Desde a pré-História o ser humano enterra seus mortos, sendo os sepultamentos e rituais fúnebres os primeiros sinais de vivência com o sobrenatural, pelos símbolos. Todos os povos e religiões desenvolveram seus ritos, tanto para o momento da morte como para a recordação dos falecidos. Os cristãos rezam pelos mortos desde o surgimento da religião e, na Idade Média, a data de 2 de novembro espalhou-se primeiro pela Europa e depois pelo mundo como Dia de Finados.
No México, a festividade do Día de Muertos é uma tradição indígena, pré-hispânica, cujos elementos se mesclaram à religião católica para chegar à forma vivenciada atualmente, que se tornou em 2003 Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, reconhecido pela Unesco. A festa em honra aos falecidos começa no final de outubro de cada ano e tem como dias principais 1º e 2 de novembro, repleta de simbolismos em torno da antiga crença indígena de que nestes dias era permitido às almas dos mortos voltar ao mundo dos vivos para conviver com os familiares, nutrindo-se dos alimentos por eles preparados. Faz parte de uma cosmovisão que considera a morte como parte do ciclo da vida.
Esse olhar integrador das polaridades morte e vida encontra-se em ressonância com a Psicologia Analítica que, se não afirma nem nega a sobrevivência da alma após a morte, reconhece a relatividade das categorias tempo e espaço para a psique e coloca-se à escuta dos relatos universais, mitos e símbolos religiosos que tratam da “eternidade”. Percebe-os como prenhes de sentido e inclinações da psique desde suas camadas mais profundas.
Neste artigo, a partir da vivência pessoal do Día de Muertos, apresentarei alguns elementos presentes na festividade, procurando ampliá-los em seu simbolismo com um olhar analítico, na contribuição dos textos de Carl Gustav Jung “A alma e a morte” e “Sobre a vida depois da morte”. O objetivo é perceber o que essa festa tem a nos ensinar, sobretudo neste momento em que, com a pandemia da Covid-19, a morte veio com força total sobre a humanidade que há muito tentava mantê-la fora dos olhares e lutar contra ela, negando o que faz parte da natureza humana.
A integração vida-morte-vida nos elementos do Día de Muertos
Ruas enfeitadas, altares repletos de flores, pães dos mortos, calaveritas, fotos de pessoas falecidas, canções, catrinas caminhando por toda parte, festas nos cemitérios… são tantos simbolismos que chamam a atenção para um feriado de Finados vivido de uma maneira diferente. Participei em 2018 do Día de Muertos nas cidades mexicanas de Morelia, Tzintzuntzán e Pátzcaro, do Estado de Michoacán, que conserva bastante a tradição, pouco antes do falecimento da minha mãe, ocorrido em dezembro do mesmo ano, e esta festividade marcou-me sobremaneira, tendo sido um dos pontos fortes de preparo para o luto que viria logo a seguir. Aqui não tenho a pretensão de falar de todos os elementos simbólicos do Día de Muertos, mas mostrar em alguns deles o encanto da integração da morte como parte da vida, que não tem fim com ela.
Ao caminhar pelas cidades, chama a atenção a vivacidade das cores. As ruas, praças e estabelecimentos são enfeitados com a flor de cempasúchil, desta temporada, de um amarelo vibrante que simboliza a força do sol. Segundo a crença, com elas se traça um caminho para dirigir as almas até o local da oferenda feita em sua homenagem. Também há papéis picados como adornos pendurados nas vias, coloridos mas sobretudo roxos, simbolizando o luto.
No caminho das almas é necessária a claridade, trazida pela flor solar. Jung (2018b, §220) liga o Sol ao Logos que, “à maneira da luz forte e deslumbrante do Sol”, é o princípio do “distinguir, o julgar, o reconhecer” (§§217-218). Refere-se, simbolicamente, ao surgimento da consciência (§113), sendo metáfora do Cristo para os Padres da Igreja (§118), a “Luz do mundo”, aquele que foi levantado e com ele levanta da morte, retomando aqui o caminho de vida plena e eterna desejado para as almas. O roxo do luto evidencia a ambiguidade dos sentimentos — se há luz e calor pela fé na vida, a dor, a tristeza e a saudade não deixam de pairar no ar.
Curioso que, quando Jung fala da morte de sua mãe, do sonho que tivera na noite anterior à notícia e do contraste de sentimentos que experimentou, diz: “O contraste pode explicar-se: a morte era sentida, ora do ponto de vista do eu, ora do ponto de vista da alma.” (2016, p. 375) Com relação ao primeiro, é experimentada como “uma catástrofe, […] um ser humano é arrancado da vida e o que permanece é um silêncio mortal e gelado. Não há mais esperança de estabelecer qualquer relação: todas as pontes estão cortadas.” (p. 375-376) Já do ponto de vista da alma, “a morte parece ser um acontecimento alegre. […] ela é um casamento, […] (um mistério de união). A alma, pode-se dizer, alcança a metade que lhe falta, atinge a totalidade.” (p. 376) E completa o relato dessa experiência mencionando exatamente o piquenique que se faz em diversas regiões sobre os túmulos, que podemos estender à celebração mexicana que analisamos aqui. “Essas manifestações mostram que a morte é sentida, por assim dizer, como uma festa.” (p. 376)
Antes de entrar nas celebrações nos cemitérios, continuaremos a descrever as cidades mexicanas, que se preparam dias antes para essa festa. Nas casas e nos comércios encontram-se altares para os mortos. São verdadeiros monumentos de vários andares que homenageiam a pessoa no retrato colocado sobre ele. O altar em si é uma grande celebração, pois em torno dele é que a família se reúne com o seu falecido, que vem comer, beber, descansar e conviver um pouco mais com os que ficaram neste plano. Segundo Jung, não se pensa, inventa e imagina esses símbolos. Eles nascem “de alguma camada profunda da psique” (2018a, §805) e me parece que ajudam a consciência na tarefa posta pelo inconsciente, que é colocar a sua atitude “em conformidade […] com o processo de morrer.” (§809)
O altar tradicional tem sete níveis, que significam o caminho de ascensão e purificação que a alma deve percorrer para encontrar a paz e o descanso. Por isso, embaixo muitas vezes são dispostos frutos da terra, que ainda simbolizam a divisão céu e terra, os dois planos que convivem em torno dele. Também sal para a purificação e água para matar a sede da alma que chega após a longa viagem. A oferenda é um dos elementos principais, feita de guloseimas e pratos que o finado gostava de comer e podendo contar também com algo que reflita o seu gosto, como um instrumento musical ou um brinquedo, no caso de crianças. Há muitas flores de cempasúchil e papéis picados. A cruz cristã costuma estar presente, bem como imagens de santos, já marcando o sincretismo, mas também intensificando o ar místico, oracional e sobrenatural da homenagem. As fotos dos homenageados personalizam o altar, e as calaveritas de açúcar representam os mortos a quem ele se dedica, estando neles, mas também por várias partes da cidade, para a alegria das crianças. São recordados ainda pelo pán de muerto (pão dos mortos), um pão doce com alguns círculos que representam os crânios. O incenso tem um significado de purificação e as inúmeras velas guiam o caminho da alma de volta para o seu mundo.
Jung afirma que narrar histórias ou “mitologizar” sobre a sobrevivência após a morte é importante para o ser humano. “Para o coração e a sensibilidade essa atividade é vital e salutar: confere à existência um brilho ao qual não se quereria renunciar.” (JUNG, 2016, p. 359) Não há como provar a veracidade ou a inveracidade da existência de vida fora das categorias do tempo e do espaço e, apesar de nos ser difícil imaginá-la, sua possibilidade “constitui um ponto de interrogação que deve ser levado a sério” (JUNG, 2018a, §814), uma vez que está de acordo com as necessidades do coração, a sabedoria imemorial da humanidade e as experiências das obscuridades da psique e dos mistérios da alma (Cf. idem, §815).
Esses mistérios que aparecem de forma profunda e simples, encarnados nos altares, mostram-se ainda mais na noite especial, que é a virada do dia 1º para o dia 2 de novembro, quando também são feitas verdadeiras festas nos cemitérios. As pessoas adornam os túmulos dos familiares, que ficam totalmente revestidos com as famosas flores amarelas já presentes por toda a parte. Colocam muitas velas e geralmente levam os pratos preferidos dos falecidos, algumas chegando a fazer churrasco ao lado das sepulturas. Levam instrumentos musicais, cantam as músicas preferidas do familiar morto, fazem orações, passando a noite toda ali. O clima é de festa e homenagem, e não de lágrimas e choro, como se de fato lhes tivesse sido concedida a chance de conviver com o ente querido naquela data. É indescritível participar de uma celebração em que a morte se torna presença e não ausência!
Esse significado aparece também nas catrinas que caminham por toda parte e às quais são dedicados concursos ou desfiles. La Catrina é a maquiagem de uma alta dama da sociedade em forma de caveira, com vestido longo e chapéu elegantes, significando o caráter passageiro do luxo e status deste mundo diante da eternidade do espírito. Ela marca o aspecto finito e transitório da vida material, que deve ser disfrutada com sabedoria. É o que dizem as músicas cantadas em vários locais, sobretudo nos desfiles.
Se a consciência da finitude da vida humana é lição evocada por La Catrina e por cada elemento do Día de Muertos, esse limite não é absoluto, e na esperança da imortalidade da alma baseiam-se as festividades que celebram uma forma de presença dos entes queridos falecidos e a dádiva naqueles dias de conviver com eles pelas homenagens. Para Jung, se “compreendermos e sentirmos que já nesta vida estamos relacionados com o infinito, os desejos e atitudes se modificam. Finalmente, só valemos pelo essencial e se não acedemos a ele a vida foi desperdiçada.” (2016, p. 388)
Alguns estão tão agarrados na presença como materialidade que, diante da morte que vem inexoravelmente, por mais que se lute contra ela, ficam presos na ausência, como um luto que não se completa, um buraco do qual não se sai. A morte torna-se muro intransponível que bloqueou e ceifou a vida. Não conseguem fazer a experiência de um outro tipo de presença, que supõe a aceitação e o atravessamento da morte. E é o dia a dia que prepara essa vivência, à medida em que se acolhe as pequenas mortes cotidianas — o fracasso, as perdas, os limites, a fraqueza e vulnerabilidade — e se assume o ciclo natural da vida, feito de luz e sombra, subida e descida, vida e morte.
A pandemia da Covid-19 trouxe a morte para perto da vida de todos nós, não apenas dos idosos ou enfermos. Fomos obrigados a olhar para ela, e os mitos nos trazem “imagens auxiliares e enriquecedoras da vida no país dos mortos” em lugar do “fosso escuro” (JUNG, 2016, p. 365-366) que a pura razão nos dá. Eles podem contribuir muito, sobretudo agora em que a dificuldade de vivenciar como se desejaria os ritos fúnebres pode trazer consequências ainda não imaginadas a esta geração.
Não dá para apontar quem tem mais crédito ou veracidade, mas mais sentido e significado, sim. “Aquele que nega avança para o nada; o outro, o que obedece ao arquétipo, segue os traços da vida até a morte.” (JUNG 2016, p. 366) É o que fica claro no Día de Muertos, com as lições em cores e sabores que ele nos oferece. E esses aprendizados talvez possam inspirar quem não conseguiu velar seus mortos como queria devido à pandemia, mas poderiam viver com maior intensidade datas celebrativas como Finados ou o aniversário de morte.
Tania Pulier — analista em formação/IJEP
Lilian Wurzba — analista didata/IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. A alma e a morte. In: ___. A natureza da psique. Petrópolis: Vozes, 2018a.
___. Sobre a vida depois da morte. In: ___. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
___. Mysterium Coniunctionis. Petrópolis: Vozes, 2018b.
Sites para consulta sobre o tema:
LOS 9 símbolos más representativos del Día de los Muertos. MamásLatinas, 4 nov. 2012. Disponível em: https://mamaslatinas.com/life-inspiration/107486-mexico_se_viste_de_flores. Acesso em: 25 out. 2021.
RINCÓN, Maria Luciana. Descubra o que são os símbolos que compõem o altar do Día de los Muertos. Mega Curioso, 31 out. 2019. Disponível em: https://www.megacurioso.com.br/dia-das-maes/85633-descubra-o-que-sao-os-simbolos-que-compoem-o-altar-do-dia-de-los-muertos.htm. Acesso em: 25 out. 2021.
UNESCO. El día de muertos: el regreso de lo querido, 29 out. 2019. Disponível em: https://es.unesco.org/news/dia-muertos-regreso-lo-querido-0. Acesso em: 25 out. 2021.