Resumo: Este artigo é a tentativa de traçar um paralelo entre o enfrentamento do medo, a exploração de limites e autoconhecimento sob a ótica da Psicologia Analítica. Essa integração visa à compreensão de como experiências de risco, ou até mesmo esportes radicais servem de catalisadores para o desenvolvimento pessoal, podendo funcionar como um sistema de compensação para prorrogar ou evitar o aprofundamento da conexão com o mundo interior.
A busca por experiências radicais e novas aventuras têm ganhado crescente popularidade nas últimas décadas.
Essa tendência parece estar ligada a várias mudanças sociais, culturais e psicológicas que moldam o comportamento humano contemporâneo.
Caracterizada por rotinas monótonas e crescente urbanização, a vida moderna se vê as voltas em um ambiente estressante e desconectado da natureza. As atividades de aventura oferecem uma oportunidade para romper com esse cotidiano.
Não há dúvidas sobre os benefícios físicos e mentais que existem na conexão do ser humano com a natureza, onde a busca pelo novo pode representar um engajamento ativo no estímulo da criatividade e capacidade de explorar, e ainda, superar obstáculos em atividades extremas poderia estar relacionado a uma maior capacidade no enfrentamento dos desafios da vida cotidiana. Acredito que poderíamos traçar aqui um paralelo sobre o enfrentamento do medo, exploração de limites e a contribuição para o autoconhecimento, sob a ótica da Psicologia Analítica.
Com um pouco mais de calma, enxergamos o outro lado da moeda, um cenário que pode se transformar em problema, quando falta planejamento e preparo adequado para as experiências.
Os últimos acontecimentos, envolvendo quedas de balões no Brasil e ainda o acidente na perigosa trilha de um vulcão na Indonésia, abrem espaço para reflexões e inúmeros questionamentos.
Este estudo também nos aproxima da tentativa de compreensão sobre as reais motivações que levam indivíduos a se arriscarem em atividades sem o devido conhecimento, preparo ou ainda a falta de adequada crítica sobre as implicações de possíveis falhas na segurança de um modo geral. Seriam estas experiências compensatórias?
O mundo parece estar de cabeça para baixo quando observamos que a vida de pessoas pode estar em segundo plano, ofuscada pela supremacia do comercio e a venda agressiva de experiências turísticas. A incessante busca por lucro e exploração do turismo como um produto comercial, transformam experiências autênticas em mercadorias, fazendo com que a verdadeira essência da vivência e da conexão com o entorno não seja prioridade. Esse fenômeno não apenas desumaniza as interações sociais, mas também aliena os indivíduos de suas próprias vivências.
Somos convocados agora a desafiar novas formas de perceber o mundo, pois aquilo que é divertido, simples e com sentido, pode estar tomando distância de um propósito real.
Antes de avançarmos é importante destacar que não há intenção aqui de oposição, muito menos desmerecimento aos amantes de esportes radicais, bem como aqueles que apreciam experiências de risco. Na verdade, estas atividades podem proporcionar grande satisfação e experiências profundas e enriquecedoras. Um exemplo emblemático disso foi à atuação de mergulhadores amadores que, com coragem, desempenharam um papel crucial no resgate das crianças presas em uma caverna na Tailândia, muito bem documentado em “The Rescue” (2021), feito esse, que ressalta não apenas as habilidades e a paixão dos praticantes, mas também a capacidade de unir as pessoas em situações de risco e solidariedade. Portanto, ao abordar os riscos, é igualmente necessário reconhecer pontos positivos e suas contribuições.
Porém aqui, buscamos entender o que de fato estaria por trás do anseio de uma intensa emoção? Uma fuga necessária? Compensações devido a rotinas maçantes, monótonas ou até mesmo complexas? Para Jung, o medo, que é inerente à natureza humana e considerado uma emoção, poderia surgir do conflito entre o consciente que reprime e o inconsciente que revela. Ao falar da questão do medo cita o que conhecemos em sua obra por sombra.
O inconsciente pessoal contém desde memórias reprimidas, lembranças perdidas, até percepções dolorosas, que não foram intensas o suficiente para alcançar a consciência; ou seja, estamos falando de algo que corresponde à sombra. (JUNG, 2013)
Traz ainda, a importância do processo de tomada de consciência da parte inferior da personalidade. (JUNG, 2014)
Sobre o temido encontro consigo mesmo, encontro este que necessita de coragem para enfrentar tudo o que demais desagradável nos habita, Jung, (2016) fala sobre a evitação que acontece a qualquer custo, principalmente nas projeções que fazemos a nossa volta. A sombra está viva em nossa personalidade e quer sempre participar, não sendo possível anulá-la de forma alguma. A figura da sombra personifica tudo aquilo que nos incomoda e não reconhecemos em nós mesmos.
São aquisições da existência individual, os conteúdos do inconsciente pessoal. A sombra constitui um problema de ordem moral, que desafia a personalidade do eu como energia moral. Sem isso é impossível qualquer tipo de autoconhecimento. (JUNG, 2015)
Uma ideia de que essas atividades seriam como compensações para desafios pessoais. A busca por experiências emocionantes pode ser vista como uma maneira de ignorar a necessidade de olhar para dentro, fornecendo uma descarga de adrenalina que serve como uma distração momentânea dos dilemas internos. Essa busca, muitas vezes é percebida como liberdade, mas pode ser apenas um escapismo.
É muito maior do que podemos imaginar o número de pessoas que tem medo do inconsciente: “Tais pessoas tem medo até da própria sombra.”.
[…] E para curar-se tal caso, devemos encontrar um caminho através do qual a personalidade consciente e a sombra possam conviver.
JUNG, 2013 §132
A sombra é inadequada e incômoda, mas não é de todo mal.
Jung, 2002, também nos lembra da necessidade do medo para se proteger. Sobre o medo do inconsciente, fala sobre um sintoma relacionado à falta de adaptação, onde o homem estaria sempre à procura de tarefas, evitando momentos de maior contemplação e contato com o mundo interior, bem como dos possíveis ataques de seus conteúdos.
A busca por adrenalina pode ser uma forma de se conectar com a vida, mas deve ser equilibrada com uma rica exploração interna de nossas sombras e de nossa psique. Em última análise, a verdadeira aventura pode ser aquela que nos leva para dentro, onde reside a fonte de nossa autenticidade e crescimento pessoal.
De suma importância para o desenvolvimento psicológico, clarear o sombrio abre as portas para um processo de compreensão que pode facilitar a individuação. (JUNG, 1985)
O medo das emoções do inconsciente é tão forte, que obrigou o homem civilizado a desenvolver a consciência. (JUNG, 2016)
Com a tomada de consciência da sombra é que se inicia o desenrolar do processo de individuação que é uma tarefa sumamente penosa. (JUNG,1979)
Em símbolos da transformação, traz o medo do mundo interno, que em relação ao mundo externo pode ser bem mais pavoroso, principalmente quando negado.
Na individuação, o manejo do medo se apresenta em grande valia, libertando ou aprisionando o indivíduo nesse caminho:
[…] Quanto mais o individuo foge à adaptação tanto mais aumenta seu medo, que então o acomete em todas as oportunidades e em grau cada vez maior, impedindo-o.
JUNG, 2016, §456
O medo da vida não é um fantasma imaginário, mas um pânico muito real que só parece tão insignificante porque sua verdadeira origem é inconsciente e por isso projetada: a jovem parcela da personalidade que é impedida e retida diante da vida produz medo e transforma-se em medo. O medo parece vir da mãe, mas na realidade é o medo mortal do indivíduo instintivo, inconsciente, que em consequência do continuo recuo diante da realidade, está excluído da vida.
JUNG, 2016, §551
Por vezes sentimos muito medo de mergulhar profundamente naquilo que verdadeiramente somos e tomados por este medo acabamos por nos entregar a infinitos estímulos externos, que de forma ilusória promete nos conectar com algo divino, como a natureza, através das mais variadas experiências, mas acabamos anestesiados e desconectados de nossos propósitos; de certo, nos afastando da conexão e caminhando para uma invasão à natureza.
O medo da vida e da morte, podem também explicar situações de relação simbiótica entre mãe e filho. A ideia é que o indivíduo sente-se mais seguro permanecendo em um estágio mais conhecido e, portanto mais seguro, dificultando a separação do mundo da mãe.
O indivíduo precisa deixar o conforto e a segurança da fase vivida para arriscar-se ao desconhecido.
Chama atenção o fato de muitos consumidores de experiências de aventuras acabarem por esquecer e não questionar medidas de segurança, não refletindo sobre possíveis consequências.
Como podemos conciliar a busca por emoção e aventura com a necessidade de explorar nosso mundo interior e confrontar nossas sombras?
[…] Uma consciência mais elevada e mais ampla, que só surgirá mediante a assimilação do desconhecido, tende para autonomia. […] Quanto mais poderosa e independente se torna a consciência e, com ela, a vontade consciente, tanto mais o inconsciente é empurrado para o fundo, surgindo facilmente à possibilidade de a consciência em formação emancipar-se da imagem primordial inconsciente.
JUNG, 2003, §12
Von Franz, 1999, em seu livro: Puer Aeternus: A luta do adulto contra o paraíso da infância, onde puer tem por definição: “um arquétipo relacionado à adolescência, que pode “indicar certo tipo de jovem que tem um complexo materno fora do comum”, fala que o adulto aprisionado neste arquétipo tem dificuldades para trabalhar e se relacionar”. Outra característica desse comportamento é que segundo a autora, a ligação com a mãe é tão forte que a forma encontrada para se desfazer esse nó, tem muitas vezes, um fim trágico. O comportamento de risco é característico e apesar da contradição, parece ser a única saída para vencer o medo da separação.
A única saída que este tipo de homem teme é a de se ligar a qualquer coisa. Há um medo terrível de se prender, de entrar no tempo e no espaço totalmente, e de ser o ser humano específico que ele é. Há sempre o medo de ser pego em uma situação da qual seja impossível sair. Toda definição é para ele um inferno. Ao mesmo tempo, há sempre algo simbólico – principalmente uma atração por esportes perigosos, particularmente aviação e alpinismo – de modo que nesses esportes ele se encontra o mais alto possível, simbolizando a separação da mãe, isto é, da terra da vida comum.
(Von Franz, 1999 p.10).
Citada por Morelli, (2009), Kast explica que os complexos parentais podem se formar em qualquer fase da vida, mas na infância se formarão como base da vida e dependendo do caso, podem ser positivos ou negativos, atrapalhando ou favorecendo o desenvolvimento da psique.·.
O complexo do eu de uma pessoa deve desligar-se, “de modo apropriado à idade”, dos complexos materno e paterno, para que ele possa perceber suas tarefas de desenvolvimento apropriadas à idade e ter à sua disposição um complexo do eu coerente – um” eu suficientemente forte “- que lhe permita perceber as exigências da vida, lidar com dificuldades e conseguir certo grau de prazer e satisfação.
(1997, p.10
Partindo da exploração dos símbolos na obra de Jung, afirmando que os símbolos são formas através das quais o inconsciente se comunica com a consciência, podem essas experiências ser vistas como símbolos de algo mais profundo – o desejo da libertação, autoafirmação, ou até mesmo uma busca por significado em um mundo repleto de incertezas?
No processo de individuação temos um movimento em direção ao entendimento pleno de si mesmo, O trabalho simbólico e a auto exploração são essenciais para o crescimento pessoal.
Em “O homem e seus símbolos” Jung incentiva uma reflexão crítica sobre nossas decisões e comportamentos”. O desafio aqui se torna não apenas o de buscar emoções intensas, mas também de ser crítico sobre o contexto dessas experiências e suas implicações para a psique. Isso nos leva a um exame mais profundo da forma como lidamos com riscos, tanto internos quanto externos, e nos convida a repensar o que realmente significa ser corajoso.
Kast (1997) menciona que as atividades como esportes radicais podem ser uma manifestação externa do que está acontecendo internamente na psique. O apelo por esportes radicais, muitas vezes, reflete uma necessidade de romper com rotinas seguras e explorar limites, tanto física quanto emocionais. Para muitos, essas atividades podem representar um símbolo de libertação, coragem e a busca por experiências intensamente significativas.
A exploração de espaços externos e a luta interna pelo autoconhecimento são indissociáveis.
Ambos os caminhos oferecem experiências significativas que, quando integradas de maneira consciente, podem levar a uma compreensão mais profunda de nós mesmos e de nosso lugar no mundo. Assim, a busca por emoção não deve ser apenas uma fuga, mas uma oportunidade para o crescimento e a reflexão pessoal.
Enquanto escalar uma montanha ou voar em um balão pode proporcionar uma sensação temporária de liberdade, a verdadeira liberdade reside na capacidade de entender e integrar os próprios sentimentos e experiências.
A sensação de liberdade que muitos experimentam em atividades radicais pode servir como um distrator, enquanto a verdadeira coragem reside na disposição de enfrentar a dor, a consciência e as verdades ocultas dentro de si.
Através dessa lente, devemos considerar nossas escolhas de forma crítica – não apenas em relação às atividades externas que buscamos, mas também em relação às nossas motivações. O verdadeiro desafio não está apenas em buscar novas emoções, mas em compreender porque e como essas experiências se encaixam em nossas vidas.
A busca por adrenalina pode ser uma forma de se conectar com a vida, mas deve ser equilibrada com uma rica exploração interna de nossas sombras e de nossa psique. Em última análise, a verdadeira aventura pode ser aquela que nos leva para dentro, onde reside a fonte de nossa autenticidade e crescimento pessoal.
As pessoas devem se sentir encorajadas não apenas a subir montanhas, mas também a deslizar no mais profundo que sua mente possa alcançar.
Patricía Moura Vernalha – Analista em Formação
Waldemar Magaldi – Analista Didata
Referências:
JUNG,C.G. Psicologia do inconsciente. OC 7/1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013
JUNG,C.G. A Natureza da psique. OC 8/2. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014
JUNG,C.G. Os arquétipos e o Inconsciente coletivo. OC 9/1, RJ: Vozes, 2016
JUNG,C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do si- mesmo OC 9/2, RJ: Vozes, 2015
JUNG,C.G. Psicologia e religião OC 11/1. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013
JUNG,C.G. Interpretação psicológica do dogma da trindade. OC. 11/2 Petrópolis, RJ: Vozes,1979
JUNG,C.G. Mysterium Coniumctionis. OC. 14. Petrópolis, RJ: Vozes, 1985
JUNG, C.G. Fundamentos da psicologia analítica OC. 18/1.Petrópolis, RJ: Vozes, 1983
JUNG,C.G. Cartas de C.G. Jung; vol. 1,2 e 3; editado por Aniela Jaffé. Petrópolis, RJ: Vozes: 2002.
KAST, Verena. Pais e filhas, mães e filhos: caminhos para a auto-identidade a partir dos complexos materno e paterno. São Paulo, SP: Loyola, 1997
MORELLI, Paula Nogueira de Toledo. O temor secreto dos perigos da alma – Uma revisão Bibliográfica sobre o conceito do medo na Psicologia Analítica. Mestrado em Psicologia Clínica PUC-SP, 2009