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Adeus ano velho, feliz ano novo

Adeus ano velho, feliz ano novo Psicologia Analítica

A virada de ano costuma se aproximar recheada de expectativas, anseios por mudanças e transformações. É tempo de fazer o balanço do ano que se passou e traçar planos e metas, com sonhos e esperanças em relação ao próximo período.

Os últimos dois anos foram tempos difíceis para toda a humanidade, com a pandemia da Covid-19. Quantas perdas vivenciadas! Luto pelo falecimento de pessoas conhecidas, familiares ou amigos, e mesmo num senso coletivo diante do número tão gigantesco de mortos. Alguns perderam também a saúde e ainda estão enfrentando sequelas dessa doença ou de outras cujo tratamento foi abandonado. Sofremos perdas financeiras, alguns de emprego, e várias famílias ficaram mesmo sem moradia no Brasil.

Tudo isso veio no contexto econômico de inflação galopante e altas taxas de desemprego, em um cenário político com vários escândalos, opções que podem ser consideradas genocidas porque decorreram em milhares de mortos evitáveis. O povo olha para as investigações em diversos âmbitos ora com certa esperança, ora com o costumeiro descrédito de não darem em nada.

Neste contexto e apesar dele, o espírito da virada ainda vem forte, levando-nos a fazer um balanço do que foi vivido no ano que termina e a olhar o devir com expectativas. Mesmo sendo necessário adaptar planos de festas e viagens, os desejos para 2022 surgem espontaneamente na imaginação.

E é sobre o espírito de “Adeus ano velho, feliz ano novo” que este artigo vai discorrer, à luz de elementos que a Psicologia Analítica de Carl Gustav Jung nos oferece e que nos ajudam na reflexão.

Adeus ano velho

Velho e novo formam um par de opostos, sendo, assim, ligados, como dois polos de um mesmo traçado — a visão junguiana sempre olha para as oposições que compõem a totalidade psíquica. O velho comporta sementes do novo, e o novo traz as marcas do velho.

Dizer “adeus ano velho”, portanto, não é simplesmente virar a página, como se apagasse a bagagem que se traz, as trilhas percorridas. Por outro lado, não é porque o ano virou no calendário que nós nos tornamos diferentes, encerramos processos, completamos ciclos, mudamos. Há uma disposição e um caminho para que as transformações aconteçam, que começam por soltar os apegos ao anterior.

Esse movimento insinua a passagem do tempo, expressa na palavra “ano”. O balanço recai exatamente sobre o que foi vivido, como se aproveitou ou não o tempo que já não voltará. Às vezes gostaríamos de parar esse tempo, mas perdemos mais tempo nessa resistência, tentando reter alguns momentos e indo contra o fluxo natural da vida.

A vida natural é o solo em que se nutre a alma. Quem não consegue acompanhar essa vida, permanece enrijecido e parado em pleno ar. É por isso que muitas pessoas se petrificam na idade madura, olham para trás e se agarram ao passado, com um medo secreto da morte no coração. […] A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. (JUNG, 2018a, §800)

Gastamos tempo nos agarrando ao já vivido, a momentos e pessoas que se foram, com isso perdendo o aqui agora, o momento presente, que se tornará nova perda, atrás da qual passaremos a correr, buscando viver o que não foi vivido. Essa resistência ocorre sobretudo com a passagem do tempo e as mortes que ela supõe. Talvez no balanço do ano possamos nos dar conta desse movimento e fazer as pazes com a vida, com o seu fluxo, para viver mais e melhor o que nos cabe viver, o presente.

Para isso, porém, é preciso reconhecer um outro apego, ligado ao anterior, com relação à imagem social e aos papéis dela decorrentes. Jung chama a isso de personas, que têm a função exatamente de adaptação aos diversos ambientes sociais em que vivemos e não representam a essência do que somos, de nossa individualidade, apesar de sua escolha poder trazer algo de essencial. A palavra persona remete às máscaras usadas pelos atores do teatro antigo. “Como seu nome revela, ela é uma simples máscara da psique coletiva, máscara que aparenta uma individualidade, […] quando, na realidade, não passa de um papel”. (JUNG, 2018b, §245)

O romance “O cavaleiro que ficou preso na armadura” mostra exatamente quando um desses papéis se cola em nós — geralmente um mesmo, de forma unilateral, como a pessoa que é sempre a mãezona, sempre a ajudadora, sempre o chefe —, nos desconectando totalmente do profundo de nós mesmos, nos fazendo viver uma ilusão que incapacita também para relações autênticas com os demais. O cavaleiro “pensava ser bondoso, gentil e amoroso” (FISHER, 2001, p. 3) e esforçou-se tanto “para ser o cavaleiro número um de todo o reino”, que acabou se apaixonando por sua armadura — e fechar-se nela ainda por cima era um bom subterfúgio para escapar das conversas que não queria ter com a esposa ou os lamentos que não queria ouvir do filho — e passando a não retirá-la em momento algum. Quando tentou fazer, já não conseguia, e precisou de um longo e duro caminho de redescoberta dos próprios sentimentos e medos, de contato com aspectos dos quais não gostava tanto e que havia escondido atrás da armadura, perdendo a consciência de sua existência e, com isso, desconectando-se da própria verdade. Não foi fácil ao cavaleiro reconhecer o quanto se perdeu no processo, e menos ainda o quanto feriu os demais achando fazer o melhor para eles — “Não consigo enxergar muito bem com essa viseira na minha frente. […] É por isso que você tem de ficar pedindo desculpas às pessoas depois de machucá-las.” (FISHER, 2001, p. 16). O caminho percorrido para se libertar da armadura passou por aprender a receber ajuda; a reconhecer e aceitar os limites; a perceber nuances de um outro lado que fazem parte de si e não são tão boas, generosas e amorosas como o único que ele via; perceber as barreiras de proteção levantadas em torno de si; assumir e encarar os próprios medos; ouvir o silêncio, nele encontrando o “eu verdadeiro” e, a partir daí, descobrir realmente as pessoas, com suas verdades e sentimentos, e a realidade à sua volta.

Claro que esta é a trajetória de toda uma vida ou de boa parte dela, e não apenas de um balanço de final de ano. Jung chama de processo de individuação o caminho de tornar-se quem se é, no qual se encontra a própria individualidade, o arranjo único dos elementos universais que constituem o ser humano (cf. 2018b, §267). Cada balanço, porém, é uma oportunidade de ampliar a consciência, e ver em que aspectos e valores estamos nos prendendo de forma unilateral, talvez porque foram conquistados a duras penas. Perceber que não nos constituem, que fizeram parte em um momento, tiveram sua função, reconhecer sua passagem nos faz ao mesmo tempo ver-nos pequenos e grandes, limitados e ligados a um essencial maior que nós.

É quando me torno consciente disso que me sinto ao mesmo tempo limitado e eterno. Tomando consciência do que minha combinação pessoal comporta de unicidade, isto é, de limitação, abre-se para mim a possibilidade de conscientizar também o infinito. (JUNG, 2016, p. 388)

E aqui cabe a entrega de todo o vivido e de nosso hoje, de quem somos e como estamos agora, ao que é maior que nós, ao Self, a imagem de Deus em nós. Dizer “adeus ano velho” é, recolhendo tudo, entregá-lo “a-Deus”, ao maior que nos transcende, e entregar-se com confiança ao processo de transformação. Esta é a questão fundamental, critério da vida, segundo Jung: “Você se refere ou não ao infinito?” (2016, p. 387). Só nos referindo podemos fazer a virada para o novo que quer vir, pois somente aí não nos prendemos “a futilidades e a coisas que não são fundamentais”, e abrimos de fato a possibilidade para uma virada de ano, de vida.

Quanto mais o homem acentua uma falsa posse, menos pode sentir o essencial e tanto mais insatisfatória lhe parecerá a vida. […] Se compreendermos e sentirmos que já nesta vida estamos relacionados com o infinito, os desejos e atitudes se modificam. Finalmente, só valemos pelo essencial e se não acedemos a ele a vida foi desperdiçada. Em nossas relações com os outros é também decisivo saber se o infinito se exprime ou não. (JUNG, 2016, p. 388)

Feliz ano novo

O processo anterior, de balanço e desapego, confiança e soltura, abre a possibilidade para a abertura ao novo do qual, por ser novidade, sequer podemos falar muito. É um ano novo, um novo tempo, uma nova etapa, na qual entramos com um desejo: que seja feliz!

Na Psicologia Analítica, em que sentido nos seria dado falar desse “feliz”? Curioso que nos Índices Gerais das Obras Completas de Jung, no qual estão os principais termos usados em sua obra, esse adjetivo não aparece, e há apenas uma ocorrência para o substantivo “felicidade”, no sentido de glória eterna (cf. 2011, p. 334), apesar de o termo estar também em “Psicoterapia e visão de mundo”, texto presente em A prática da psicoterapia. Neste, Jung diz justamente que “o objetivo mais nobre da psicoterapia não é colocar o paciente num estado impossível de felicidade”, mas sim contribuir para que possa suportar o sofrimento adquirindo “firmeza e paciência filosóficas” (2020, §185). Autorrealização, por sua vez, remete ao termo individuação, com mais de cem ocorrências nas Obras Completas (2011, p. 178; 396).

Já nessa matemática aparece uma sutil dica para nós, que queremos ser felizes e vivemos em uma cultura que tanto ressalta a felicidade com suas características de prazer, bem-estar, conforto, reconhecimento, status e ausência de dor e sofrimento. Aquele que tanto conheceu o profundo do humano aponta para o processo de individuação como plenitude de vida, caminho que responde aos anseios humanos mais profundos, ao chamado da alma. Não é um caminho fácil ou que busca apenas prazer e autossatisfação, mas de abertura, ampliação de consciência, integração de aspectos que não costumamos querer ver de nós mesmos.

Poder-se-ia perguntar aqui por que é tão desejável que um homem se individue. Eu acrescentaria que não só é desejável como também é absolutamente necessário que o seja. Caso contrário, sua fusão com os outros o levaria a situações e ações que o poriam em desarmonia consigo mesmo. Dos estados de mistura inconsciente e de indiferenciação brotam compulsões e ações que se opõem àquilo que se é realmente. Dessa forma, o homem não pode sentir-se unido consigo mesmo, nem poderá aceitar uma responsabilidade. Sentir-se-á numa condição degradada, carente de liberdade e de ética. A desunião consigo mesmo é a condição neurótica por excelência, que se torna insuportável para o indivíduo e da qual ele quer livrar-se. Mas esta liberdade só ocorre quando ele se torna capaz de agir em conformidade com o ser que ele é. (JUNG, 2018b, §373)

Por que as metas que traçamos para um novo ano geralmente não passam de janeiro? Exatamente porque partimos de uma imagem ideal de nós, geralmente ainda bem ligada às máscaras e armaduras, e em direção aos valores coletivos, e não contamos com tudo o que somos — luz e trevas, bons e maus, dispostos e indispostos — nem com situações adversas que podem atravessar o caminho. A sociedade aponta para um ideal de pessoa bem-sucedida, forte, saudável, com o corpo perfeito, feliz e animada sempre, autodeterminada, e este se torna o polo de referência e atração das nossas expectativas. No primeiro dia de preguiça, sono ou cólica; no primeiro deslize (“pé na jaca”) com massas e doces; nas primeiras travas por timidez ou fraqueza; no primeiro ataque de impaciência ou agressividade; enfim, na primeira manifestação do outro lado, seja ela qual for, ficamos tristes, desanimamos, desacreditamos, ou, talvez pior, nos investimos com mais força ainda tentando “pensar positivo”, sem parar nem dar um tempo para olhar e escutar o sintoma ou manifestação desagradável e sua mensagem.

Se algo podemos dizer na linha do “feliz ano novo” é que ele vai na direção contrária dessa unilateralização, passando pela abertura a tomar consciência e assumir esses outros lados de nós. Por aí se descobre a “arte de viver”, “a mais sublime e a mais bela de todas as artes” (JUNG, 2018a, §789). Incrivelmente, portanto, só poderá ser feliz no sentido de pleno se não se buscar apenas a felicidade, mas caminhar muito mais na direção da autorrealização, o abraço da totalidade — meta, nunca ponto de chegada —, que pouco tem de gostoso, pois leva muitas vezes a se sentir não só como que “chafurdando na lama”, mas a própria lama. Nela se aproxima da singularidade e unicidade do que se é. Todos somos pequenos e frágeis, mas o arranjo dessas pequenezes e fragilidades costuradas pelos dons formam o que eu sou, a minha vulnerabilidade, a minha nota. Nota que me une a outras numa sinfonia, na comunhão só possível aos despojados de suas nobres armaduras, ligados entre si pelos laços de verdade a partir do singular, na tecitura de um infinito maior que cada elemento e conectando-os ao todo.

O espírito da virada costuma nos fazer desejar uma vida melhor não só para nós, mas para todos, e um mundo melhor. Na trilha acima fica a dica, já deixada por Jung há cinquenta anos: “não há possibilidade de cura ou de melhoria do mundo que não comece pelo próprio indivíduo.” (2018b, §373) Você está disposto a esse novo começo? Feliz ano novo!

Tania Pulier — analista em formação/IJEP

Lilian Wurzba — analista didata/IJEP

Referências:

FISHER, Robert. O cavaleiro preso na armadura: uma fábula para quem busca a Trilha da Verdade. Rio de Janeiro: Nova Era, 2001.

JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2018a.

___. A prática da psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2020.

­­­___. Índices gerais: onomástico e analítico. Petrópolis: Vozes, 2011.

___. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.

___. O eu e o inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2018b.

Tania Pulier – 10/12/2021

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