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Corpo vivo em movimento

“Conheço a vida somente sob a forma de um corpo vivo (…)” (Jung – §605 Oc 8/2)

Qual meu lugar no mundo? Que corpo é esse? Que humanos somos nós nesse mundo desalmado? Será que carrego em mim recursos para trilhar essa jornada? Que recursos posso buscar nesse caminho? Essas são perguntas que muitos de nós fazemos no dia a dia, e que serão ampliadas neste artigo.

A sociedade tende a nos calar na expressividade de nossa multiplicidade psíquica que valoriza e alimenta o monoteísmo da consciência que nos leva a adoecer.

Sem mexer, sentir e habitar o corpo para despertá-lo no seu potencial criativo, congelamos a alma e nos afastamos de nossa humanidade.

Segundo Hillman, “O mundo se revela em formatos, cores, atmosferas, texturas – uma exposição de formas que se apresentam. Todas as coisas exibem rostos, o mundo não é apenas uma assinatura codificada para o ser decifrada em busca de significado, mas uma fisionomia para ser encarada. Como formas expressivas, as coisas falam: mostram as configurações que assumem. Elas se anunciam, atestam sua presença: ‘Olhem, estamos aqui’” (Hillman: 2010,90)

O corpo nos traz a condição humana por carregar limites de forma clara na própria finitude da carne, e nos revela algumas verdades de nossas dinâmicas internas psíquicas através da dor e dos sintomas que são expressões do Self.

Vivemos numa cultura patriarcal onde a racionalidade excessiva nos leva a dessacralização da vida emocional e naturalmente o corpo, como parte inseparável da psique sofre, tornando-se uma vestimenta como se estivesse a parte.

O corpo não é meu, o corpo sou eu.

Se imaginarmos nosso corpo como uma grande massa densa/sutil, podemos arriscar que ele vai se moldando de acordo com o estilo de vida e com a cosmovisão, desenvolvendo uma linguagem própria.

Sem o processo de corporificação não faz sentido à vida no planeta. Segundo Jung, no livro Corpo e Individuação “qualquer coisa experimentada fora do corpo, por exemplo, não é experimentada, a menos que incorporemos, porque o corpo significa o aqui e agora.”

O momento atual nos desponta para um olhar no futuro, o novo mundo, ao mesmo tempo que nos agarramos a um passado que existe como histórias em nós.

Futuro e passado se chocam no exato momento presente. É possível hoje dar um salto pela criatividade que aflora como recurso para lidar com a crise. Crise de um corpo que se encontra isolado diante de uma tela na relação virtual nesse mundo pandêmico.

No isolamento, necessário, fomos obrigados a mergulhar no silencio e na solidão. Com o distanciamento físico, o silêncio passa a ser um dos caminhos de acesso a criatividade.

Na minha visão, a dança, que chamo de movimento expressivo, é um recurso interessante para silenciar as palavras e a razão, estimulando um leque de novas possibilidades e despertando a sabedoria do corpo que é criativo. Assim, podemos entrar em contato e nos mover por meio desse “fervilhar” de emoções que por vezes parecem contraditórias, mas aquecem e dinamizam a energia psicofísica.

Na falta do outro, encontro-me com “outros de mim” e a escuta se faz necessária, despertando naturalmente novos movimentos corporais e redirecionando a energia psíquica de forma orgânica nessa nova rotina.

O corpo padece de contato e encontros. Diante dessa falta, surge a arte da dança, que toma o corpo, abrindo caminhos possíveis de ajuda no restauro das dores, nos conduzindo a outros espaços de nós.

Com tantos temores e dores ligados ao tema da morte e as faltas vividas hoje; nos damos conta da importância da relação com outros corpos e passamos a valorizar mais o contato físico através do toque.

Somos obrigados a habitar nossas casas.

“Neste instante, esteja você onde estive, há uma casa com seu nome. Você é o único proprietário, mas faz tempo que perdeu as chaves. Por isso fica de fora, só a vendo. Não chega a morar nela. Essa casa, teto que abriga suas mais recônditas e reprimidas lembranças, é o seu corpo” (Bertherat, Thérese. P.1)

Fica claro o quanto negligenciamos nossa relação com o corpo como morada e expressão de vida.

Será que não é hora de repensar o papel da educação formal e informal no quesito da atenção ao repertório e linguagem corporal?

Jung fala do sentido da vida e do Self. Estamos a serviço do Self. Para isso precisamos da experiencia corpórea completa hoje. A incoerência humana da mentalidade moderna nos leva a aprender desde cedo a artificialidade nas atitudes, criando personas, mascaras que nos plastificam literalmente, que enrijecem nosso corpo, empobrecendo a expressão e espontaneidade do viver.

Acreditamos que um corpo musculoso com expressão performática nos protege sem perceber que pode nos enrijecer e nos distanciar do que emociona e toca. Iludimo-nos ao ingerir pílulas e hormônios que nos levam a ferver e esfriar ao sabor dos nossos desejos. Nem só fit, nem só intelecto, mas um corpo almado.  

 Mas o corpo não mente, e a verdade da totalidade se expressa na busca de unidade se contrapondo a educação que recebemos.

Segundo Wilhelm Reich, o corpo é o inconsciente visível.

Não é possível dividir, separar o corpo da alma, assim como não separamos individuo do corpo social.

Essa é a ideia de um ser múltiplo e uno.

Essa ideia da divisão é diabólica (diabólos é o que divide) e se contrapõe a ideia de união que representa a ideia do divino (divino é o que unifica e vincula).

Ampliar a escuta na busca de uma visão mais simbólica é também possível, pautada na escuta do corpo pelos sintomas, movimentos e postura física.

“… Porque o corpo é uma realidade visível e palpável, que corresponde mais à nossa capacidade de expressão” (Jung § 605 Oc 8/2)

A escuta do corpo é extremamente ampla, guardamos na pele que nos reveste a história que nos aconteceu até o momento presente. O corpo é arquetípico e carrega, portanto, a coletividade e ancestralidade em suas funções e expressões que definem sua linguagem.

“O inconsciente coletivo compreende toda vida psíquica dos antepassados desde os seus primórdios” (Jung-oc8/2 § 30)

Portanto o corpo é um templo sagrado que carrega em si a história da humanidade e a centelha do divino. É espaço de contemplação e precisamos desenvolver com ele uma relação amorosa como nos diz Le Loup.

“Quando você toca alguém nunca toque só um corpo. Quer dizer, não esqueça que toca uma pessoa e que neste corpo está toda a memória de sua existência. E, mais profundamente ainda, quando toca um corpo, lembre-se de que toca um sopro, que este sopro é o sopro de uma pessoa com seus entraves e dificuldades e, também, é o grande sopro do universo. Assim, quando toca um corpo, lembre-se de que toca um Templo. Muitos dentre nós nunca foram tocados como templo ou como sopro e nem mesmo, em certos casos, como uma pessoa. Muitos foram tocados somente como pedaços de carne animal, apenas como coisas. Então podemos compreender o sofrimento, as marcas que ficaram inscritas sobre esse corpo”. (Le Loup, Jean Yves-pg 26.)

E segundo Jung o corpo é animado pela psique.

“…Provável que psiquismo e o físico não constituam dois processos paralelos entre si, mas dois processos unidos pela interação do corpo e alma, …” (Jung Oc 8/1 § 33.) 

“O princípio da constância, pelo contrário, indica que a energia total permanece sempre igual a si mesmo sendo, por conseguinte, incapaz de aumentar ou diminuir “ (Jung- Oc 8/1  § 34)

Nesse sentido entendo que o trabalho com a psique através do corpo é possibilidade de mobilizar a energia psíquica da totalidade do individuo de forma lúdica, permitindo ao ego se relacionar com sensações e imagens evocadas nesse momento, ajudando o ego no gerenciamento dos complexos de forma menos unilateral, levando a possível redirecionamento da energia psíquica e flexibilização da consciência, lembrando que o corpo é expressão do ego.

O Self usa o corpo para tirar o ego do monoteísmo da razão.

Falar em corpo é falar da própria expressão do ego que segundo Murray Stein, no livro mapa da alma “O ego pode ser compreendido em duas bases, uma representa por uma base somática e corpórea, e a outra, por uma base psíquica. Ambas são constituídas por diversas camadas, que existem parcialmente na consciência, mas sobretudo no inconsciente…”

Para Jung, o ego é um dado complexo formado primeiramente por uma percepção geral de nosso corpo e existência e, a seguir, pelos registros de nossa memória.

Portanto, a consciência está também no corpo e o Self se realiza na sua materialidade. Vamos lembrar que, quem individua é o ego a partir desse diálogo entre corpo e alma.

Jung diz que o processo de individuação é um processo em espiral ascendente, assim como o amor, segundo Le Loup, também o é. Ao estudar a dança oriental como expressão e método curativo, autores também falam que ao dançar a energia corporal se move em espiral ascendente, sobe em forma de calor e desce em forma de água.

Quando nossa atenção está no movimento, silencia-se a mente, o ego rebaixa as defesas e adentramos em outras camadas profundas da psique que nos apresentam novos conteúdos.

O movimento cala as palavras dando voz a alma.

O silêncio interior nos possibilita o “sentir” e desperta a poiéses do corpo, tornando o corpo um lugar de criação.

Segundo Maria Fux, diante do silêncio que rodeia os que ouvem (que nunca é total), é caminho para rastrear outra dimensão do movimento, e de nossos corpos, nossa mente, e aquilo que somos como seres humanos. Esse mergulho nos torna mais sensíveis.

“Sem amor, entrega, fé, não há encontro” (Fux, Maria, pg. 98)

Nesse sentido, o corpo como potencial não racional, mas sim criativo, carrega semente de vida animada pela psique e estimulado por imagens, sons, movimentos, palavras e pelo próprio silêncio.

Através da percepção corporal e de seu movimento podemos acessar um nível de experiência da totalidade e conexão com o próprio planeta, que é o corpo de Gaia.

Jung resgatou da alquimia medieval o conceito de Unus Mundus que significa mundo unido e mundo unitário. É uma cosmovisão que indica a existência de uma unidade subjacente em toda natureza material e imaterial.

Esta experiência de unidade, dá-se quando o tempo se condensa em uma unidade objetiva intemporal, isso ocorre nas vivências ligadas ao sagrado, nos atos da criação artística, nas imagens espontâneas produzidas pelos sonhos e nos rituais da dança.

Para atingir esse nível de vivência, é primordial reconhecer a própria biologia para lidar com a biologia do planeta. Me conecto assim através da respiração e do ritmo na busca de uma consciência mais ampla e ecológica.

E quem somos? Somos complexos frutos da miscigenação de povos. Somos seres em movimento constante com gestual que carrega em seu repertório a mesma miscigenação da capoeira, dança indígena e a rigidez do ballet europeu além de escolas orientais que chegaram até nós.

A dança é a expressão mais antiga da humanidade. 

Segundo Erick Neumann no livro a grande mãe; “A dança como expressão do acesso natural do homem primitivo, desempenha papel crucial. A totalidade de psique corporal era literalmente posta em movimento. Assim, era exatamente durante a dança – principalmente a dança excitante, estimulante e orgiástica que se prestavam honras à Grande Deusa.” (Neumann – 2006 página 261)

Hoje o campo de estudo do movimento corporal como expressão de alma é extremamente vasto.

Quando o movimento corporal nos transpassa através do “dançar livre”, a emoção fica estampada concretamente e coagula nos gestos aquilo que me afeta.

É um potente recurso para dialogar com aspectos sombrios que se tornam verdadeiros conteúdos que nos assombram quando rejeitados pelo ego.

“A sombra constitui um problema de ordem moral que desafia a personalidade do eu como um todo, pois ninguém é capaz de tomar consciência desta realidade sem dispender energias morais. Mas nessa tomada de consciência da sombra trata-se de reconhecer os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade. Este ato é a base indispensável para qualquer tipo de autoconhecimento e, por isso, no geral, ele se defronta com considerável resistência.” (Jung § 14 Oc 9/2)

O corpo no trabalho com o movimento é visto como simbólico e passível de aproximar inconsciente da consciência de forma lúdica, ajudando a libertar o ego das correntes que o amarram ao complexo dominante. É possível abrir mão do julgamento condenatório. Muitas vezes é uma experiência visceral que tende a mudar a percepção do indivíduo, resgatando as forças de energia feminina (ligadas a Eros) que se encontram pressionadas nas profundezas do submundo em detrimento da consciência patriarcal.

A linguagem corporal da dança é a expressão do corpo individual e social através de um gestual especifico como grito de liberdade que se contrapõe aos preceitos sociais muitas vezes. Por exemplo, o “batidão” e o “funk”, que da opressão da vida na periferia surgem como linguagem artística coletiva.

Nossos gestos e nossa organização somática nos mostram e retratam aspectos que permanecem sombrios em nós

Quando dançamos e nos soltamos livremente na música, a energia psíquica é mobilizada e estimula partes de nosso corpo, despertando emoções que ecoam em cada célula e emanam energia para além delas através de determinados movimentos. Essa energia ultrapassa o corpo mesmo quando esse cessa o movimento. É como se a alma continuasse a dançar.

Tudo se inicia com a respiração. A consciência do respirar me leva a um estado de presença no agora. Revivifico e início o processo de conexão com o próprio planeta, que é de onde se inicia a vida.

Através da dança trabalho o ritmo, a pulsação e a respiração que vão muito além da anatomia, nos falam de emoções.

O trabalho busca a liberdade do movimento e a ampliação da consciência de forma global, que vai além do instinto e do literal.

Somos seres em desenvolvimento e evolução, surgimos da indiscriminação da consciência quando nossos corpos apenas flutuavam em águas uterinas.

Logo depois da primeira separação, com o sopro da respiração pudemos evoluir para um rastejar, engatinhar e levantar até andar de forma ereta. Todo o processo neurológico se desenvolve junto de forma inseparável com o desenvolvimento da psique.

De pé, com pés no chão, inicia-se outra forma mais elaborada de relação com a própria realidade objetiva e subjetiva.

Jung nos traz a potência da dança que envolve o ritmo como recurso inato.

“… A regressão da libido faz com que no ato ritual da dança os passos sejam quase uma repetição do “espernear” infantil. Este último está associado à mãe e à sensação de prazer, e ao mesmo tempo representa o movimento que já é executado na vida intrauterina. O pé e o ato de pisar têm significado gerador, isto é, a reentrada no ventre materno; portanto, o ritmo da dança coloca o dançarino num estado inconsciente (“ventre materno”) …” (Jung, O.c. ano 1989 §481)

Além da conexão através do ritmo, precisamos estar atentos às carências e excessos quanto ao Tônus muscular e colocação do peso em partes do corpo para nos mantermos em uma relação mais harmoniosa.

Ocorre assim uma organização somática, como se fosse uma unidade funcional semelhante ao movimento da psique, onde observamos que todo excesso em um aspecto da consciência revela uma falta em seu aspecto oposto no inconsciente.

Falar de corpo é falar de movimento, tensão e ritmo (pulso) assim como na psique ficando claro o quanto somos seres psicossomáticos.

Aos poucos no processo de evolução em termos de consciência somática, a automaticidade do corpo e os gestos funcionais se transformam em gestos mais pessoais, menos autômatos, ajudando na mudança da cosmovisão e postura diante da vida.

O mesmo corpo que adoece e enrijece também restaura. Olhar para a reação do corpo diante de determinadas situações e a consciência dos movimentos gerados, a respiração, a aderência dos pés ao chão e a atenção às imagens que surgem são um bom começo para se trabalhar com movimento expressivo.

Dançamos imagens e emoções. Dançamos a vida e a morte, o tempo, o amor e toda nossa história.

Essa é uma das visões do movimento e da dança no espaço analítico como recurso arteterapêutico, desenvolvendo nossa capacidade criadora em transformar movimento corporal em gestos e danças, resgatando algo que antes se encontrava embotado.

A corporalidade nos traz muitas sensações palpáveis de fragilidade, limites, prazeres e liberdade, de forma sensorial inquestionável que nosso “eu ideal” muitas vezes não aceita.

As atividades no setting terapêutico caminham no sentido da quebra de pré-conceitos em relação ao próprio corpo através da expressão, e da dança livre, aproximando os movimentos aos do dia-a-dia.

Segundo Klaus Vianna, bailarino e coreógrafo, no livro A Escuta do Corpo, de Jussara Miller, se o corpo não estiver acordado é impossível aprender seja o que for.

O trabalho contribui para o despertar da sensação de pertencimento a si, a coletividade e ancestralidade da qual fazemos parte.

O corpo com arte realmente salva e é capaz de resgatar a alma de lugares extremamente sombrios.

Resgatar nosso artista interior é ver o mundo de ponta cabeça.

Ana Paula Z. Maluf – Membro didata em formação pelo IJEP

Waldemar Magaldi – Analista didata

Referencias:

Jung, Carl Gustav. A energia Psíquica. Ed. vozes (O.c. de C. G. Jung, v. 8/1)

Jung, Carl Gustav. A natureza da psique. Ed. Vozes (O.c. de C.G Jung, v.8/2)

Jung, Carl Gustav. Aion. Ed. Vozes (O.c. de C.G Jung, v.9/2)

Jung, Carl Gustav. Símbolos da transformação. Ed. Vozes (O.c. de C.G Jung, ano 1989)

Hillman, James. O pensamento do coração e a alma do mundo. Campinas: Verus, 2010

Neumann, Erich. A grande mãe. Ed. Cultrix (ano 2006)

Stein, Murray. Jung o mapa da alma.Ed. cultrix

Fux, Maria. Dançaterapia. Ed Summus (4° edição)

Bertherat, Thérésebe. O corpo tem suas razões. Ed. Martins fontes

Miller, Jussara. A escuta do corpo. Ed.summuns (2° edição)

Leloup, Jean Yves. O corpo e seus símbolos. Ed. Vozes (22° edição)

Zimmermann, Elizabeth. Corpo e individuação. Ed.Vozes

Miller, Jussara. A Escuta do Corpo – Sistematização da Técnica Klauss Vianna. Summus editorial

Ana Paula Maluf – 10/11/2021

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