Este artigo tem o objetivo de compreender o papel do Contágio Psíquico no setting terapêutico, desmistificando e reanimando a relação entre cliente e analista.
O espírito de nossa época nos faz conceber a realidade a partir do egoísmo, do individualismo e da alta performance, mesmo para os junguianos, que há muito já discutem o fenômeno da multiplicidade da psique, do impulso ao servir à coletividade e a ideia de que perfeição não é sinônimo de totalidade.
Como analista, é difícil desvencilhar-se de uma ilusão de responsabilidade de responder questões proferidas pelos clientes, como “o que eu faço?”, “o que esse sonho significa?”. Quem nunca se pegou pensando e exigindo de si uma palavra naquele silêncio aparentemente interminável no decorrer da sessão. Esse impulso de resolução nos parece, analisando fugazmente, um sintoma desse espírito da época. Talvez, por isso, um dos maiores desafios do analista é despojar-se das vestimentas do conselheiro, do curador, do resolutor e da ilusão de poder que sua poltrona nos concede.
Mas não somente o analista. Muitas psicologias, pautadas ainda pelo espírito da época, tornam-se cegas àquilo que acontece num campo inconsciente entre cliente e analista. Ou, quando percebem aquilo que acontece inconscientemente, fogem como se estivessem diante do diabo. E talvez, essa seja uma metáfora interessante, afinal, o diabo é Lúcifer, o portador da luz, que ao impulso do Si-mesmo, vem desestruturar uma possível persona rígida do analista.
O que seria “aquilo que acontece inconscientemente?”
Não podemos desconsiderar que ao escolher um analista, já existe de antemão uma expectativa, uma fantasia, uma projeção do cliente. E, ao entrar em contato com o cliente, é humanamente impossível afirmar que o profissional está em uma posição de neutralidade e imparcialidade diante do analisando. Ao meu ver, a expectativa do indivíduo de se tornar cliente de um determinado analista já evoca algo no próprio analista.
Isso acontece, pois o egoísmo e o individualismo são relativas ilusões.
As raízes da psique de cada pessoa se entrelaçam da mesma forma que as raízes das árvores se entrelaçam numa floresta. Reconhecemos a floresta não como diversas árvores, mas como um coletivo de árvores, ou melhor, um organismo vivo. As expectativas não são somente conscientes, pelo contrário, muitas vezes elas não passam sequer pelo campo da consciência, permanecendo inconscientes e atuantes na vida do indivíduo – são também raízes entrelaçadas.
Por isso mesmo, a ilusória neutralidade do analista, na teoria junguiana, significa negar um dos principais princípios da Psicologia Analítica: o coletivo.
A limitação da consciência no tempo e no espaço é uma realidade tão avassaladora, que qualquer desvio desta verdade fundamental é um acontecimento da mais alta significação teórica, pois provaria que a limitação no tempo e no espaço é uma determinante que pode ser anulada. O fator anulador seria a psique, porque o atributo espaço-tempo se ligaria a ela, consequentemente, no máximo como qualidade relativa e condicionada. Em determinadas circunstâncias, contudo, ela poderia romper a barreira do tempo e do espaço, precisamente por causa de uma qualidade que lhe é essencial, ou seja, sua natureza transespacial e transtemporal [coletivo]. (JUNG, OC 8/2, § 813)
Se tomarmos essa ideia de um coletivo vivo, abandonando a ideia individualista, compreenderemos que a relação entre cliente e analista antes mesmo de iniciar-se conscientemente já acontece.
O encontro analítico nada mais é do que uma possibilidade de caminho para que as imagens produzidas no subsolo eclodam.
Se decuparmos essa possibilidade de caminho encontraremos o vínculo, a empatia e a co-transferência que surgem no decorrer da análise. Não é possível saber quais destes vem primeiro, pois nos parece que estes três fenômenos estão inter-relacionados e reatroagem entre si – são, portanto, um continuum fenomenológico. Sabemos também, de acordo com meu livro “Contágio Psíquico” (TORRES, 2021), que estes três fenômenos são os possibilitadores da contaminação psíquica, seja nas relações interpessoais, em grupo, em sociedade ou na humanidade.
O vínculo que queremos dar a entender é como um liame, um laço, uma aliança, uma confiança estabelecida entre cliente e analista no setting terapêutico. Confiar é con- (juntos), fiar (tecer). É reconhecer que as raízes entre analista e clientes estão enlaçadas. Poderíamos até dizer que é mais do que isso: é reconhecer que essas raízes convergem para uma raiz em comum. Na análise, tecemos em parceria um ambiente seguro e sigiloso em que o cliente possa reconhecer e estar aberto às imagens que podem surgir e estar confortável a expressá-las para o analista. Este movimento é uma comunhão, no sentido de ir tecendo até encontrar esta única raiz.
A contaminação psíquica ocorre de antemão devido a essa única raiz.
Isto é, a contaminação não é em cadeia – de um para o outro, mas sintônica (ou sincronística), emerge dessa única raiz ao mesmo tempo no cliente e no analista. Para surgir este processo, é imprescindível que o analista retire o seu jaleco. É uma exigência natural e humana provinda do cliente que o analista se coloque como um ser humano. C. G. Jung aponta que “esta exigência deveria ser satisfeita, pois o homem, totalmente sem qualquer espécie de relação humana, cai no vazio” (JUNG, OC 16/2, §285). Este vazio, para o presente artigo, pode ser considerado como uma rua sem saída, ou seja, a análise não transcorre.
A empatia não é de maneira alguma uma solidariedade ou uma simpatia. Muito menos é um “colocar-se no lugar do outro” como o senso comum profere aos ventos. Todos esses falsos sinônimos de empatia a concebem como se fosse um exercício cognitivo ou lógico. Como explico em meu livro “Contágio Psíquico”, empatia pode ser entendida a partir do verbo “empatar”. É necessário certa correspondência nas vivências para a empatia se estabelecer. Como num jogo em que houve empate, ambos os times obtiveram um resultado igual, mas se esforçando de formas diferentes. Ambos devem lidar com angústia, frustração, sentimento de dever cumprido ou não. As emoções provenientes do empate correspondem-se entre si, mas possuem suas respectivas vivências. Conscientemente, não é possível detalhar, quantificar ou categorizar tudo o que se passa ou se passou nestas vivências, mas é possível reconhecer a correspondência.
Esta relação de pessoa a pessoa é a pedra de toque de toda análise que não se dá por satisfeita com um pequeno resultado parcial ou que emperra sem resultado algum. Nesta situação psicológica o [cliente] se coloca diante do [analista] em igualdade de condições, com os mesmos direitos e com o mesmo e impiedoso espírito crítico que ele próprio teve que suportar por parte do médico no decorrer do tratamento. O [analista] deveria, pois, abrir espaço ao [cliente], para que este o critique livremente, pois o [cliente] precisa sentir-se, de fato, humanamente em pé de igualdade. (JUNG, OC 16/2, §290)
O pé de igualdade, isto é, o empate e as diferentes formas de vivências criam uma relativa dissonância entre analista e cliente ao analisar determinados momentos e acontecimentos da vida do analisando. Como estão em comunhão, a reatividade dá espaço para uma proatividade ao se revisitar os incômodos e queixas do analisando, gerando pontos de vistas diferentes e possibilitando que ambos vislumbrem os momentos e acontecimentos de tensão de formas diferentes. Uma vivência acaba contaminando a outra. Isso é, de certa maneira, circum-ambular aquilo que incomoda o analisando, o que pode fazer com que ele acolha seu incômodo em diferentes perspectivas, criando a possibilidade para uma ampliação da consciência. E, por fim, encontrando um propósito para o seu sofrimento.
Não só nos contaminamos pelas vivências, mas pela imagem do outro também. A co-transferência, termo proposto por Waldemar Magaldi, é a conjunção dos termos transferência e contra-transferência da Psicologia Analítica. Também ocorre de forma inconsciente e, por isso mesmo, é tanto o diabo quanto o ouro da análise. Ela consiste em diversas projeções entre analista e cliente, criando uma relação ilusória, não menos importante, que deve ser compreendida à medida em que o vínculo e a empatia se estabelecem, isto é, a intimidade é criada.
Aprendi que é um perigo sério fechar-se dentro deste jogo. Só temos a ganhar com a desmistificação da relação analítica, porque ela escraviza tanto o analista como o analisando. […] quando o terapeuta se humaniza na relação com o outro, este tem a possibilidade de se abrir e de viver seu desenvolvimento (BONAVENTURE, 1985, p. 86).
Essa compreensão não se esgota, pois, as projeções ocorrem recorrentemente (e é assim que nos relacionamos), mas, de uma forma criativa, pode rumar para uma auto-análise da análise. A dinâmica da co-transferência conduz o analista a se contaminar por conteúdos psíquicos íntimos do cliente, bem como o cliente se contamina pela imagem do analista. Não é, portanto, o indivíduo analista per se, mas a imagem do analista que está no jogo da contaminação. O contrário também ocorre: o cliente não é o indivíduo per se mas a imagem de cliente do próprio analista. Essa dinâmica faz o analista reconhecer o seu ferido interior e, simultaneamente, o cliente acaba também por reconhecer o seu curador interior. Quantas vezes não nos pegamos, sozinhos, fantasiando uma conversa com nossos analistas e com nossos clientes?
“Um verdadeiro analista, antes de tudo, precisa expor sua alma, senão ficamos apenas no encontro das personas” (MAGALDI, 2019)
C. G. Jung afirma que nessa dinâmica de contaminação psíquica a imagem de analista e cliente podem remontar estruturas relacionais mnêmicas (imagens), isto é, do passado, fazendo com que o cliente perceba o analista (e vice versa) como pai, mãe, filho, amante, cônjuge ou qualquer outra possibilidade criativa e/ou destrutiva que o inconsciente trouxer. São, normalmente, figuras que tiveram influência na história do cliente e do analista. Vale a ressalva: se a co-transferência ocorre de maneira destrutiva e não é trabalhada, confrontada e discutida, sem que ambos, cliente e analista, coloquem-se em prontidão para compreender a contaminação dos conteúdos inconscientes e a relação estabelecida, a análise é interrompida, criando um enorme perigo e possíveis consequências desastrosas.
Tais efeitos sobre o médico ou a enfermeira, dependendo das circunstâncias, podem ir muito longe. Sei de casos em que em situações-esquizofrênicas-limite foram assumidos breves intervalos psicóticos, acontecendo que precisamente neste momento os pacientes gozam de um bem-estar particular. Pude observar até um caso de paranoia induzida em um médico que fazia o tratamento analítico de uma paciente com mania de perseguição latente em estágio inicial. Isso nada tem de espantoso, uma vez que certos distúrbios psíquicos podem ser altamente contagiosos, quando o próprio médico possui uma predisposição latente (JUNG, OC 16/2, n.r. 17).
C. G. Jung (2011b,§345) discorre que isso ocorre quando o analista possui uma ferida aberta semelhante a do cliente, que não foi trabalhada em análise e supervisão. Por mais que o analista invoque sua ilusória autoridade, de nada adianta, pois a contaminação é de complexos e imagens arquetípicas, isto é, conteúdos autônomos, por vezes avassaladores, e podem possuir e contagiar o analista subitamente.
E contra isso não adiantam certificados, jalecos ou poltronas.
Somente a consciência é capaz – não de criar uma barreira anti-contágio, mas de ab-reagir ao que já foi contaminado. Se o analista lançar mão de sua ilusória autoridade, seu trabalho não passará de um blefe intelectual, pois, como poderia ajudar o [cliente] a superar sua inferioridade doentia, se sua própria inferioridade é tão evidente? Como pode o [cliente] sacrificar subterfúgios neuróticos se vê que o médico brinca de esconder consigo mesmo, como que receando que a sua inferioridade seja descoberta no momento em que deixar cair a máscara profissional da autoridade, da competência e da superioridade no saber? (JUNG, OC 16/2, §288)
Isso leva-nos a concluir que o fenômeno do Contágio Psíquico é de grande importância para a análise pois ele é o caminho que leva ao ouro alquímico. Se pudermos refletir sobre a contaminação estabelecida de antemão entre analista e cliente, isto é, quando cliente e analista estabelecem uma comunhão, reconhecem suas dissonâncias vivenciais e os conteúdos projetados entre si e podem refletir sobre isso com alma, a análise pode rumar para um processo criativo de evolução para ambos, cliente e analista.
Leonardo Torres – Analista em Formação IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Bibliografia
BONAVENTURE, Leon. Entrevista. In: PORCHAT, Ieda. & BARROS, Paulo.
MAGALDI, W. Autoanálise da Injúria Cardíaca. https://www.ijep.com.br/artigos/show/autoanalise-da-injuria-cardiaca
JUNG, C. G. A natureza da psique. Editora Vozes Limitada, 2011a. 8532641342.
JUNG, C. G. A vida simbólica. Editora Vozes Limitada, 2011b. 8532641245.
JUNG, C. G. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência. Editora Vozes Limitada, 2018. 8532645321.
TORRES, L. Contágio Psíquico: a loucura das massas e suas reverberações na mídia. Eleva Cultural, 2021. 6599392105.
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