“Seu lema é: qualquer coisa menos ser como a mãe! Trata-se, por um lado, de um fascínio que, no entanto, nunca se torna uma identificação, e, por outro, de uma exacerbação do eros que se esgota, porém, numa resistência ciumenta contra a mãe. Tal filha sabe tudo o que não quer, mas em geral não tem clareza acerca do que imagina ser seu próprio destino. Seus instintos concentram-se na mãe, sob a forma de defesa, não se prestando, pois, à construção de sua própria vida.”
O presente artigo foi concluído durante a semana que antecedeu o Dia das Mães, o que me causou certa estranheza e um secreto sentimento de traição ao furor coletivo e à idealização da Mãe, essa entidade arquetípica que sustenta, nutre, mas que, muitas vezes, destrói e maltrata seus filhos, como a Mãe Terra, a Mãe Natureza e a Mãe “mamãe”. No entanto, assim como quase tudo na vida, as aparências enganam. Esse artigo pode querer falar do Complexo Materno Negativo vivido na esfera do individual, mas pretende, no fundo, exaltar a importância do feminino, estando aqui caracterizado não apenas na figura da Mãe, mas na forma de um valoroso arquétipo que, na atual e aparentemente eterna sociedade patriarcal onde vivemos, tem perdido em fluxo energético para outras representações que parecem atrair adeptos do sexo masculino, feminino e suas inúmeras variações contemporâneas.
Durante toda minha infância, convivi com um pavor constante da morte e com uma forte sensação de que morreria cedo. Essa fantasia de morte era montada todos os dias e, muitas vezes, nos meus momentos de solidão escolhidos ou impostos, cercada de livros, gibis e séries de TV de ficção científica, imaginava, não só a minha morte, mas também a reação dos outros, particularmente da minha mãe. Muitas vezes, morria numa viagem para Marte, como em Perdidos no Espaço! Isso durou muito tempo, até que, dentro de um ônibus indo para a escola, com algo em torno de 9, 10 anos, tive uma experiência “mística” de “quase morte”, se é que posso chamar assim, onde falava para mim mesma (essa era a sensação): “Se você (eu, no caso, falava e ouvia) já está morta, o que está fazendo aqui?” Pronto, isso bastou para que me convencesse de que já tinha morrido e apenas não sabia!
Isso tudo hoje me faz rir, mas também pensar: de onde vinha todo esse medo da morte? Por que tanta insegurança e vontade de pegar o primeiro foguete para Marte? Na falta do foguete, me refugiei nas ruas, onde, estranhamente, me sentia mais segura. Aliás, a rua era meu esconderijo, meu planeta Marte. Eu me dava muito bem com seus habitantes orelhudos e estranhos, mas, ao mesmo tempo, tão parecidos comigo na sensação de abandono. Hoje, lendo esse trecho do livro Ego e Arquétipo (EDINGER, 1972), tenho a nítida sensação de que aqueles momentos de solidão, de mergulho no inconsciente e de aventura nas ruas com meus amigos “marcianos” talvez não fossem completamente sem sentido e vazios:
“Tenho a impressão de que aqueles que vão mais longe no processo de individuação quase sempre passaram por alguma experiência significativa e, na verdade, decisiva, do inconsciente, na infância. Parece ocorrer frequentemente a produção, por parte das inadequações do ambiente de infância ou das dificuldades de adaptação da criança, ou ambas as coisas, de uma solidão e uma insatisfação que fazem a criança retornar a si. Isso equivale a um influxo de libido no inconsciente, que é assim ativado e passa a produzir símbolos e imagens de valor que auxiliam a consolidar a individualidade ameaçada da criança. É frequente o envolvimento de locais secretos ou experiências privadas que a criança sente como exclusivamente suas e que lhe fortalecem o sentimento de valor diante de um ambiente de aparência hostil. Embora não compreendidas conscientemente ou mal compreendidas e consideradas anormais, essas experiências deixam uma sensação de que a identidade pessoal tem uma fonte transpessoal de apoio. Assim, elas podem semear as sementes da gratidão e da devoção à fonte do nosso ser, que só emerge em plena consciência muito mais tarde” (EDINGER, 1972, pág. 383).
Quase seis anos de análise, mais outros tantos de autoanálise, de leituras e estudos para começar a compreender o que se passava comigo dentro da minha dinâmica familiar, onde as crianças eram “livres” e podiam fazer aquilo que bem entendessem, pois a presença paterna ou materna era bastante insuficiente. Nunca julguei meus pais por não terem sido presentes, até porque estavam fora de casa trabalhando e os tempos eram bem diferentes dos atuais, mas também porque minha maior preocupação sempre foi conquistar autonomia, independência financeira e sumir dali, daquele ambiente que, sabe-se lá por que, me repelia e me fazia buscar a reclusão ou a fuga. Sonhava com outros mundos e, claro, com outros planetas! Fui vivendo com aquela sensação que se parecia com algo entre a dor, a inadequação e o vazio e assim que pude, “sumi”, felizmente, não para Marte, mas para os Estados Unidos, o que, de certa forma, era a mesma coisa!
Outros tantos anos se passaram, até que, finalmente, me deparei com o conceito de Complexo e, mais especificamente, com o conceito de Complexo Materno Negativo, desenvolvidos por Jung. Um pouco por acaso, um pouco guiada pela minha atual analista, começo a me informar a respeito e eis que as surpresas e identificações saltam na minha mente, como que vindas das profundezas, e começam a se revelar em sonhos sequenciais. Começo citando um trecho que me marcou muito ao ler a obra Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo (JUNG, 2002), onde Jung descreve um dos aspectos do Complexo Materno Negativo que se exprime na forma de defesa contra a mãe:
“Os três tipos extremos que acabamos de descrever (Identificação com a Mãe, Exacerbação do Eros e a Hipertrofia do Aspecto Maternal) são ligados entre si por muitos estágios intermediários, entre os quais quero mencionar apenas o principal. Trata-se, neste tipo intermediário, menos de uma exacerbação ou bloqueio dos instintos femininos do que de uma defesa contra a supremacia da mãe que prevalece sobre todo o resto. Este caso é o exemplo típico do complexo materno negativo. Seu lema é: qualquer coisa menos ser como a mãe! Trata-se, por um lado, de um fascínio que, no entanto, nunca se torna uma identificação, e, por outro, de uma exacerbação do eros que se esgota, porém, numa resistência ciumenta contra a mãe. Tal filha sabe tudo o que não quer, mas em geral não tem clareza acerca do que imagina ser seu próprio destino. Seus instintos concentram-se na mãe, sob a forma de defesa, não se prestando, pois, à construção de sua própria vida” (JUNG, 2002, CW 9, cap. IV, pág. 94).
Tanta concentração de energia psíquica no movimento de resistência contra a mãe liberaria uma intensa “destrutividade, capaz de cindir, dissociar o indivíduo de si mesmo, e no caso da menina, de uma de suas partes mais preciosas, a feminilidade, o erotismo, a sexualidade, a maternidade. A primeira configuração da destrutividade é a auto-destrutitividade, sendo que essa maquinaria de ataque à mãe e de auto-ataque será depois apontada para os vínculos externos em geral” (MARONI, 2007, pág. 5). Esses “vínculos externos” – sejam eles sociais, matrimoniais, culturais, familiares ou profissionais – terão um efeito repulsivo para essa agora mulher e ela fará de tudo para manter-se o mais longe possível das convenções e dos papéis que esperam que ela assuma. “Quebras de vínculos externos levam a quebras de vínculos internos” (MARONI, 2007, pág. 5), muitas vezes, seguidas de períodos de vazio, sensações de desconexão e de não pertencimento, isolamentos, num círculo vicioso que se repete de tempos em tempos, fazendo com que essa mulher “se livre” dos vínculos construídos com relativa facilidade.
Nessas filhas “que se defendem da mãe verifica-se um desenvolvimento espontâneo da inteligência” (JUNG, 2002, pág. 100), com o intuito de criar um mundo, uma esfera, onde a mãe não tenha lugar. Os isolamentos são constantes e não há compartilhamento dessas descobertas intelectuais com a mãe, no máximo ela trocará com o pai que, se tiver sobrevivido a essa mãe, estará também procurando algum canto pela casa para se esconder onde, com frequência, encontrará a filha, “pois ambos têm a mesma estratégia de sobrevivência: o esconderijo não acessível à mãe” (JUNG, 2002, pág. 100), e ao se defenderem da mulher/mãe, reforçam a presença, às vezes maciça, do pai no psiquismo da filha. O desenvolvimento intelectual, portanto, é acompanhado de uma emergência de traços masculinos em geral, segundo Jung:
“Esse desenvolvimento resulta das necessidades próprias da filha e não visa homenagear um homem que ela queira impressionar, simulando uma camaradagem espiritual. O propósito é quebrar o poder da mãe através da crítica intelectual e cultura superior, de modo a mostrar-lhe toda a sua estupidez, seus erros lógicos e formação deficiente” (JUNG, 2009, CW 9, cap. IV, pág. 100).
Os complexos são pequenas ilhas e cisões, com colorido fortemente afetivo e imagético, capazes de atuar sobre o Ego como uma possessão. Efetivamente, formam-se na relação do Ego com o mundo e seriam como “produtos” de traumas, choques emocionais que, nas palavras de Jung, “arrancam fora um pedaço da psique” (JUNG, 2001, CW 8, § 204). O Complexo Materno Negativo é particularmente poderoso nas meninas e é capaz de marcar toda a vida e o comportamento dessa futura mulher, pois, sendo um “corpo estranho” que provoca sérias cisões, concentra uma quantidade muito grande de energia na função de defesa contra a mãe, dominando a cena psíquica e inibindo os instintos femininos na menina:
“Se, apesar disso, ela casar-se por acaso, seu casamento serve apenas para livrar-se da mãe ou então o destino lhe impinge um marido com traços de caráter semelhantes ao da mãe. Todos os processos e necessidades instintivos encontram dificuldades inesperadas; a sexualidade não funciona ou os filhos não são bem-vindos, ou os deveres maternos lhe parecem insuportáveis, ou ainda as exigências da vida conjugal são recebidas com irritação e impaciência. De certa forma, tudo isso não pertence às realidades essenciais da vida, uma vez que seu fim último é constituído unicamente pela defesa persistente contra o poder materno. A resistência contra a mãe, enquanto uterus, manifesta-se muitas vezes através de distúrbios da menstruação, dificuldade de engravidar, horror da gravidez, hemorragias e vômitos durante a gravidez, partos prematuros, etc” (JUNG, 2009,CW 9, cap. IV, pág. 100).
Agora, algumas questões podem ser levantadas: que tipo de formação do Ego é possível nessa condição subjetiva? Sendo também ele um complexo, como o Ego se desenvolverá quando, no momento mesmo em que se institui, o Complexo Materno Negativo está drenando tanta energia da psique? E a mais inquietante das questões, segundo Maroni: “por que a menina se defende tão violentamente contra a mãe, por que toda a sua energia se direciona para isso? Que tipo de mãe é essa?” (MARONI, 2007, pág. 6).
Minha reação, ao entrar em contato e aprofundar esse conceito através de leituras das obras de Jung e de artigos que analisam e ampliam seus escritos, era sempre a mesma: “Minha nossa, incrível, sou eu, é a história da minha infância, é a história da relação com minha mãe, com meu pai, minha irmã!” Essa identificação não foi isolada, porque percebi que tinha sido também a história de muitas das minhas amigas de infância e adolescência, como se o Complexo funcionasse como um imã que atraía, não apenas afetos subjetivos, mas também objetos do meu afeto: as minhas amizades femininas. Muitas delas são minhas amigas até hoje e, com a desculpa de tomarmos uma cervejinha juntas para relembrar o passado, acabei trazendo à tona algumas dessas questões. Nessas ocasiões, pude perceber que compartilhávamos não só lembranças legais dos jogos e brincadeiras da nossa infância, mas também esse mesmo Complexo Materno Negativo.
A partir daí, não tendo ainda suficientes narrativas terapêuticas que pudessem basear possíveis conclusões, me apeguei aos relatos das minhas amigas. Vimos que nossas mães não foram acolhedoras do feminino, nem em si mesmas, nem na menina, nem como metáfora do mundo, pois eram “extensões sofridas do patriarcalismo, e a identificação com essa mãe representaria a morte (psíquica) da filha” (MARONI, 2007, pag. 6). Nossas mães também não quiseram viver como extensões sofridas de suas mães, sem direito à existência, à autonomia e se rebelaram, elas mesmas, contra aquele feminino ainda mais engolido pelo “patriarcalismo” de um tempo mais remoto. Portanto, quanto mais voltamos no tempo, mais encontramos femininos massacrados, não-vividos, adulterados e abandonados na vida de inúmeras mulheres.
Na minha família isso fica tão claro, que quase poderíamos montar uma árvore genealógica formada por mulheres “fortes” e “solitárias” que sofreram muito com a massacrante sociedade patriarcal, que não só não acolhia como também não reconhecia o feminino e seu potencial de criação/realização como metáfora possível de suas vidas. Mesmo numa época em que a maioria das mulheres permanecia em casa fazendo tricô, cuidando dos filhos e dando ordens aos empregados (quando tinham), as mulheres da minha família já sofriam com a jornada de trabalho dupla: faziam tricô, cozinhavam, cuidavam dos filhos, davam ordens aos empregados (quando tinham) e traziam dinheiro para casa, literalmente, carregando o fardo! Nesse ponto, eu e minhas amigas percebemos que, numa sociedade patriarcal, mesmo cumprindo jornada “tripla”, o feminino como metáfora psíquica a ser vivida continua não sendo valorizado ou acolhido, ao contrário, ele se perde e se afasta das possibilidades de identificação em meio a tantas outras representações de maior importância social. E a história se repete, porque a cultura patriarcal é também representada e replicada pela própria mãe!
A subjetividade dessas mulheres vira uma espécie de sujeito manco, pois a instintividade, uma de suas partes mais preciosas, não se desenvolveu e não amadureceu. “Sem autoestima, recusando-se a si mesmas, e sem sentir o prazer de viver que só uma base própria, instintiva, permite, desenvolverão o que Jung chama de um animus negativo. A primeira característica de uma mulher tomada pelo animus negativo é o agigantamento do mundo das opiniões, sempre prontas para serem usadas como armas de ataque” (MARONI, 2007, pág. 7).
Esse “agigantamento” de um determinado aspecto da personalidade, por si só, já denuncia uma polarização psíquica presente nessa mulher que aloca seus instintos e uma grande quantidade de energia em algum canto de uma trincheira imaginária, atirando contra inimigos imaginários (sendo alguns até verdadeiros), mas poucos desses inimigos poderiam ser configurados como sua “mãe”, como ela descobrirá mais tarde. Tais mulheres, com suas aparentes personalidades fortes, poderão se envolver com relações destrutivas, vivendo, no entanto, as consequências dessas relações no mais absoluto segredo, no esconderijo da infância, jamais revelando às suas mães os sofrimentos da alma e do corpo que vivenciaram.
As cervejas e recordações compartilhadas com minhas amigas de infância só fizeram aumentar a necessidade que sentíamos – e que algumas já tinham tomado à iniciativa de fazer – de “perdoar” nossas mães, porque fica claro que, não só elas, como nós também, não temos consciência do quanto reproduzimos as distorções de uma sociedade patriarcal, do quanto não acolhemos e não respeitamos o feminino, buscando sempre replicar um comportamento que desvaloriza e torna monocromáticos as nuances e os coloridos do ego-corpo-pensamento femininos, aqui unidos, mas dissociados na mulher tomada pelo animus negativo.
No entanto, voltando à citação inicial que também inspirou o desenvolvimento desse artigo, tanta energia psíquica canalizada para um objeto, tamanho sentimento de inadequação e isolamento, também podem criar as bases para a introspecção, um movimento necessário no processo de autoconhecimento, onde essa menina/mulher pode encontrar suas vias de expressão, “colocando no lugar do phallus o uterus, ambos como metáforas da penetração e do acolhimento, o acolhimento do próprio Complexo Materno Negativo e de seus próprios destinos. Quando o furor julgador cede, ou começa a ceder, no seu lugar o pensamento penetrante tende a se desenvolver, indo, falicamente, na direção do obscuro, do ambíguo, do instintivo, do inconsciente – para tentar trazer tudo isso à luz!” (MARONI, 2007, pág. 9).
REFERÊNCIAS:
EDINGER, E.F. – Ego e Arquétipo – Individuação e Função Religiosa da Psique – Ed. Cultrix, 1972.
JUNG, C. G. Obras Completas – Ed. Vozes, Petrópolis [CW 8, II – A Natureza da Psique; CW 9, I – Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo; CW 9, II – Aion], 2002.
MARONI, A. – “A difícil trajetória da mulher no patriarcalismo” – Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., X, 2, 219 -230, 2007.
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Isa Carvalho
Membro Analista em Formação pelo IJEP
Email: isafvc2@gmail.com; Rio de Janeiro