Resumo: Neste artigo, propõe-se a análise de um sonho à luz da jornada da heroína, conforme delineada por Maureen Murdock (1990, 2022), em diálogo com os referenciais simbólicos de Carl Gustav Jung e o modelo mítico formulado por Joseph Campbell.
Os sonhos constituem o palco simbólico onde o inconsciente se manifesta com potência imagética, muitas vezes antecipando ou acompanhando processos de transformação psíquica.
Na psicologia analítica, os sonhos são compreendidos como expressões do movimento de individuação — a jornada pela qual a personalidade se torna íntegra ao reunir seus opostos, isto é, conteúdos conscientes e inconscientes.
Murdock desenvolveu sua teoria a partir de uma crítica à “Jornada do Herói” apresentada por Campbell (CAMPBELL, 2008, 2023), com quem chegou a dialogar diretamente. Enquanto Campbell descrevia uma trajetória arquetípica centrada no masculino — na superação de provas, conquista do elixir e retorno ao mundo —, Murdock percebeu que essa narrativa não dava conta da experiência psíquica da mulher. Para ela, a jornada da heroína (MARTINEZ; ARAÚJO, 2022) envolve a separação e posterior reconciliação com o feminino, passando por fases de identificação com valores patriarcais, desilusão, retorno à ancestralidade e integração dos polos masculino e feminino dentro do próprio ser.
Com base nessa estrutura simbólica, propõe-se aqui o estudo de caso de um sonho arquetípico, cujas imagens serão examinadas em diálogo com os estágios da jornada da heroína de Maureen Murdock, com respaldo na psicologia analítica de C. G. Jung e nos princípios simbólicos da alquimia psíquica.
O Sonho
“Estou com alguns homens à beira-mar. Noto, para minha surpresa, tratar-se de Jesus. Ele surfa as ondas com facilidade. Me mostram as imagens que o retratam e vejo os sinais das cristas das ondas e me pergunto por que nunca as observei antes.
Algo acontece e um de seus discípulos entra debaixo de um carro para se esconder e se preparar para um ataque. Um dos demais acha boa a ideia e lhe dá uma arma para ter em mãos.
Estou chegando de carro com minha mãe na casa de minha avó. Vou ficar com ela. Já minha mãe, que ficará ali 30 dias, reservou um hotel nas proximidades. Acho estranho ela agir assim, mas respeito. Entro na casa de minha avó e ela está sentadinha no sofá da sala, como gostava de fazer, recebendo visitas. Conversa gostosamente e me olha feliz. Noto como muitas pessoas a visitavam, que era um hábito cordial dos tempos antigos, por meio do qual as pessoas trocavam histórias e afetos. Vejo colchões espalhados no chão e crianças dormindo neles, felizes.”
Jesus surfista e o despertar da consciência
A primeira cena do sonho apresenta uma figura arquetípica elevada: Jesus, não na forma sofredora, mas leve, integrada ao fluxo das águas. Ele surfa as ondas com destreza — um símbolo da capacidade de se mover com consciência sobre os movimentos emocionais e inconscientes. A água, tradicionalmente associada ao inconsciente coletivo, torna-se aqui caminho e campo de expressão espiritual. A surpresa da sonhadora e sua pergunta sobre as “cristas das ondas” revelam um despertar da percepção simbólica, característica do início da operação alquímica da Albedo: fase de purificação, discernimento e iluminação interior (JUNG, 2012).
Esse momento do sonho pode ser relacionado ao estágio da jornada da heroína em que há uma quebra com os valores patriarcais, na medida em que o Cristo apresentado não impõe sacrifício ou controle, mas manifesta uma espiritualidade nova, mais fluida e solar. Para Murdock, essa fase representa a abertura para o Self, a conexão com uma verdade mais profunda que não nega o corpo nem o feminino.
A sombra armada: defesa e regressão
Em contraste com essa revelação, aparece a imagem sombria: um discípulo se esconde debaixo de um carro para se armar. O carro, símbolo do ego e da persona, torna-se refúgio defensivo. O gesto revela uma postura psíquica de regressão e prontidão para o conflito — expressão de um complexo autônomo ainda operando a partir do medo e da vigilância.
O fato de outro discípulo entregar uma arma reforça a existência de conivência interna com esse padrão de resposta reativa, sugerindo que nem todas as partes da psique acompanham o novo paradigma espiritual proposto pelo Self, aqui representado pela figura de Jesus surfista. Essa tensão é central na jornada da heroína: o feminino começa a emergir com força, mas ainda encontra resistência de estruturas internas moldadas pela lógica da sobrevivência e da luta no contexto do patriarcado (WOODMAN, 1992).
O retorno à casa da avó: reconexão com o feminino ancestral
Na sequência, o cenário muda: a sonhadora chega com a mãe à casa da avó. A mãe, embora vá passar 30 dias na cidade, prefere ficar num hotel, o que pode ser interpretado como uma separação geracional e emocional. A casa da avó, por sua vez, está cheia de vida: visitas, conversas, afetos e crianças dormindo. A avó aparece como figura arquetípica ancestral, representando o feminino profundo, a sabedoria encarnada, a hospitalidade da alma.
Essa parte do sonho corresponde ao estágio em que, segundo Murdock, a heroína retorna ao corpo e à linhagem feminina.
A casa da avó é símbolo do lar interior, da memória afetiva e da tradição relacional que sustentava a vida coletiva. As crianças que dormem no chão — seguras e felizes — sinalizam que há espaço interno para o repouso ou crescimento seguro dos aspectos novos, para a regeneração de conteúdos anímicos.
Conclusão e Prognóstico
O sonho analisado descreve uma travessia simbólica alinhada à jornada da heroína tal como proposta por Maureen Murdock: um caminho que parte da cisão com o feminino, atravessa o patriarcado defensivo e reencontra a alma ancestral. As imagens de Jesus surfista e da avó acolhedora representam dois polos de uma reconciliação em curso: o masculino solar e fluido, e o feminino receptivo e enraizado.
Contudo, o discípulo armado sob o carro revela que há ainda conteúdos psíquicos atuando sob o domínio da sombra, temerosos da entrega e prontos para o ataque. O prognóstico é positivo: o sonho aponta para uma consciência que se amplia e se sensibiliza, capaz de reconhecer tanto a luz quanto a sombra, o Self e os complexos.
Como indicam os colchões no chão e as crianças que dormem, a alma está preparando espaço para novos começos. O feminino ancestral não foi perdido — apenas esquecido —, e agora retorna como fonte de cura e reconexão. Cabe à sonhadora, no caminho de sua individuação, continuar a escutar as ondas e as histórias, acolhendo em si mesma o casamento simbólico entre espírito e alma, força e afeto.
Monica Martinez – Analista em formação pelo IJEP
Waldemar Magaldi – Analista Didata IJEP
Referências:
CAMPBELL, J. The hero with a thousand faces. California: New World Library, 2008.
CAMPBELL, J. O herói de mil faces. 1. ed. São Paulo: Palas Athena, 2023.
JUNG, C. G. Psicologia e alquimia (OC 12). 6. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
MARTINEZ, M.; ARAÚJO, T. Métodos em estruturas narrativas míticas: a jornada da heroína de Maureen Murdock. Revista Esferas, n. 24, p. 305–325, 16 ago. 2022.
MURDOCK, M. The heroine´s journey. Boston: Shambhala, 1990.
MURDOCK, M. A Jornada da Heroína: a busca da mulher para se reconectar com o feminino. Rio de Janeiro: Sextante, 2022.
WOODMAN, M. Leaving my father’s house: a journey to conscious femininity. Boulder, Colorado: Shambhala, 1992.