“…neste universo de mãos e materialidade construímos nossa autonomia expressiva e ativamos nosso processo criativo … estas mãos são instrumentos potenciais de germinação e construção.”
Angela Philippini – Cartografias da Coragem
Ah… as mãos.
Nossas mãos são instrumentos de transformação em diversas áreas e aspectos. Com elas, realizamos os mais belos e os mais sombrios gestos. Juntas, se elevam em oração, agradecem, compõe um movimento para um suave passo de dança. Podem ao contrário, serem destrutivas, agressivas e trazerem dor, destruição e sofrimento. São responsáveis por trabalhos leves e delicados onde a precisão do toque e a habilidade motora bem desenvolvida são necessários, bem como por tarefas pesadas em que a força bruta e a firmeza são imprescindíveis.
As mãos conversam: elas são a voz daqueles que não falam e se expressam pela linguagem de libras. Como órgão do tato, reconhecem o mundo à sua volta pelas sensações que o toque desperta no corpo. Elas escrevem, desenham, pintam, esculpem, colam e tecem. Fazem e desatam laços e nós. As mãos do médico habilidoso trazem a vida ao mundo nos partos e em intervenções diversas, assim como as mãos do assassino impetuoso tira a vida em segundos, sem qualquer culpa. Mãos que acariciam, acolhem e afagam; mãos que cerradas em punho, batem, empurram e esmagam.
Por serem responsáveis por toda esta variedade de ações, as mãos são um instrumento de alto valor no processo do fazer e do viver humano. Segundo MIRANDA (2014):
“Mencionada numa grande variedade de usos literais e figurativos, a palavra mão, é de longe a parte do corpo humano mais citada na Bíblia: 1.538 vezes […] As mãos representam na tradição judeu-cristã o conhecimento e o poder, evocam o braço e a autoridade. Ao deter as chaves do conhecimento, as mãos falam de um conhecer material que é também amar.” (MIRANDA, 2014, p. 175).
Quando pensamos na arteterapia, o fazer manual é fundamental para o processo. São as mãos que realizam e que comunicam o que por diversas vezes a nossa racionalidade não nos permite alcançar por meio da fala. A nossa fala – verbal – passa por filtros, projeções e racionalizações do ego. O pensamento racional pode trair a expressão genuína do nosso inconsciente. Quando um complexo toma o ego, a fala pode vir de forma muito bruta e primitiva, provocando culpa e desconforto. Quando utilizamos as mãos como meio de expressão, as defesas do ego são mais amenas, pois este não sente sua integridade ameaçada.
Vale falar aqui sobre os complexos. Eles são núcleos carregados de grande valor afetivo, que se formam a partir de vivências dolorosas e traumáticas, que são reprimidas e afastadas da consciência pelo desconforto que causam. Com sua energia, possuem autonomia e pela forte carga emocional que possuem, podem dominar a vontade consciente e manifestar-se de modo a dominar o próprio complexo do ego. Segundo Jung:
Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, se comporta, na esfera do consciente, como um corpus alienum corpo estranho, animado de vida própria. (JUNG, 1991, §201)
A manifestação dos complexos se dá por meio de irrupções de atos e de comportamentos na maioria das vezes, pouco desejáveis. Na dialética consciente / inconsciente, é no corpo, por meio de sintomas que os complexos se manifestam. Para Jung, o corpo e alma, são duas dimensões que coexistem numa mesma estrutura e afetam-se simultaneamente, dependendo uma da outra para que a vida aconteça. As funções vitais atuam independente da vontade consciente do ego. “O eu sequer tem uma pálida ideia da função reguladora e incrivelmente importante dos processos orgânicos internos a serviço do qual está o sistema nervoso simpático”. (JUNG, 1991, § 613).
Na arteterapia, quando o analista utiliza técnicas expressivas, ele proporciona um espaço para que a dialética entre as instancias consciente e inconsciente possam acontecer. Por meio das mãos, que produzem imagens, surge aquilo que a razão não consegue alcançar nas racionalizações e na comunicação verbal, conforme já comentado. A mesma psique que produz estes efeitos indesejados causado pela autonomia dos complexos também nos do fornece, por meio da materialidade das imagens um caminho para entendimento, assimilação e integração dos aspectos sombrios inconscientes. Em sua obra A Natureza da Psique, Jung afirma:
Há pessoas, porém, que nada veem ou escutam dentro de si, mas suas mãos são capazes de dar expressão concreta aos conteúdos do inconsciente. Esses pacientes podem utilizar-se vantajosamente de materiais plásticos. […] Muitas vezes impõe-se a necessidade de esclarecer conteúdos obscuros, imprimindo-lhes uma forma visível. Pode-se fazer isto, desenhando-os, pintando-os ou modelando-os. Muitas vezes as mãos sabem resolver enigmas que o intelecto em vão lutou por compreender. (JUNG, 1991, § 171 e §180)
Em seus escritos, Jung relata que propunha o uso de recursos expressivos a seus clientes. Ele também costumava usar estas técnicas para expressar seus próprios sonhos e fantasias. Ele relata uma destas experiências com clientes da seguinte forma:
O paciente, então, me diz: “Sabe? Se eu fosse pintor, pintaria um quadro desse sonho”. […] Por isso, estimulo meus pacientes, nessas horas, a pintar de verdade o que viram no sonho ou na fantasia. Em geral objetam que não são pintores: costumo responder que os pintores, hoje em dia, também não o são, que atualmente a arte é totalmente livre, e que o que importa não é a perfeição do quadro, mas unicamente o esforço que se faz para pintá-lo. Recentemente pude observar o quanto era verdadeira essa afirmação numa cliente minha, retratista profissional de grande talento. Suas tentativas iniciais foram desajeitadas como as de uma criança, até conseguir pintar do modo que eu lhe sugeria. Era literalmente como se jamais tivesse segurado um pincel na mão. É que a arte de pintar exterior, é bem diferente do que pintar de dentro para fora. (JUNG, 1987, § 101 e 102)
O que a psique necessita com suas manifestações é de uma integração de suas partes. É importante que se faça um esforço consciente, no sentido de compreender e transformar estas mensagens em elementos vitais. O universo inconsciente é extremamente vasto de imagens e de representações e procura a todo instante fazer-se presente, mas nem sempre isso acontece de forma inteligível ou agradável e o fazer manual é um dos recursos que temos para esta conversa e transformação. As mãos servem, neste lugar, como ferramentas na construção desta dialética. Elas são um símbolo de muito valor em nossa estrutura corporal.
Em O Simbolismo do Corpo Humano, Annick de Souzenelle (1995) nos apresenta o aspecto sagrado das mãos em diversas culturas. No simbolismo judaico cristão, são as mãos que vinculam o homem ao Pai, sendo que é das mãos Dele que se recebe as graças e a energia.
A palavra hebraica Yada, היד ‘conhecer’, é construída sobre a raiz Yad – ‘a mão’ – à qual se acrescenta a letra Ayin עַיִן, que quer dizer ‘olho’. Poderíamos dizer que a mão é dotada de visão e que o olho possui uma certa qualidade de toque. Visão e tato levam ao Conhecimento que liberta. (SOUZENELLE, 1995, p. 223)
É interessante pensar no que a afirmação nos provoca – o “conhecer” por meio das mãos, o “tocar” como recurso para ver / enxergar. O toque é uma qualidade dos dedos. A criança quando nos pede para ver um determinado objeto, quer logo pegar. Ver e conhecer os objetos, para as crianças tem uma ligação muito direta com o tocar. Assim como os cegos desenvolvem esta habilidade de modo muito aguçado. Eles leem com as pontas dos dedos e ao tocar uma pessoa conseguem relatar pontos relevantes sobre sus aparência. Os dedos são os responsáveis também pelo fazer manual. Estes são em número de 5 e as duas mãos formam 10 – o número que representa a unidade. Segundo Souzenelle:
O que me parece essencial esclarecer é que as duas mãos, em profundidade, são uma. Elas exprimem as duas faces da unidade, a única força, o único conhecimento que se manifesta na dualidade pelo número 5. Este, símbolo do germe, é promessa da dualidade que as duas mãos juntas, reconstituindo o 10, realizam. As duas mãos reunidas na unidade simbolizam igualmente a “força “. (SOUZENELLE, 1995, p. 226)
Ainda sobre os dedos, O Livro dos Símbolos, nos recorda que os dedos são uma parte distinta e importante na simbologia das mãos, dada a sua singularidade. A área forense por exemplo se utiliza do fato de que não temos impressões digitais iguais. No livro continua: “…imagens de chamas a emanar das pontas dos dedos de santos e o calor por vezes sentido no toque de um curador, sugerem que os dedos são passagens entre os reinos interior e exterior” (MARTIN, Kathleen & RONNBERG, Ami, 2012, p. 384).
Não podemos esquecer que Deus esculpiu Adão a partir do barro. Daí a imagem arquetípica e sagrada do poder de criação das mãos. Quanto a este poder sagrado, Miranda (2014), comenta que na consagração da extrema unção, o óleo é ungido na cabeça e nas mãos do doente, como um sinal de que as atividades podem ser encerradas, agora as mãos juntas serão dirigidas aos céus, como sua última ação. “…a unção dos enfermos ajuda a pessoa – por caminhos misteriosos – a enfrentar a derradeira passagem com a cabeça erguida e as mãos voltadas para os céus” (MIRANDA, 2014, p. 179). O Livro dos Símbolos, traz uma visão que complementa e corrobora com o que está aqui exposto sobre a sacralidade das mãos, representada pelas Mãos de Deus, como símbolo da “atividade suprema e inexorável“ (MARTIN, Kathleen & RONNBERG, Ami, 2012, p. 380). Os ritos em que o gestual com as mãos é presente, retratam a importância de compreender o valor desta parte corpo para a humanidade também como uma forma de elevação espiritual.
Outro aspecto importante a destacar é a ligação das mãos com o cérebro. Segundo Miranda (2014) “Os dois hemisférios cerebrais são inseparáveis das mãos […] Nenhuma parte do corpo humano, fora da cabeça, tem um vínculo tão ativo e permanente com a atividade cerebral” (MIRANDA, 2014, p. 177 e 179). E no Livro dos Símbolos é posto que “A par da boca e dos lábios as mãos possuem mais ramificações neurais do que o resto do corpo como se refletisse a primazia do som e da produção.” (MARTIN, Kathleen & RONNBERG, Ami, 2012, p. 380).
Em relação ao ato do fazer terapêutico, Urrutigaray (2015) comenta que as imagens produzidas são provenientes do inconsciente coletivo e possuem uma carga de energia psíquica, devido à ação dos complexos. Ela corrobora com a visão de Jung, quando fala que a produção das imagens se configura como um importante caminho para que o ego os reconheça e possa lidar com sua manifestação, ao olhar para os aspectos sombrios da psique de um modo mais amigável. Jung, chama a atenção sobre os aspectos estéticos / artísticos das produções. Para se alcançar a integração e a função transcendente, o ego não pode se apegar aos aspectos literais e estéticos, evitando racionalizações e inflação. A respeito deste cuidado, Jung diz: “…a consciência põe seus meios de expressão ao dispor do conteúdo inconsciente, e, mais do que isto, ela não pode fazer, para não desviar o conteúdo no rumo da consciência.” JUNG, 1991, §178). A consciência pode se distrair e se deixar seduzir facilmente, desviando-se assim do real valor simbólico da imagem criada.
Por isso, é relevante destacar que não se atribui à arteterapia um valor artístico ou estético, mas o fazer simbólico, onde a representação dos aspectos arquetípicos nas produções, pode ser compreendida como a possibilidade de união do universo consciente e inconsciente. É desta interação, que o indivíduo poderá transcender aspectos de sua psique, sendo a função transcendente a resultante do processo criativo da arteterapia. Para Jung a função transcendente é capacidade de gerar um novo estado de consciência, sendo que esta comunicação entre os universos consciente e inconsciente permeia toda sua obra. Para ele:
A experiência já mostrou, há muito tempo, que entre a consciência e o inconsciente existe uma relação de compensação, e que o inconsciente sempre procura complementar a parte consciente da psique, acrescentando-lhe o que falta para a totalidade, e prevenindo perigosas perdas de equilíbrio. No nosso caso, como é de se esperar, o inconsciente gera símbolos compensatórios, que devem substituir as pontes que ruíram, mas só o conseguem de fato, mediante a ajuda da consciência. É que os símbolos gerados pelo inconsciente têm que ser “entendidos” pela consciência, isto é, têm que ser assimilados e integrados para se tornarem eficazes. (JUNG, 1987, § 252. Grifos do autor.)
Urrutigaray (2015) destaca que a finalidade da arteterapia é criar uma imagem a partir da imaginação, por meio de uma multiplicidade de materiais, que com sua plasticidade “cedem sua flexibilidade e maleabilidade a quem os utiliza, para expressar seus conteúdos íntimos” (URRUTIGARAY, 2015, p. 27). A capacidade de materialização das imagens cria um caminho para que questões inconscientes sejam conhecidas e transformadas. Este caminho se faz possível pelo encontro das mãos de quem se expressa com os mais diversos elementos: matérias, que são recursos expressivos; imagens, provenientes do mundo inconsciente do indivíduo, o processo criativo como potencial humano e a ação mediadora ou facilitadora destes elementos pelo arteterapeuta.
Encerro este artigo com uma fala de Jung sobre o encontro do si mesmo facilitado por estes caminhos poéticos e criativos, que estão a serviço das mãos, dispostas a servir aos indivíduos e ao que sagrado neles vive, bastando delas se utilizar, sem medos ou resistências racionais. Segundo Jung:
O que pinta são fantasias ativas – aquilo que está mobilizado dentro de si. E o que está mobilizado é ele mesmo, mas já não mais no sentido equivocado anterior, quando considerava que o seu “eu” pessoal e o seu “self” eram uma e a mesma coisa. Agora há um sentido novo, que antes lhe era desconhecido: seu eu aparece como objeto daquilo que está atuando dentro dele. Numa série interminável de quadros, o paciente esforça-se por representar, exaustivamente, o que sente mobilizado dentro de si, para descobrir, finalmente, que é o eterno desconhecido, o eternamente outro, o fundo mais fundo da nossa alma. (JUNG, 1987, § 107)
Referências Bibliográficas
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. [1971] 5ª ed. Vol. XVII. Petrópolis: Vozes, 1991
.___________. A prática da psicoterapia. [1971] 3ª ed. Vol. XVI/1. Petrópolis: Vozes, 1987
MARTIN, Kathleen & RONNBERG, Ami. O livro dos símbolos – reflexões sobre imagens arquetípicas. Alemanha, Ed Taschen, 2012.
MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Corpo. Território do sagrado. 8ª ed. São Paulo. Edições Loyola. 2014
PHILIPPINI, Angela. Cartografias da coragem. Para entender Arteterapia. Rio de Janeiro. Wak Editora, 2013.
SOUZENELLE, Annick. O simbolismo do corpo humano. 2ª ed. São Paulo. Ed. Pensamento, 1995
URRUTIGARAY, Maria Cristina. Arteterapia. A transformação pessoal pelas imagens. Rio de Janeiro: Wak Editora, 2011.
Gilmara Marques Fadim Alves
Membro Analista em formação pelo IJEPAnalista didata – Maria Cristina Guarnieri