Carl Gustav Jung nos deixou o legado da teoria e prática da Psicologia Analítica. Sua contribuição está sintonizada e até alicerça todo pensamento humanista, integrativo, holístico, ecológico, sustentável, transdisciplinar, transpessoal, espiritualista e transcendental. A análise junguiana, por conta destas características, objetiva o que Jung denominou como “processo de individuação”, um caminho de autoconhecimento que irá contribuir para que o indivíduo, além de conquistar autonomia corporal, familiar, amorosa, laboral, social e espiritual, vá ao encontro da busca de sentido e significado existencial, aceitando, respeitando e se fazendo ser respeitado, em sua condição única, complexa, criativa e insubstituível, apesar de não ser imprescindível para nada e possuir, em sua base fundante, padrões universais e coletivos. Por isso, paradoxalmente, somos simultaneamente singulares e plurais, com nossas peculiaridades e determinantes psicológicas.
Outra questão é a ilusão que temos da realidade e, consequentemente, da verdade! O que é a realidade senão a projeção mental do nosso psiquismo, que faz nosso pequeno ego sofrer as contínuas influências do inconsciente coletivo, pessoal, arquétipos, complexos, sombra, anima ou animus e os padrões de condicionamentos familiares e culturais. Por isso, tanto a realidade quanto a verdade são produções subjetivas e peculiares, cada um tem a sua e todas são verdadeiras e reais por mais paradoxais e antagônicas que sejam. Trabalhamos com as imagens e não com os objetos concretos e essas imagens sofrem infinitas influências e acabam fazendo muitas confusões nas mais diversas formas de relacionamento. Além de termos que lidar com a perspectiva da morte, da solidão, do medo, da falta de sentido e com o desejo de liberdade no contexto da interdependência e da necessidade de adaptação cultural, produtora de vários conflitos éticos por estar rendida a esse padrão patriarcal, hierárquico, sectário, desigual, machista e preconceituoso.
“Entre o “eu faço” e o “eu estou consciente daquilo que faço” há não só uma distância imensa, mas algumas vezes até mesmo uma contradição aberta. Consequentemente existe uma consciência na qual o inconsciente predomina, como há uma consciência em que domina a autoconsciência. Este paradoxo se torna imediatamente compreensível quando nos damos conta de que não há nenhum conteúdo consciente a respeito do qual se possa afirmar com absoluta certeza que é em tudo e por tudo consciente, pois isto necessitaria uma totalidade inimaginável da consciência, e uma totalidade desta natureza pressuporia uma totalidade ou integralidade igualmente inimaginável da mente humana. Assim chegamos à conclusão paradoxal de que não há um conteúdo consciente que não seja também inconsciente sob outro aspecto.” (OC8/2 §385)
Nesta abordagem, psique e alma praticamente são sinônimos e é inseparável do corpo. Por isso, é inadmissível um indivíduo se autonomear analista junguiano sem ter tido, de fato, vivenciado seus conteúdos sombrios, para que a verdadeira luz, aquela que vem das trevas, possa emergir, iluminando seu caminho existencial, aprendendo a fazer uso da centelha divina, que é nossa dimensão espiritual, responsável em manter, enquanto estamos aqui nesta experiencia terrena, a união entre corpo e alma, para que a consciência egóica possa se diferenciar do mar do inconsciente coletivo e servir a alma. Alegoricamente, a Psique é como uma gota d’agua, que apesar de parecer insignificante para o oceano, sem ela ele não teria toda a diversidade, exuberância e dimensão que tem.
O processo do autoconhecimento não é tranquilo, prazeroso e alegre, mas conflituoso, doloroso e triste, porque exige confronto consigo mesmo e mudanças, e essas sempre são rechaçadas: “Não se chega à claridade pela representação da luz, mas tornando consciente aquilo que é obscuro. Mas isto é desagradável e, portanto, impopular” (OC13 §335). Essa é a razão de tanta resistência e tentativas de caminhos “terceirizados” com medicamentos, experiencias de estado alterado de consciência, fanatismo religioso, racionalização materialista, crença e apostas em gurus, coachings, líderes carismáticos, dietas, trabalhos corporais ou energéticos, entre outras ofertas midiáticas ou novidades do momento, que não conseguem compreender que a cura e a felicidade não podem estar fora do si-mesmo. Essas ofertas “mágicas”, rápidas e rasas, mesmo quando exigem sacrifícios físicos ou monetários, apesar de estarem alinhadas com o mainstream da lógica do mercado, que estimula o consumo impulsivo e, preferencialmente, sem profundidade da alma e descartável. Aliás, essa “entidade” que chamamos de mercado, para quem quer fugir do chamado da Alma, oferece inúmeros meios para manter e reforçar as atitudes defensivas, com suas crenças limitantes e o autoengano da conquista do poder, da riqueza, do sucesso, da fama, da ascensão hierárquica, do consumo, do prazer imediato e efêmero, entre outras que servem apenas para agravar o sentimento de vazio, a falta de sentido, as relações liquidas e a alienação espetacular, com uso abusivo dos artifícios estéreis desta cultura do medo e do espetáculo.
“Na realidade, não hesitamos em fazer as coisas mais absurdas a fim de escapar a própria alma. Pratica-se a ioga indiana de qualquer escola, seguem-se regimes alimentares, aprende-se de cor a teosofia, rezam-se mecanicamente os textos místicos da literatura universal – tudo isso porque não se consegue mais conviver consigo mesmo e porque falta fé em que algo de útil possa brotar de nossa própria alma. Pouco a pouco está última tornou-se aquela Nazaré da qual nada de bom se pode esperar; vai-se, portanto, procurá-la nos quatro cantos da terra: quanto mais distante e exótico, melhor.” (OC12 §126)
Isso justifica o porquê poucas pessoas tem prontidão para esse processo que exige, simultaneamente, entrega, humildade, perseverança, coragem e força para poder encarar a sombra, reconhecer os complexos, diferenciar, separar, superar e integrar aquilo que não faz mais parte da sua essência e, ao mesmo tempo, reconhecer, aceitar e servir aquilo que faz parte, também chamado de daimon: “A luz de cima escurecia ainda mais a escuridão, mas a lumen naturae é a luz da própria escuridão; ela clareia sua própria obscuridade, e o escuro compreende esta luz; por isso ela transforma o negro em claro, queima “tudo supérfluo” e deixa para trás nada mais do que “fezes e escória e a terra maldita”. (OC13 §197)
Nesta perspectiva teórica estudamos categorias genéricas, mas cada indivíduo é um recorte e uma narrativa particular desta categoria. Desta forma, se um jovem nos traz a queixa de não ter personalidade, precisamos trabalhar com ele tanto na dimensão universal quanto na particularidade de sua queixa, ampliando o significado de personalidade na subjetividade do analisando e do analista e, da mesma forma, a objetividade das narrativas universais. Só assim poderemos reconhecer a dimensão arquetípica, que tem características compulsórias, por estar dominando a estrutura egóica deste indivíduo, produzindo sofrimento, por conta de o complexo dominante estar represando a energia psíquica, interditando-o de ir para a vida, ou seja, fazer trocas.
Atendemos almas humanas e não sintomas, estereótipos, religiões, raças, cor da pele, gênero sexual, homossexuais, bipolares, esquizofrênicos, pretos entre outros rótulos culturais ou patologizantes. É evidente que, nesta sociedade sectarista, retrógrada, machista e racista estrutural, uma mulher preta, pobre e lésbica terá muito mais dificuldades do que um homem branco, rico e heterossexual, mas isso não pode ser determinante, porque acreditamos que todos os seres humanos possuem recursos para seguir seu caminho evolutivo e servir a alma, por serem complexos, criativos e, paradoxalmente, únicos, peculiares, singulares, plurais e universais. Nesta direção, até o ato suicida pode ser compreendido com uma atitude de coragem ou de covardia, de negação da vida ou celebração da vida, de falta de saída ou a melhor saída, de liberdade ou aprisionamento, porque ninguém pode atribuir qualquer significado às escolhas e atitudes de uma pessoa a não ser ela mesma, a não ser que tenhamos intimidade de alma com ela, para evitarmos sentenciá-la com as categorias binárias, que levam para a polaridade maniqueísta.
Precisamos ampliar a queixa para poder atravessá-la, ou seja, contribuir para que ela seja superada, ressignificada, transcendida e integrada. Bem diferente do padrão dominante da primazia do ego controlador, que só serve para estimular a manutenção e até aumento da queixa, devido a dialética opositiva entre controle e contra-controle, presente entre o eu e o inconsciente. Esta é a diferença entre o revoltado e o revolucionário, que começou a transformação no seu íntimo. O revoltado projeta seu complexo no entorno relacional e acaba identificando tudo que possa reforçá-lo, muitas vezes distorcendo os fatos. Nesta dimensão antinômica, não existe absoluto. Este trabalho dialético irá possibilitar que esse jovem venha perceber que não ter personalidade passa a ser sua personalidade, é isso se aplica em ser excluído, minoria, preto, homossexual, bipolar. Iremos contribuir para que ele reflita as perdas e os ganhos desta personalidade nesta etapa da sua vida, que está causando sofrimento, disfunção, incapacidade e padrões monotemáticos e unilaterais.
É necessário fazermos esse exercício com todas as queixas, independentemente de quais forem, porque o padrão vicioso sempre tem primazia quando o Ego está alinhado com o monoteísmo da consciência, ao confundir racionalidade com racionalização, que é um mecanismo de defesa diante da pluralidade, diversidade e mistério que habitam nosso íntimo. Com esse mecanismo, mesmo com uma queixa de inferioridade ou falta de personalidade, temos o domínio do Ego inflado, unilateralizado, atuando, reconhecendo, desejando e valorizando apenas o que é literal, redutivo e causal, negando a dimensão metafórica e simbólica, porque assim ele se retroalimenta da ilusão do controle, e aplaca o medo em busca das mais variadas formas de poder, apesar de, infelizmente, ficar incapaz de amar, ou seja, se entregar, simbolicamente, para as várias formas de morte do existir. Neste sentido, sempre comento que o processo da análise é um convite para a morte, porque todo desenvolvimento implica em mudança das crenças, por meio de experiências iniciáticas de morte e renascimento simbólicos!
“Alma é um território em si, com leis que lhe são próprias. A essência da alma não pode ser derivada de princípios de outros campos da ciência, caso contrário violar-se-ia a natureza particular do psiquismo. Não se identifica com o cérebro, com os hormônios, nem com qualquer dos instintos conhecidos, mas tem que ser entendida como fenômeno “sui generis”. (OCXVI/1 § 22)
Jung percebeu, na prática, que o processo analítico, quando o analisando consegue enfrentar as resistências, os mecanismos de defesa, os condicionamentos, a sombra, os complexos autônomos e as sabotagens, além das próprias, a de todo entorno relacional, são percorridas quatro etapas: a confissão, o esclarecimento, a educação e a transformação. Além de também constatar que a alma não se identifica com nenhum tipo de rótulo, seja ele cultural, médico, religioso, racial, de gênero ou orientação sexual.
Na confissão acontece a catarse, onde o analisando “despeja” suas queixas, fantasias, ressentimentos, raivas, medos, culpas, mágoas, ansiedades, lembranças traumáticas, dramáticas ou alegres, incluindo seus segredos, que funcionam como venenos psíquicos, transformando seu portador estranho à comunidade, pois o segredo inconsciente prejudica muito mais, apesar de que a contenção de qualquer segredo, consciente ou inconsciente, produz doenças. Mas, como disse Jung (OCXVI §124), esse veneno, revelado em pequenas doses, pode ser um medicamento preciosíssimo, e até uma condição prévia indispensável a qualquer diferenciação individual. A catarse é uma espécie de confissão completa, onde os afetos contidos liberam emoções.
Geralmente, após a catarse, na maioria das vezes, os sintomas neuróticos ficam invisíveis, apesar de que, em função do vínculo empático estabelecido, e a vivência cotransferêncial entre o analista e analisando, uma espécie de ligação psíquica, bilateral, que irá contribuir para que o processo siga adiante. Porque, na psicologia analítica, trabalhamos na transferência. Infelizmente, em muitos casos, a ligação do analisando permanece com os conteúdos do seu inconsciente, que podem ser projetados no analista, causando paralisia, tensão e desconforto, assim como quando o analisando não consegue metaforizar e simbolizar suas fantasias, sonhos e projeções, permanecendo na literalidade e unilateralidade.
Quando o processo analítico permite a elucidação dos afetos, e suas respectivas emoções, que foram expostas na etapa confessional, muitas vezes produzindo ab-reações, adentramos na fase do esclarecimento, onde analista e analisando começam a compreender os fenômenos, o contexto histórico, a dimensão multifatorial e até transpessoal de tudo que aconteceu ou deixou de acontecer, integrando tanto as causas passadas quanto as potencialidades futuras, presentes em todas as intercorrências existenciais. Na terminologia da psicologia analítica, essa compreensão, que é teleológica, por integrar nossa dimensão ancestral e toda potencialidade anímica para nossa realização, presente no daimon ou chamado vocacional, buscamos tanto a compreensão integrativa das intercorrências redutivas causais – método psicanalítico que pode ser destrutivo e paralisante, quando fica unilateral, aprisionando a pessoa ao passado – quanto as ampliações prospectivas sintéticas, geradoras de insight, como força mobilizadora da vontade, para que a energia psíquica possa fluir na direção da autonomia e do ser social, em todas as seis direções: para frete e para trás, para cima e para baixo, para dentro e para fora, contemplando as quatro funções psíquicas do Ego: pensamento, sentimento, sensação e intuição e os dois tipos: extrovertido e introvertido.
Neste momento, adentramos na terceira etapa do processo analítico, que é a pedagógica ou educação. Ela vem acompanhada do alargamento da consciência, o esclarecimento e aceitação dos seus conteúdos sombrios, até então negados ou projetados no entorno relacional. Nesta etapa o Ego sai da sua condição de miserabilidade egoísta, para começar a perceber a infelicidade comum da vida cotidiana, ordinária, individualista e desprovida do propósito do servir. A moral do politicamente correto, do falso puritanismo e dos códigos de conduta das instituições religiosas, familiares, sociais ou laborais será substituída pela necessidade da atuação integrativa entre a ética e a estética. A vontade de se educar impulsiona essa fase evolutiva que irá desembocar na transformação, última etapa do processo, levando-nos, alegoricamente, subir a escada espiralada de Jacó.
“Por estranho que pareça, a cada fase da evolução da nossa psicologia pertence algo de definitivo. Na catarse, que faz despejar tudo até o fundo, somos levados a crer: pronto, agora tudo veio à tona, tudo saiu, tudo ficou conhecido, todo medo foi vivido, toda lágrima derramada, daqui para a frente tudo vai correr às mil maravilhas. Na fase do esclarecimento, diz-se com a mesma convicção: agora sabemos o que provocou a neurose as reminiscências mais remotas foram desenterradas, as últimas raízes extirpadas, e a transferência nada mais era do que uma fantasia para satisfazer um desejo paradisíaco infantil ou uma retomada do romance familiar; o caminho para uma vida sem ilusões está desimpedido, aberta a via da normalidade. A educação vem por fim, e mostra que uma árvore que cresceu torta não endireita com uma confissão, nem com o esclarecimento, mas que ela só pode ser aprumada pela arte e técnica de um jardineiro. Só agora é que se consegue a adaptação normal. Curiosamente, esse caráter definitivo, emocionalmente inerente a cada uma das etapas, fez com que hoje existam adeptos da catarse, que aparentemente nunca ouviram falar da interpretação de sonhos, seguidores de FREUD que nada entendem de ADLER, e ADLERianos que nada querem saber do inconsciente. Cada qual está preso ao valor definitivo do seu enfoque particular.” (OCXVI § 153;154)
Isso nos faz compreender a existência das inúmeras abordagens psicológicas, umas ficam exclusivamente na dimensão reptiliana, promovendo condicionamentos e adestramento, por meio de reforços positivos ou negativos, que está na base das terapias comportamentais. Outras priorizam nosso cérebro límbico, incentivando a libertação da criança interior, o grito primal, a negação do inconsciente. Também tem aquelas que valorizam o prazer e a conquista material, outras que acreditam no poder e sucesso como realização, além de inúmeras outras que promovem catarses espetaculares em workshops de final de semana, aconselhamentos técnicos, teatros para ressignificar a família ou os demais vínculos relacionais, sem falar das instituições religiosas, onde a maioria delas perdeu seu caráter esotérico, funcionando também como um rolo compressor para fazer as pessoas irem para fora, em busca da prosperidade material, apesar de estarem se “vendendo” como entidades voltadas para a espiritualidade. Todas elas em busca de transformar a pessoa em um indivíduo normal ou ajustado, apenas um autômato e escravo financeiro, nesta sociedade tão doente.
“Consequentemente, existem dois tipos de neuróticos: uns que adoecem porque são apenas normais e outros, que estão doentes porque não conseguem tornar-se normais. […] As exigências e necessidades do homem não são iguais para todo mundo. O que para uns é salvação, para outros é prisão; O mesmo acontece com a normalidade e o ajustamento.” (OC XVI/1 § 161;162)
No processo do autoconhecimento, depois que é socializada a história de vida, começamos perceber padrões de repetição, muitas vezes transgeracionais, onde o analisando reconhece que estava, inconscientemente, tentando reparar a vida não vivida ou mal vivida de seus antepassados. Além disso, temos a dinâmica psíquica da nossa mãe biológica, da concepção até nascimento, e de quem exerceu nossa maternagem, até os três anos de idade, com seus dramas e traumas, registrados, de forma indelével, em nosso inconsciente pessoal. Essas marcas são profundas e, se não forem trabalhadas, irão interferir por toda a vida. E como tanto a mãe quanto nós estamos imersos no inconsciente coletivo, com seu espírito da época e toda história de expressão da vida senciente, fica ainda mais difícil empreender mudanças e romper padrões, como o do patriarcado patrimonialista, hierárquico e excludente, que nos domina há mais de 6 mil anos.
No momento atual, em mais uma tentativa de anunciar a revolução aquariana, estão muito evidentes as temáticas de respeito e inclusão da mulher e a conscientização da masculinidade tóxica, apontando para que, num futuro próximo, possamos adentrar no dinamismo da alteridade, que irá superar a primazia patriarcal, que continua manter o machismo na forma mais grotesca, praticado, reproduzido e ensinado, subliminarmente, pela maioria da sociedade, retroalimentando o padrão eurocêntrico e hierarquizante (WASPR – Branco, Anglo-Saxão, Protestante e Rico), competitivo, territorialista e excludente, mantendo o sectarismo, a discriminação e a desigualdade. Porque o machismo está arraigado no inconsciente coletivo e pessoal, independentemente do gênero, e negar isso irá produzir mais resistência para a mudança.
Em uma aula comentei do machismo das mulheres, e uma aluna ficou muito incomodada com minha fala de que as mulheres são tão machistas quanto os homens, por ser este o padrão normótico e inconsciente dominante, como já foi comentado. Essa reação nos faz, mais uma vez, ressaltar que não podemos literalizar e unilateralizar os conteúdos, porque nossa meta é a simbolização, para não caímos na diabolização, que produz divisão, retroalimentando e, consequentemente, o próprio machismo. Conhecimento e cultura são diferentes, assim como razão e racionalização, e é devido a nossa cultura, ainda machista, que fez muitas mulheres, nas eleições dos USA, vestiram camisetas com os dizeres: “Trump can grab my pussy”, por aceitarem ser cultural, e até “normal”, um homem poderoso querer e poder tocar a genitália feminina que ele bem desejar. Da mesma forma, sua santidade Dalai Lama, quando foi questionado se ele poderia reencarnar como mulher, fez careta e disse que ela teria que ser mais atraente, deixando evidente sua contaminação machista, reforçando subliminarmente, mesmo sem intenção consciente, a manutenção da mulher como objeto de uso e abuso, incentivando-a a consumir moda e cosmética, para ficar cada vez mais bela e atraente, e continuar sendo consumida pelo capitalismo machista, de todas as formas e isso também se aplica aos preconceitos raciais, onde num passado recente, na África do Sul, existia a Leia da imoralidade que punia a união entre brancos e negros. Deixando evidente que moral e ética são dimensões diferentes, fazendo-nos compreender que a alma é ética, apesar de imoral!
Apesar de estar sendo repetitivo, ressalto que pior forma de masculinidade tóxica é aquela que, apesar do sujeito abusar da persona do bom moço, sensível, poético e profundo, sua sombra opressiva, obviamente negada e projetada, continua fazendo-o rejeitar qualquer tipo de expressão da superioridade feminina, tratando as mulheres apenas como objetos de uso e abuso, muitas vezes porque ficou preso na fantasia de ter tido uma mãe devoradora, abandónica ou abusiva. Lamentavelmente, muitas mulheres, dominadas pelos aspectos sombrios do animus, estruturado a partir do animus materno, reproduzem esse padrão, sentindo-se atraídas por essa forma de machismo “enrustida”, assim como continuam educando seus filhos, meninos ou meninas, nesta mesma dinâmica, reforçando aquilo que existe de mais grotesco e primitivo do patriarcado, muito presente nos textos sagrados, antes da vinda do Nazareno, apesar de que, com a institucionalização do cristianismo, o patriarcado machista e tóxico continuaram presentes. Neste sentido, somente o autoconhecimento, a crítica reflexiva, o reconhecimento da sombra, dos complexos, do quanto somos influenciados pelo inconsciente coletivo, visando a prática da alteridade, que nos libertará desta opressão geradora de exclusão e desigualdades.
Para evoluirmos, precisamos, inicialmente, reconhecer que o que nos incomoda nos outros está em nós mesmos. Isso é o que chamamos de irmos ao encontro da sombra. A alquimia nos ensina que somente após a descida ao mundo das trevas, ao nigredo, é que poderemos começar a encontrar a verdadeira luz, a que vem de dentro. Após o reconhecimento e discriminação destes conteúdos sombrios, em nós, é que empreenderemos o trabalho de nos diferenciar deles, para depois nos separar e, por fim, após superar o trauma da separação, e seguir adiante no processo de individuação, reintegrá-lo novamente, para podermos compreender, empaticamente, o outro e nossa jornada evolutiva, porque todo passado, seja ele qual for, é um degrau que sustenta os demais degraus da nossa escada espiral evolutiva, que agora precisa abrir mão de qualquer forma de poder e opressão, para que o amor incondicional anuncie a nova era da equidade!
22 de setembro de 2019
Paz e Bem, graças ao reconhecimento e aceitação consciente da Guerra e do Mal que habitam em nós!
WALDEMAR MAGALDI FILHO. Psicólogo, especialista em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Homeopatia. Mestre e doutor em Ciências da Religião. Autor do livro: “Dinheiro, Saúde e Sagrado”, Ed. Eleva Cultural, coordenador dos cursos de especialização em Psicologia Junguiana, Psicossomática, Arteterapia e Expressões Criativas do IJEP – Instituto junguiano de Ensino e Pesquisa, oferecidos em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.
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