN, é preciso saber diferenciar o mimar “verdadeiro” do “falso”, da mãe-bruxa que atrai a criança a sua casa de chocolate. “Mimar […] não produz distúrbios sérios, até tornar-se necessário para a criança afrouxar os laços com a mãe, e esse processo é impedido ou prevenido pelo fato de a mãe ter mimado o filho” (1995, p. 54. Grifos meus). Nesse caso, o mimo não saudável irá gerar um processo de dependência e co-dependência e que irá afetar diretamente o desenvolvimento da criança, mas também a autoridade e liberdade dos pais. Vale ressaltar que podemos tranquilamente ampliar esse conceito que o Neumann designa à mãe para todos que exercem a parentalidade.
Esse mimar contemporâneo, que ultrapassa a primeira infância, priva as crianças de se desenvolverem a partir de inibições, contradições e frustrações.
Uma dinâmica que será fundamental para que no futuro esses indivíduos sejam capazes de suportar a tensão psíquica entre o consciente e o inconsciente.
Talvez a base da criação devesse estar mais associada à confiança, ao afeto e à segurança que a parentalidade pode e deve dar à criança.
Não podemos esquecer que a criança precisa se tornar um ser autônomo no futuro. O desejo dos pais e das mães em suprirem todas as necessidades de seus filhos, de nunca falharem, de serem onipresentes e onipotentes, é tão fantasioso e infantil quanto o de se atingir a meta da parentalidade perfeita. E essa neurose é compartilhada entre pais, mães e filhos, como bem explica Jung, “a criança se encontra de tal modo ligada e unida à atitude psíquica dos pais, que não é de causar espanto se a maioria das perturbações nervosas verificadas na infância devam sua origem a algo de perturbado na atmosfera psíquica dos pais” (2021b p. 48).
Portanto, olhar para a sombra dessa parentalidade perfeita é uma tentativa de dar luz a esse sofrimento psíquico que evidencia uma atitude neurótica da contemporaneidade. Uma exacerbação desse padrão performático e idealizado que tem se espalhado por todos os âmbitos da vida humana, infelizmente até mesmo no que se refere ao desenvolvimento psíquico, físico e emocional das crianças.
Clarisse Grand Court – Membro Analista em formação IJEP
Maria Cristina Mariante Guarnieri – Analista didata IJEP
Referências:
ABRANCHES, Sergio. A Era do Imprevisto: a grande transição do século XIX. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
GAWLIK, Kate; MELNYK, Bernadette Mazurek. The Ohio State University. The Power of Positive Parenting: Evidence to help parents and their children thrive. 2024.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2017.
JUNG, Carl Gustav. Aion: estudo sobre simbolismo do Si-mesmo. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2020.
_____, Carl Gustav. Os Arquétipos e o inconsciente coletivo. 12.ed. Petrópolis: Vozes, 2021a.
_____, Carl Gustav. O desenvolvimento da personalidade. 13.ed. Petrópolis: Vozes, 2021b.
NEUMANN, Erich. A Criança: Estrutura e Dinâmica da Personalidade em Desenvolvimento desde o Início de sua Formação. 10.ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
THOMAS, Liji. (2024). Study finds pressure to be “perfect” leads to unhealthy impacts on both parents and their children. In: News Medical Life Sciences. Disponível em. https://www.news-medical.net/news/20240510/Study-finds-pressure-to-be-e2809cperfecte2809d-leads-to-unhealthy-impacts-on-both-parents-and-their-children.aspx Acesso em 20 de outubro de 2024.
WOODMAN, Marion. O Vício da Perfeição: Compreendendo a relação entre distúrbios alimentares e desenvolvimentos psíquicos. São Paulo: Summus. 2002.
TikTok no Brasil: estatísticas e dicas (2024). Disponível em https://www.shopify.com/br/blog/tiktok-brasil . Acesso em 20 de outubro de 2024.
SOUZA, Ana Luiza de Figueiredo. Ser mãe é f@oda: mulheres, (não maternidade) e mídias sociais. Porto Alegre: Zouk. 2022.
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