Com o advento da fotografia, a humanidade ganhou uma ferramenta poderosa para capturar e eternizar momentos, ampliando nossa capacidade de registrar o tempo vivido e preservar a memória. A fotografia não é apenas uma reprodução visual de um instante, mas uma representação simbólica que transcende o tempo, transformando momentos fugazes em eternidades visuais. Entre as diversas formas de registro, a fotografia se destaca como guardiã dos momentos que desejamos manter vivos, oferecendo-nos um elo tangível com nosso passado.
Essas imagens funcionam como janelas para nossas lembranças, permitindo que o observador atento faça uma leitura que conecta o passado com o presente, ao mesmo tempo em que abre espaço para o enigma e a subjetividade. Ao congelar um determinado momento no tempo, a foto oferece não apenas um recorte do que foi, mas também um convite à interpretação e à reflexão sobre a nossa existência e sobre os mistérios que cercaram as relações humanas.
Por isso, uma foto pode revelar muito mais do que a imagem do que foi capturada.
Simbolicamente, a fotografia é a imortalização de um momento passado. Como arte, ela é um registro da memória e conta uma história que liga o passado com os olhos de quem a vê, ou seja, é uma espécie de elo entre o inconsciente e a consciência. Jung (OC 7/1, §103) diz que o inconsciente pessoal “contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais)”. Ao se observar atentamente uma foto, pode ser desnudada alguma circunstância, uma cena até então não percebida, ser revelada alguma imagem simbólica acerca de uma situação oculta.
Na atualidade, atravessamos um Espírito da Época marcado pelas selfies. Importante lembrar que, para Jung, “Espírito da Época” (ou Zeitgeist em alemão) se refere ao conjunto de ideias, valores, crenças, atitudes e comportamentos que predominam em uma determinada época ou cultura. É uma espécie de “clima psicológico” que influencia a maneira como as pessoas pensam, sentem e se comportam.
Numa ampliação simbólica, por traz de repetições obsessivas pela busca da imagem ideal, a selfie pode simbolizar uma expressão de intensa busca pela autoafirmação em uma sociedade marcada pela superficialidade e pela fluidez das relações e identidades.
Num período em que Zygmunt Bauman (2021) denominou de ‘modernidade líquida’, onde tudo é transitório e as certezas são fugazes, a selfie emerge como uma tentativa de solidificar um senso de identidade que é paradoxalmente pessoal e público, oferecendo um meio imediato de autoafirmação, uma forma de dizer “eu existo” para si mesmo e para os outros.
Cada imagem postada nas redes sociais é um pedido de validação, uma busca por curtidas e comentários que reforçam a identidade apresentada. Essa necessidade de reconhecimento externo pode estar intrinsecamente ligada à dinâmica da sociedade líquida, onde o ego busca constante legitimação, tornando-se uma moeda de troca simbólica em um mercado de autoimagem e aprovação social. Porém, essa prática também revela um aspecto sombrio: a baixa autoestima que, muitas vezes, impulsiona o desejo incessante de criar e compartilhar essas imagens. Essa selfie aponta para uma persona cuidadosamente construída ao projetar uma imagem idealizada, distanciando-se da verdadeira identidade do indivíduo. Essa construção de uma persona baseada na aparência e na aceitação social pode levar a um ciclo vicioso, onde a autoestima se torna cada vez mais dependente das reações dos outros, aprofundando o vazio interno.
Importante lembrar que a Psicologia Analítica entende por eu ou ego o fator “ao qual todos os conteúdos conscientes se relacionam” (JUNG, OC 9/2, § 1).
“É este fator que constitui como que o centro do campo da consciência, e dado que este campo inclui também a personalidade empírica, o eu é o sujeito de todos os atos conscientes da pessoa” (JUNG, OC 9/2, § 1). Se o ego é o centro da consciência, a persona é “uma máscara da psique coletiva, (…) representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que ‘alguém parece ser’” (JUNG, OC 7/2, § 246). É a relação ao qual a consciência se relaciona com o mundo externo.
A prática da selfie, quando vista sob uma perspectiva simbólica, revela a complexa relação entre o indivíduo e a sociedade contemporânea. Ela representa uma busca incessante por validação em um mundo onde as certezas são efêmeras e as identidades são plastificadas. A selfie, como um símbolo, desafia-nos a refletir sobre o equilíbrio entre a autoafirmação saudável e a dependência da aprovação externa, sobre a diferença entre o eu e a persona que mostramos ao mundo, e sobre como navegamos as águas instáveis da sociedade líquida sem perder nosso senso de autenticidade.
Quantas selfies são tiradas para eleger uma boa foto e publicarmos nas redes? Simbolicamente, quais são as descartabilidades de autoimagem que não suportamos para ter a fantasia do ideal? Os complexos ficam constelados ao não produzirmos a melhor imagem de nós mesmos para gerar a aprovação do coletivo. Jung (OC 8/2, §198) diz que a expressão “está constelado indica que o indivíduo adotou uma atitude preparatória e de expectativa, com base na qual reagirá de forma inteiramente definida”, ou seja, “a constelação é um processo automático que ninguém pode deter por própria vontade. Esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria”.
Entre tantos outros, um importante aspecto que as fotografias podem revelar são as dinâmicas e os complexos familiares.
Ao observar uma fotografia familiar, podemos perceber a manifestação desses complexos de maneira sutil, por vezes importante. Cada indivíduo na foto é visto não apenas em sua singularidade, mas também como um nó em uma intricada rede de relações e expectativas que foram moldadas por gerações, refletindo padrões inconscientes transmitidos ao longo do tempo.
A disposição dos membros na imagem, suas expressões faciais e corporais, os olhares trocados (ou a ausência deles), e até a escolha de quem está ou não presente na foto, podem nos fornecer pistas valiosas sobre as dinâmicas familiares subjacentes. Por exemplo, a proximidade física entre dois membros pode indicar uma relação de dependência emocional ou uma aliança inconsciente, enquanto a distância entre outros pode sugerir conflitos não resolvidos ou afastamentos emocionais.
A ausência de uma figura-chave na fotografia, como a de um pai ou uma mãe, pode apontar para a internalização de um complexo paterno ou materno, onde a figura ausente exerce influência por vezes inconsciente sobre os membros da família presentes. As expressões faciais também podem revelar muito: um sorriso forçado ou uma expressão neutra pode indicar tensões subjacentes ou papéis familiares assumidos por obrigação, enquanto um semblante relaxado pode sugerir uma aceitação do papel desempenhado dentro da estrutura familiar.
Esses complexos, como o materno, paterno ou fraterno, não são apenas influências individuais, mas também representam forças arquetípicas que moldam a psique coletiva da família.
A fotografia, ao congelar esses momentos no tempo, nos oferece um vislumbre das forças inconscientes que moldam as relações e as identidades dentro do grupo familiar, revelando padrões que podem ser tanto fonte de conexão e apoio quanto de conflito e tensão. Assim, cada detalhe capturado na imagem, desde a postura de um membro até a sombra de uma expressão, contribui para um mosaico simbólico que reflete a complexidade da vida psíquica familiar, revelando as camadas profundas de interação e influência que, muitas vezes, permanecem ocultas na vida cotidiana.
Outro aspecto importante que podemos analisar com as fotografias são as etapas da vida humana, que podem servir como registros simbólicos e profundamente reveladores.
No primeiro setênio, as imagens captam não apenas a aparência física da criança em seus primeiros anos de vida, mas também podem revelar aspectos mais sutis e invisíveis de sua jornada de crescimento na dinâmica familiar. A postura corporal, o brilho nos olhos, a expressão facial, o gesto das mãos — todos esses elementos podem ser interpretados como reflexos da interação da criança com seu ambiente e das influências emocionais, espirituais e energéticas que ela está absorvendo durante esse período formativo.
Fotografias que capturam a interação íntima da criança com seus pais, ou cuidadores, oferecem uma janela para as dinâmicas emocionais e a transferência de valores e comportamentos que ocorrem nessa fase inicial de vida. A maneira como se relaciona com os adultos na imagem — seja se aninhando em seus braços, buscando seu olhar ou imitando seus gestos — pode indicar o nível de segurança, confiança e amor que ela sente, elementos essenciais para o desenvolvimento saudável de seu corpo físico, seu senso de eu e sua capacidade de se conectar com o mundo.
Essas interações captadas na fotografia podem revelar a base emocional que a criança está construindo, que servirá de alicerce para sua vida futura, influenciando sua capacidade de formar relacionamentos, enfrentar desafios e desenvolver uma identidade sólida. Cada imagem se torna um mapa simbólico do processo de crescimento, refletindo tanto a influência dos cuidados amorosos quanto a presença das forças espirituais que guiam a criança em sua jornada durante esses anos fundamentais.
Por outro lado, a fotografia também pode apreender, de maneira sutil, as dinâmicas ocultas da sombra familiar.
Durante os primeiros anos de vida, a criança é especialmente sensível às energias emocionais e psicológicas ao seu redor, absorvendo não apenas o que é explicitamente dito ou feito, mas também o que é oculto, reprimido ou não verbalizado. A sombra familiar, os medos, traumas, expectativas não atendidas e desejos inconscientes, pode se manifestar de diversas formas nas imagens capturadas.
Importante ressaltar que, para a Psicologia Analítica, sombra são “aqueles elementos, sentimentos, emoções, ideias e crenças com os quais não podemos nos identificar, que são reprimidos devido a educação, cultura ou sistema de valores” (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1998, p. 89). Ela pode ser individual ou coletiva: a primeira quando nós, pessoalmente, que reprimimos um conteúdo psíquico particular, e a última quando uma cultura ou subcultura inteira efetua essa repressão (GUGGENBÜHL-CRAIG, 1998, p. 89).
As fotografias podem revelar sinais da sombra familiar nas expressões faciais, posturas corporais e demais interações.
Por exemplo, alguém que aparece retraído, com um olhar distante ou uma postura corporal fechada, pode estar expressando inconscientemente tensões ou conflitos emocionais não resolvidos presentes no ambiente familiar. Essas imagens podem indicar que a pessoa internaliza ansiedades, inseguranças ou frustrações que, embora não sejam verbalizadas, são sentidas e absorvidas por ela. A ausência de certos membros da família, ou a presença frequente de expressões de desconforto ou constrangimento, pode sugerir que a sombra atua em formas de exclusão, favoritismo ou projeção de expectativas. Um dos filhos pode ser colocado num papel inconsciente, como o de “salvador”, “bode expiatório” ou “filho favorito”, “culpado pela separação dos pais”, refletindo dinâmicas de poder e de aceitação que moldam sua identidade em formação.
A sombra captada nas fotografias pode também se manifestar nas interações entre os membros da família. Uma imagem onde alguém parece buscar atenção ou aprovação de um familiar pode indicar uma dinâmica de sombra onde o amor é condicional, baseado em desempenho ou conformidade com certas expectativas inconscientes. Essa busca incessante por validação pode apontar para uma insegurança emocional internalizada, fruto de um ambiente onde as necessidades emocionais são negligenciadas ou reprimidas. De outro modo, algumas fotos podem mostrar, por exemplo, crianças em situações que assumam papeis excessivamente responsáveis, talvez cuidando de irmãos menores ou desempenhando tarefas que não são adequadas à sua idade, podem sugerir que a sombra da família inclui uma projeção de responsabilidades adultas na criança. Isso pode ocorrer em famílias onde os adultos, consciente ou inconscientemente, esperam que a criança compense suas próprias falhas ou lacunas emocionais.
As fotografias, quando reunidas em álbuns de memórias, também têm um papel simbólico profundo na forma como lidamos com o luto e a perda.
Elas não apenas capturam momentos de vida e expressões visíveis, mas carregam o peso emocional e as histórias invisíveis que, muitas vezes, ajudam a manter viva a conexão com aqueles que se foram. Nesse sentido, podem ser vistas como pontes entre o passado e o presente, funcionando como símbolos de continuidade, capazes de oferecer consolo em momentos de dor e saudade. No contexto do luto, a foto pode atuar como um símbolo arquetípico, permitindo que a pessoa reviva e reinterprete experiências vividas com quem partiu. Ela não apenas congela o momento, mas também abre uma janela para que a pessoa possa se reconectar emocionalmente com a memória e a sensação da presença ausente. Isso é especialmente importante quando as palavras falham em expressar o impacto emocional da perda.
Ao folhear um álbum de fotografias, o enlutado pode rememorar a ausência. Cada imagem traz à tona um fragmento do passado que, aos poucos, ajuda a reconstruir o sentido da vida após a perda. A fotografia permite que a memória seja reorganizada, e a pessoa possa se lembrar não apenas da morte, mas, sobretudo, da vida que foi vivida junto àquele que partiu. Esse processo de recuperação das lembranças pode ser terapêutico, pois oferece uma maneira de processar as emoções e reconstruir a narrativa pessoal sem que a dor da ausência seja paralisante.
A vastidão das imagens capturadas pela fotografia é incomensurável, e o universo simbólico que ela evoca é muito rico. Este texto propõe um breve recorte dentro desse campo inesgotável, com o intuito de estabelecer um diálogo simbólico entre as imagens e os complexos no inconsciente, revelando as conexões sutis que essas representações visuais podem despertar em nossos afetos mais profundos. Ao explorar o poder simbólico da fotografia, buscamos compreender como ela pode se tornar uma ponte para acessar dimensões ocultas da psique, resgatando memórias, emoções e experiências que, muitas vezes, nos escapam.
Daniela Euzebio – Analista Didata em formação IJEP
E. Simone Magaldi – Membro Didata IJEP
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
GUGGENBÜHL-CRAIG, Adolf – Eros de muletas – reflexões sobre amoralidade e psicopatia. Curitiba – Corsária, 1998.
JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 2014 (Obras completas v. 8/2).
JUNG, Carl Gustav. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. Petrópolis: Vozes, 2013 (Obras completas v. 9/2).
JUNG, Carl Gustav. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas v. 7/2).
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2016 (Obras completas v. 7/1).