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A Vida Conjugal (Casamento) e o Autoconhecimento

Casamento e Psicologia

Historicamente, o casamento é um arranjo cultural, visto como possibilidade de manutenção dos relacionamentos entre grupos sociais, associado ao cristianismo, que passou por diferentes adaptações no decorrer dos anos. Hoje ainda é movido por romantismo e algumas crenças nos induzem a pensar que sempre teremos alguém ao nosso lado. Em termos gerais, a visão conjugal do casamento é que ele envolve a união de dois seres por toda a vida, pelos atos de amor e pelos filhos que esse amor traz. Inicialmente, todos os melhores sonhos são projetados nele e os envolvidos têm como propósito uma vida em conjunto. Mas C. G. Jung nos alertou: “Como relacionamento psíquico o matrimônio é algo complicado, sendo constituído por uma série de dados subjetivos e objetivos que em parte são de natureza muito heterogênea” JUNG, O/C 17, par. 324). E complementou: “Não existe nenhum relacionamento psíquico entre dois seres humanos, se ambos se encontrarem em estado inconsciente” (JUNG, O/C 17, par. 325). Também não existem receitas prontas que resolvam questões relacionadas ao conteúdo psíquico que envolve a vida conjugal. Para tanto, o caminho mais assertivo é promover o autoconhecimento de cada cônjuge, que possibilita tornar conscientes os conteúdos inconscientes, favorecendo assim o encontro de indivíduos para viverem o enlace matrimonial.  

Segundo diferentes estudos, existem muitos rituais e vários simbolismos para celebrarmos a cerimônia do casamento, com troca de votos e alianças: para os amantes da natureza a melhor opção é a Cerimônia das Areias. O Ritual da Árvore, simboliza o cultivo do amor, da prosperidade e da fertilidade. Já a Cerimônia dos Balões, envolve mensagens em balões que são soltos e sobem aos céus com as intenções para o casal. O rito da Caixa de Vinho é interessante, pois representa uma melhor qualidade do casamento com o passar do tempo.  A Cerimônia Judaica da Quebra de Taças, envolve o equilíbrio entre os momentos felizes e tristes que serão enfrentados pelo casal. Na cultura japonesa, a Cerimônia do Darumá-san incentiva a disciplina, a coragem, a dedicação e a paciência. Na tradição oriental, San-san-kudo (três-nove), o número três significa boa sorte e o número nove simboliza a aspiração à máxima boa sorte. Também existe o Ritual da Lavagem dos Pés, enfatizando respeito, humildade, carinho, serviço e amor ao próximo. Por fim, o Rito das Velas, que representa a união de duas famílias e a criação de uma nova. 

Mesmo com as diferentes possibilidades de cerimônias, ainda predomina o tradicional casamento na igreja e ele começa com a famosa Marcha Nupcial (Felix Mendelssohn) ou mesmo a Ave Maria (Franz Schubert), desperta emoções no casal e nos convidados, refletindo um mundo de promessas e de felicidade. A cerimônia idealizada por muitos envolve grandes investimentos, principalmente de tempo e de dinheiro. O processo criativo toma conta da concretização do evento, com diferentes formas de expressões artísticas: registro fotográfico, vídeomúsicas, decoração, convites, transporte, costura do vestido de noiva, noivo, dama de honra, pajem, testemunhas/ padrinhos, preparo de alimentos para a recepção dos convidados, viagem da lua de mel e outros mais.

Vindo ao encontro, podemos perceber que até hoje recebemos influências de muitas gerações e também dos escritos da Bíblia Sagrada, que trazem a ideia de que Deus criou a mulher para ser a companheira do homem: “Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele (Gênesis 2:18). É transmitido pela igreja que o propósito de Deus para o casamento é gerar filhos. Da mesma forma, que o casamento deve durar para sempre, até que a morte separe o casal. E quantas mortes em vida ocorrem na vida conjugal? Morte da confiança, do respeito, do companheirismo, contrapondo as promessas matrimoniais: “Prometo ser fiel na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, amando-lhe e respeitando-lhe por todos os dias da minha vida.” Não é algo fácil de se cumprir, principalmente no mundo imediatista e descartável em que vivemos! Martha Medeiros, com a crônica Promessas Matrimoniais, traz valiosas reflexões, que são diferentes das promessas tradicionais: “Promete fazer da passagem dos anos uma via de amadurecimento e não uma via de cobranças por sonhos idealizados que não chegaram a se concretizar? […] Promete que fará sexo sem pudores, que fará filhos por amor e por vontade, e não porque é o que esperam de você, e que os educará para serem independentes e bem informados sobre a realidade que os aguarda? […] Promete que a palavra liberdade seguirá tendo a mesma importância que sempre teve na sua vida, que você saberá responsabilizar-se por si mesmo sem ficar escravizado pelo outro e que saberá lidar com sua própria solidão, que casamento algum elimina?”

Legalmente, para se efetivar um casamento, não basta a cerimônia religiosa. Segundo determinação do código civil, o casamento é a união entre duas pessoas, que estabelecem comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres. É realizado em Cartório de Registro Civil, por um juiz de paz, na presença de testemunhas. Tanto no casamento religioso, como no civil, é necessário um representante para oficializar a união. Isso nos remete à Himeneu, a divindade que preside casamentos. Na mitologia, a deusa Hera rege casamentos, porém Himeneu, filho de Apolo com Afrodite, é o deus grego do casamento. Segundo a revista A Mente é Maravilhosa, o mito de Himeneu apresenta um ato de bravura, reconhecido por todos. Ele foi capturado por piratas junto com um grupo de mulheres, que não perceberam que ele era um homem. Foram colocados em cativeiro num navio e Himeneu acalma as mulheres apavoradas e elas confiam na sua habilidade. Ao anoitecer, ele percebeu que os piratas haviam bebido demais, então escapa e aniquila todos os sequestradores, liberta as mulheres e as leva para suas famílias. A partir disso, ele passou a presidir muitos dos casamentos como eterno agradecimento pelo seu ato de bravura e sugeriu-se que havia uma conexão entre esta divindade e o hímen, até pouco tempo muito valorizado no ato do casamento por diferentes culturas com padrões machistas, pregando a dominação do gênero masculino sobre o feminino.  

Muitos filmes traduzem luzes e sombras sobre casamento. Entre tantos que apresentam essa temática, podemos citar: O Casamento dos Meus Sonhos, que envolve um evento romântico inesquecível. Cinco Anos de Noivado, apresenta noivado longo, com cerimônia diurna. A despedida de solteiro comparece em Noivas em Guerra e Casamento Grego ocorre em cerimônia gigantesca.  Mamma Mia, por sua vez, inspira noivos praianos. E para descontrair e rir muito, Missão Madrinha de CasamentoA crença que o amor envolve duas metades que se unem e se completam é um dos padrões enraizados e fonte de muitas inquietações e sofrimentos. Neste sentido, Jung nos deixou reflexões: “Para tornar-se consciente de mim mesmo, devo poder distinguir-me dos outros. Apenas onde existe essa distinção, pode aparecer um relacionamento” (JUNG, O/C 17, par. 326). Da mesma forma, orientou-nos sobre a importância de trazer conteúdos inconscientes para a luz da consciência: “Quanto maior for a extensão da inconsciência, tanto menor se tratará de uma escolha livre no casamento; de modo subjetivo isto se faz notar pela coação do destino, claramente perceptível em toda a pessoa apaixonada” (JUNG, O/C 17, par. 327). No começo do relacionamento projetamos e vivemos muitos sonhos, mas mesmo assim adaptar-se ao mundo do outro é algo desafiador. Guiados pela liberdade da escolha ou pelo destino, sempre temos tempo de ressignificarmos velhos padrões.

Ainda se preserva o romantismo nos relacionamentos e as músicas revelam esse aspecto, como Velha Infância, canção de Tribalistas, traduzindo uma grande paixão que envolve a fase inicial do casamento: “Seus olhos, meu clarão, me guiam dentro da escuridão, seus pés me abrem o caminho, eu sigo e nunca me sinto só”. Da mesma forma, Roberto Carlos expressa pela voz o simbolismo do amor: “Eu tenho tanto pra lhe falar, mas com palavras não sei dizer, como é grande o meu amor por você”. Grandes nomes eternizam a música Eu Sei Que Vou Te Amar, enaltecendo o amor e projetando nele uma vida inteira: “Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar (…) Eu sei que vou sofrer, a eterna desventura de viver, à espera de viver ao lado teu, por toda a minha vida. E Roupa Nova, com Linda Demais, exalta as expectativas no outro: Vem fazer diferente, o que mais ninguém faz. Faz parte de mim, me inventa outra vez. Vem conquistar meu mundo, dividir o que é seu. Mil beijos de amor em muitos lençóis, só eu e você. O tempo passa, a paixão inicial também e a vida se encarrega de mostrar outros aspectos do relacionamento.

Nem sempre as adaptações ao casamento ocorrem como o esperado e os problemas comparecem. Jung já dizia: “O não-querer-ver e a projeção dos próprios erros estão no início da maioria das brigas e são a mais forte garantia de que a injustiça, a hostilidade e a perseguição não morrerão tão cedo. Ao nos mantermos inconscientes sobre nós mesmos, também não vemos nossos próprios conflitos” (JUNG, Sobre o amor, p.55). Simbolicamente complementou: “Percebemos o cisco no olho do outro e não vemos a viga de madeira em nosso próprio olho” (JUNG, O/C 18/2, par.1803s). Provérbios e ditados populares também apresentam essas questões sobre casamento, muitas vezes de forma divertida, ao mesmo tempo expressando projeções e frustrações: “O casamento é uma fortaleza sitiada; os que estão de fora querem entrar à viva força e os que estão dentro gostariam bastante de sair dela”; “Casamento de imposição é de curta duração”; “Casamento é loteria”; “O amor faz passar o tempo, e o tempo faz passar o amor”. “Em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Será? É preocupante o número crescente de violência que ocorre na convivência conjugal, muitas vezes expressada por agressão física, abuso sexual, controle, humilhação, intimidação, coerção ou manipulação, envolvendo violência psicológica, patrimonial e moral, resultando até em mortes, vitimizando muito mais as mulheres, conforme nos mostram as estatísticas e afetando a vida psíquica dos filhos. 

Segundo Jung, depois de algum tempo, geralmente após anos de convívio, o relacionamento se transforma e as crises comparecem: “A paixão muda de aspecto e passa a ser dever, o querer transformar-se inexoravelmente em obrigação; as voltas da caminhada, que antes estavam cheias de surpresas e descobertas, agora nada mais são do que rotina. O vinho acabou de fermentar e começa a clarear. Desenvolvem-se tendências conservadoras, se tudo está em ordem. Em vez de se olhar para frente, muitas vezes, sem querer, se olha agora para o passado; principia-se a prestar contas sobre a maneira pela qual a vida se desenvolveu até o momento” (JUNG, O/C 17, par.331a). Outro aspecto importante que precisamos ressignificar é que, com o casamento não passamos a ser uma unidade, que pensa, sente e age da mesma forma. A relação se fortalece quando respeitamos as diferenças. As insatisfações comparecem quando vemos no outro todos os aspectos que não vemos em nós e não sabemos lidar com eles. O relacionamento conjugal requer que estejamos cada vez mais conscientes das nossas luzes e sombras, como orientou Jung: “Raras vezes, ou até mesmo nunca, um matrimônio se desenvolve tranquilo e sem crises, até atingir o relacionamento individual. Não é possível tornar-se consciente sem passar por sofrimentos” (JUNG, O/C 17, par. 331). E quando os cônjuges estão conscientes, analogicamente iluminam um ao outro, possibilitando transformações e integrações de conteúdos psíquicos. 

Somos únicos, integrais e ao mesmo tempo sedentos de amor e de reconhecimento. E o casamento também envolve o amor e reconhecimento! Tamanha é a sua importância que o simbolismo do amor comparece em diferentes expressões escritas, como a de Fernando Pessoa, no poema O Amor: “O amor, quando se revela, não se sabe revelar. Sabe bem olhar p’ra ela, mas não lhe sabe falar. Quem quer dizer o que sente, não sabe o que há de dizer”. Igualmente, O Poeminha Amoroso, de Cora Coralina, traduz o amor: “Este é um poema de amor, tão meigo, tão terno, tão teu… É uma oferenda aos teus momentos de luta e de brisa e de céu…E eu, quero te servir a poesia, numa concha azul do mar ou numa cesta de flores do campo”. Do mesmo modo, As Sem-Razões do Amor, de Carlos Drummond de Andrade, expressam um estado de graça: “Eu te amo porque te amo. Amor é estado de graça e com amor não se paga”. E ainda, em Amar é Mudar a Alma de Casa, Mário Quintana enfatiza a confiança, tão necessária para viver o amor: “Amar, é aquilo que embasa, é ter comprometimento. Amar é voar sem asa, e porque amar é acolhimento, amar é mudar a alma de casa”.

O casamento envolve um exercício contínuo de confiança. De acordo com Waldemar Magaldi Filho, no seu artigo Casamento e Psicologia Junguiana: “[…] Confiança depende de um constante fiar com o outro, tecendo juntos a trama da vida, que é feita pelos fios da alegria, da tristeza, do prazer, da dor, do medo e da fé, fazendo laços e nós harmoniosos e desfazendo os patológicos”. Projetamos no nosso cônjuge alguns dos nossos aspectos sombrios, que muitas vezes são as causas das desavenças. Ao mesmo tempo, em função das influências externas, usamos máscaras – denominadas personas – para nos apresentarmos de forma mais favorável, porém muitas vezes envolvidas por medo das dificuldades e medo de nos entregarmos ao amor. O medo da intimidade e a perda da privacidade são fatores que assustam os indivíduos, dificultando a verdadeira entrega ao relacionamento. De forma similar, a falta de uma comunicação mais assertiva é causa de muitos embates. Somos tomados por inúmeras atividades, vivemos apressados e não temos mais tempo para estabelecermos um diálogo saudável. 

Apesar dos padrões tradicionais, historicamente os relacionamentos conjugais mudaram de roupagem e novas formas de vivermos o amor comparecem. Nas esferas políticas o casamento homoafetivo já é amplamente discutido e a pluralidade deve ser contemplada e respeitada. Independente das escolhas, somos livres para optarmos pela vida conjugal, que envolve alegrias e desafios, principalmente no aprendizado e no exercício da paciência, do respeito, da compreensão e do amor. E quando a convivência se tornar inviável e todas as possibilidades de viver em harmonia conjugal forem esgotadas, a melhor saída é a separação. Não é saudável arrastar pela vida inteira uma escolha que não foi bem sucedida.

Para amar precisamos nos desarmar da possessividade, da desconfiança, dos preconceitos, do egoísmo e outros aspectos sombrios que dificultam os relacionamentos. Para tanto, o autoconhecimento é fundamental, pois possibilita tornarmos conscientes os conteúdos inconscientes que nos atravessam. A partir do momento que somos mais conscientes das nossas luzes e sombras e ressignificarmos os aspectos doentios, convivermos com o outro se torna mais fácil.  Precisamos entender que nos unirmos ao outro não significa abrirmos mão do que somos. Como disse Jung: “Mesmo o melhor casamento não é capaz de apagar as diferenças individuais e tornar os estados dos esposos absolutamente idênticos” (JUNG, O/C 17, par. 331b). Assim, estaremos mais preparados para vivermos a união conjugal, que enlaça a integração de opostos, favorecendo o encontro de indivíduos conscientes que se abraçam e se entrelaçam na vivência do amor, ingrediente indispensável na vida conjugal.

Claci Maria Strieder – Membro Analista em Formação

Waldemar Magaldi Filho – Analista Didata

Fontes de Referência:

ANDRADE, C. D. As sem-razões do amor. Poema publicado na obra Corpo, 1984.

BÍBLIA Sagrada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.

BRAGA, Roberto Carlos. Como é grande o meu amor por você. Álbum Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. CBS,1967.

CORALINA, C. O Poeminha amoroso. 

JUNG, C. G. Civilização em transição. Petrópolis. Vozes: 2013.

__________ O desenvolvimento da personalidade. Petrópolis. Vozes: 2013.

__________ Sobre o amor [tradução de Inês A. Lohbauer]. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2005.

MAGALDI FILHO, Waldemar.: Artigo Casamento e Psicologia Junguiana

MEDEIROS, Martha. Crônica promessas matrimoniais, 2003.   https://www.pensador.com/frase/MjA4Nzg/.

MORAES, V. de & JOBIM, A. C. Eu sei que vou te amar, 1958.

QUINTANA, M. Amar é mudar a alma de casa. 

PESSOA, F. Presságio. 1928.

REVISTA – A mente é maravilhosa. Mito de Himeneu. https://amenteemaravilhosa.com.br/o-mito-de-himeneu/

ROUPA NOVA. Linda demais. RCA, 1985.

TRIBALISTAS. Velha Infância. Rio de Janeiro. Phonomotor Records

EMI, 2002.

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