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Aniela Jaffé, o feminino e o cálice de vinho das Memórias, Sonhos e Reflexões

O presente artigo trata do papel de Aniela Jaffé como autora e biografa de C. G. Jung, assim como da sua importante participação simbólica como elemento feminino na coleção e estruturação das memórias do psicólogo suíço. O trabalho conjunto dos dois resultou na publicação do livro Memórias, sonhos e reflexões.

Explore o papel de Aniela Jaffé em "Memórias, Sonhos e Reflexões" de C. G. Jung, revelando a influência do feminino na criação literária junguiana.

Resumo: O presente artigo trata do papel de Aniela Jaffé como autora e biógrafa de C. G. Jung, assim como da sua importante participação simbólica como elemento feminino na coleção e estruturação das memórias do psicólogo suíço. O trabalho conjunto dos dois resultou na publicação do livro Memórias, sonhos e reflexões.

Quando nos dispomos a estudar com seriedade a obra e a vida de C. G. Jung, logo de início já temos a impressão de que este será um trabalho interminável, exatamente como a opus alquímica. Conforme vamos aprofundando nossa leitura e compreensão daquilo que ele escreveu ou deixou registrado verbalmente através de seus seminários, isso se confirma e percebemos que a frase inicial de Memórias, sonhos e reflexões (MSR): “Minha vida é uma história da autorrealização do inconsciente”[i], esconde muito mais do que podemos imaginar se ficarmos aprisionados no monoteísmo da consciência e da literalidade.

Como seria possível compreender algo interminável de maneira finita? A consciência nunca irá abarcar a infinitude, atemporalidade e aespacialidade do inconsciente. Para compreender e explicar a obra junguiana é preciso experienciar a realidade da psique. Fazer o mergulho na direção das profundezas do mundo interno, seguir o caminho da imitação de Cristo – não no sentido literal, mas em sua dimensão simbólica – como o próprio Jung fez.

Jung sempre quis mostrar como suas aventuras imaginais influenciaram profundamente seu trabalho científico. Nos Seminários sobre psicologia analítica, ocorridos em 1925, ou seja, muito antes de surgir a ideia de uma biografia que será concretizada em MSR, ele já expunha sua conexão com mundo interior de maneira clara:

“(…) os sonhos influenciaram todas as mudanças importantes em minha vida e em minhas teorias. Assim, por exemplo, cheguei a estudar medicina por causa de um sonho, quando minha firme intenção de início era tornar-me arqueólogo. Tendo isso em mente, inscrevi meu nome na lista dos alunos de filosofia na universidade, mas então veio esse sonho e mudei tudo”

(JUNG, 2017, p. 64).

Por vários fatores, era impossível para ele estudar arqueologia, o que levou Jung a considerar formar-se em filosofia, mas, como podemos ver, com suas próprias palavras, por conta de um sonho acabou optando pela medicina.

Esses fatos são interessantes, porém, o objetivo principal do presente artigo é chamar a atenção para uma figura importante no processo de produção da biografia citada acima – faremos isso apontando aspectos literais e algumas poucas ampliações simbólicas. Enfatizamos que MSR é uma biografia e não uma autobiografia; talvez o melhor seja entendermos que se trata de uma mistura das duas coisas. Acreditamos que isso seja importantíssimo para compreendermos que o texto final publicado foi resultado de uma obra conjunta entre C. G. Jung e Aniela Jaffé. Embora as novas edições indiquem o nome dela como organizadora e editora do livro, esses são apenas dois aspectos do papel que ela teve na construção do texto e na experiência de Jung em resgatar e registrar suas memórias.

A maioria dos dados citados aqui vêm de um livro publicado em 2023 chamado Reflections on the Life and Dreams of C. G. Jung by Aniela Jaffé (RLD). O livro traz anotações e comentários da autora que foram registrados durante os encontros que resultaram no livro MSR, mas não foram incluídos na publicação por decisão de Jaffé, que detinha os direitos sobre o texto de acordo com a vontade de Jung. Algumas vezes essas decisões levaram em consideração os desejos de Jung, outras situações falam sobre a vontade da família dele em não divulgar certos aspectos e comportamentos do próprio Jung.

Quando são esses os casos, normalmente o assunto estava relacionado a alguns comentários psicológicos que ele fez com relação ao cristianismo institucionalizado (JAFFÉ, 2023). Como exemplo, a frase a seguir estava no texto original, mas não entrou na publicação de MSR: “O verdadeiro Deus não tem relação nenhuma com a comunhão e com a igreja” (JAFFÉ, 2023, p. 322; NR 16).

Muito já foi especulado com relação ao papel de Aniela Jaffé na produção de MSR; alguns dizem que ela foi apenas editora e organizadora, outros afirmam que ela escreveu o livro como autora fantasma e que Jung só revisou e assinou o texto. Nunca saberemos todos os detalhes sobre o que aconteceu de verdade entre eles nesse processo, embora possamos ter uma maior clareza disso através dessa nova publicação (RLD) que traz relatos da própria Jaffé sobre a experiência. Não conseguiremos dar atenção, nesse artigo, para todas as informações que o livro traz – não chegaremos nem perto disso -, nossa intenção principal é dar uma ideia geral de como tentaram apagar o nome de Aniela Jaffé num primeiro momento e, na impossibilidade de isso acontecer, mudaram a estratégia para deixá-la em segundo plano.

Na nossa leitura simbólica, mais uma tentativa de negação do importante papel da anima e do feminino na produção criativa. Uma marca da contemporaneidade e uma preocupação que o próprio Jung apontava como importante com relação ao reconhecimento e integração dos aspectos femininos da psique.

Antes de falarmos sobre alguns detalhes interessantes sobre o título do livro, vamos observar que, apesar de ter sido produzido inicialmente sob encomenda para uma editora americana, o texto original foi escrito em alemão e acabou sendo lançado primeiramente na Alemanha em outubro de 1962, quase um ano depois da morte de Jung. Na Inglaterra o livro foi lançado no verão de 1963 e nos EUA no outono do mesmo ano. Em alemão o título do livro é Erinnerungen, Traume, Gedanken von C. G. Jung, o que em inglês deveria ser traduzido, de acordo com a vontade inicial dos autores, como Memories, Dreams, Reflections of C. G. Jung, porém, as primeiras edições traziam na capa Memories, Dreams, Reflections by C. G. Jung (JAFFÉ, 2023).

Mais tarde, retiraram tanto um quanto o outro e a edições passaram a mostrar apenas o nome de Jung em destaque, mantendo assim a ambiguidade no título.Em português essa substituição não faz muita diferença pois tanto of como by pode ser traduzida como “de”. Mas em alemão, o uso da preposição von indicaria, nesse caso, que o livro não havia sido escrito por Jung, mas sim que as experiências descritas ali eram dele, mas estavam registradas por uma outra pessoa, nesse caso, sabemos, Aniela Jaffé (2023).

Isso pode, num primeiro momento, parecer preciosismo e exagero, mas não é, como veremos com os outros dados apresentados em RLF. O título original, inclusive em inglês, foi escolhido por Jung e Jaffé, sendo mudado por vontade dos editores à revelia do que os dois pensavam sobre o assunto. Na verdade, como dissemos antes, Jung já havia falecido quando o livro foi publicado e a tradução do texto para o inglês era responsabilidade da editora, então a opinião de Jaffé pôde simplesmente ser ignorada.

Uma das coisas que mais impressiona nas correspondências entre Jaffé, Jung e Kurt Wolff, o responsável pelo projeto e contato da editora que encomendara a biografia, é a tentativa constante de apagamento dos elementos femininos tão importantes na construção das experiências e das teorias de Jung. Quando dizemos isso, não estamos nos referindo somente à Aniela Jaffé, mas sim a vários aspectos femininos da própria obra de Jung.

Wolff deixou claro muitas vezes na sua correspondência com Jung que a biografia deveria focar em acontecimentos concretos, deixando de lado as experiências que ele tinha com o inconsciente (JAFFÉ, 2023). Por isso mesmo, não podemos simplesmente confundir aqui “feminino” com mulher, apesar de ficar claro que o pensamento junguiano parece atrair muito mais mulheres (quando falamos em números totais) do que homens.

Parte disso se deve ao fato de as mulheres serem mais conectadas com os valores femininos que incluem, como indica Emma Jung, a capacidade de integração mais natural com o irracional (JUNG, 2020). É por isso também que Marie Louise Von-Franz afirmava que a psicologia junguiana é, em sua essência, mais feminina, conectada com o movimento unificador de Eros (prospectiva sintética, sem desconsiderar Logos, mas sim buscando a integração dos dois elementos), enquanto a psicologia freudiana ortodoxa era praticamente masculina (de certa forma unilateralizada em Logos, buscando a explicação racional, redutiva causal dos fenômenos) [ii].

Kurt Wolff insistiu muitas vezes para que as opiniões de Jaffé fossem deixadas de fora do texto com a intenção, claramente mercadológica, de que o livro deveria ser assinado por Jung. Porém, ele não contava com a forma que Jung enxergava a questão. Elena Fischli, autora do comentário histórico para o livro RLD diz, citando também uma fala do próprio Jung: “Ele encorajou Jaffé para contribuir com o máximo de material possível ‘para que o texto fosse de sua autoria” (FISCHLI, 2023, p. 304).

Em 1985 a edição alemã de MSR trouxe o nome de Jaffé como autora e a classificação do livro como uma biografia, a partir de então, outras edições seguiram o padrão, apesar de encontrarmos ainda muita confusão com relação ao assunto. Quando, na década de 1980, Jaffé estava trabalhando no texto que finalmente foi publicado em 2023 como RLD, foram feitas acusações, por várias partes diferentes, de que, porque as notas que ela estava utilizando para a produção do livro tinham sido ditadas por Jung, ela não poderia ser considerada autora do manuscrito que estava produzindo. Mais uma vez tentaram tirar seu papel como autora, em suas próprias palavras:

Afirmando que o manuscrito não é de minha autoria, mas sim de C. G. Jung, a tentativa de eliminar meu nome, a qual eu já vivi com Memórias, está sendo repetida.”

(JAFFÉ, APUD, FISCHLI, 2023, p. 363)

Vamos olhar rapidamente para alguns acontecimentos para compreender que a relação de colaboração criativa entre Jaffé e Jung foi construída ao longo de anos. Quando o projeto da biografia tomava forma, Jung havia perdido Emma Jung em 1955 e Toni Wolff em 1953, suas duas companheiras e guias, aquelas que davam, de várias maneiras, o suporte que ele necessitava para suas experiências com os conteúdos do inconsciente e produções que surgiam dessas imagens.

Jolande Jacobi foi cotada para servir como biógrafa de Jung, mas ela mesmo indicou que a melhor pessoa para cumprir tal tarefa era Aniela Jaffé, que era muito próxima de Jung e compreendia a obra e a teoria com profundida e competência. Nesse sentido, nos parece que Jaffé ocupou um lugar feminino importantíssimo na coleção e estruturação das memórias para publicação. Esse papel de Jaffé parece ter sido antecipado intuitivamente por Jung que escreve, numa carta para ela datada de 10/08/1947, ou seja, anos antes da produção de MSR, o seguinte:

“Querida Aniela,

     Agradeço de coração sua resposta à minha “Trindade”; não poderia imaginar resposta mais bela. É uma reação “total” que teve efeito “total” também sobre mim. A senhora retratou perfeitamente a imagem que eu coloquei em meu trabalho. Nesta sua carta tornou-se claro novamente para mim quanto se perde quando não se recebe resposta, ou apenas uma resposta fragmentária, e quanta alegria se tem quando acontece o contrário, ou seja, uma ressonância criativa que produz ao mesmo tempo uma revelação da natureza feminina.

É como derramar num cálice precioso o vinho que ficou maduro e bom após muito esforço, suor, cuidado e preocupação. Sem este recipiente e acolhimento, a obra do homem permanece uma criança delicada que se contempla com olhar duvidoso e se solta no mundo com incerteza interior. Mas quando se abre uma alma para a obra, é somo se uma semente descansasse em boa terra, ou como se as portas de uma cidade fossem fechadas à noite, de modo que se possa gozar de repouso seguro.”

(JUNG, 2002, p. 80, Grifo Nosso)

            Sabemos que a obra de Jung é paradoxal pela colaboração consciente de uma imposição supraordenada. Ele mesmo afirmava que o pensamento paradoxal, ou seja, a atitude simbólica, é a única maneira de aproximarmo-nos do fenômeno da vida. A supraordenação aqui refere-se à tendência dos arquétipos de se manifestarem no mundo concreto, deixando para o ego, idealmente centro e gestor do campo da consciência, apenas a possibilidade de escolher alinhar-se com essa tendência ou não. Jung entregava-se, numa relação dialógica com o inconsciente, para a totalidade psíquica, isto é, para o si-mesmo.

Tal atitude exige o rigor de Logos e a fluidez de Eros.

Em uma conversa no ano de 1951 com Sabi Tauber, uma de suas analisandas, ele diz, segundo os registros dela: “Cada ideia precisa de validação científica e um manuscrito precisa ser lido e criticado por dez amigos antes de ser publicado. Isso é rigor científico!” (TAUBER, 2021, p. 30).

Muitas vezes Jung, assim como Marie Louise Von-Franz, afirmaram que a prática da psicologia analítica, a análise de sonhos, desenhos, mandalas, sintomas etc. é uma união entre ciência e arte. Nas palavras dela:  

“ (…) o inconsciente constelava intensamente nele e constela também em seus leitores, porque Jung foi o primeiro a perceber a atividade criativa e espontânea da psique inconsciente e a seguir conscientemente. Ele permitia que o inconsciente se manifestasse diretamente naquilo que escrevia, especialmente nos seus últimos trabalhos.

(VON FRANZ, 1975, p. 4)

Averiguamos aqui, através de frases de duas mulheres diferentes, como Jung mostrava através de sua própria atitude o paradoxo necessário para que a psique se desenvolvesse criativamente.

Voltando ao assunto principal desse ensaio, apesar de encontrarmos em MSR a introdução redigida por Jaffé sobre o processo de produção do livro, parece que poucos dão atenção para o conteúdo dessa parte do texto. Mas, para além disso, acreditamos que seja necessário ter a consciência de que MSR surgiu a partir da relação entre Jung e Jaffé, ela servindo simbolicamente como o cálice, o Graal, citado na carta acima, onde ele podia derramar seu vinho, maturado durante tantos anos, com segurança e confiança.

José Luiz Balestrini Junior – Analista Didata em Formação

Analista Didata Responsável – Waldemar Magaldi

Referências:

FISCHLI, E. Historical Commentary. In: DAIMON (Ed.). Reflections on the Life and Dreamns of C. G. Jung. Eisiedeln, 2023.

JAFFÉ, A. Reflections on the Life and Dreams of C. G. Jung. Einsiedeln: Daimon, 2023.

JUNG, C. G. Cartas Vol. 2.  Petrópolis: Vozes, 2002.

JUNG, C. G. Memories, dreams, reflections.  Vintage, 2011. 0307772713.

JUNG, C. G. Seminários sobre Psicologia Analítica (1925) Carl Gustav Jung.  Editora Vozes Limitada, 2017. 8532655920.

JUNG, E. Animus e anima.  BOD GmbH DE, 2020. 655736023X.

TAUBER, S. Encounters with CG Jung: The Journal of Sabi Tauber (1951-1961): Including” CG Jung-On Feelings and the Shadow. Winterthur Colloquies”.  Daimon Verlag, 2021. 3856307842.

VON FRANZ, M.-L. C. Jung: His myth in our time. 1975.

Imagem: Mosaico de Dionísio e Acme em Paphos. Domínio público. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/File:Dyonisos_Paphos_mosaic.jpg


[i] Traduzido livremente do inglês. No original: “My life is a story of the self-realizations of the unconscious” (JUNG, 2011).

[ii] Comunicação verbal de Eva Wertenschlag-Birkhauser em seminário no ano de 2023. Eva é a atual presidente do Research- and Training Centre for Depth Psychology according to C.G. Jung and Marie Louise von Franz, fundado com a colaboração da última em 1994. Von Franz foi presidente honorária e membro do conselho do Centro até 1998, quando veio a falecer.

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