Resumo: Por que cenas de morte e violência são recebidas com alívio e não com horror pela população? O que se mobiliza no inconsciente coletivo para que a violência pareça justiça? Neste artigo, eu analiso o recente episódio da violência policial no Rio de Janeiro, que tirou a vida de mais de 120 pessoas, pela lente da psicologia analítica. O objetivo é entender o que está por trás da naturalização da violência no Brasil — e o que podemos fazer para romper esse ciclo.
Dia 25 de outubro de 2025, Rio de Janeiro, Complexo da Penha e do Alemão – duas comunidades altamente populosas na cidade e dominadas por uma violenta facção criminosa.
Neste dia, uma megaoperação policial deixou mais de uma centena de mortos. Na manhã seguinte, os moradores da comunidade, entre homens, mulheres e até mesmo crianças entraram na mata e resgataram mais de 60 pessoas mortas. A cena dos corpos enfileirados no chão, cobertos de sangue e com mães e mulheres chorando abraçadas a eles não sai da minha cabeça. Sem dúvida nenhuma, foi uma das cenas mais aterrorizantes que vi em toda minha vida.
A violenta operação policial, que resultou nessas mortes com características de execução policial, expôs novamente uma ferida simbólica da sociedade brasileira: a naturalização da violência e a aprovação popular de ações letais conduzidas pelo Estado. Segundo pesquisa AtlasIntel, divulgada pelo jornal Valor Econômico, 55% dos brasileiros — e 62,2% dos cariocas — afirmaram apoiar a operação. O dado, mais do que estatístico, é sintoma de um padrão psíquico coletivo.
Por que cenas de morte e brutalidade são recebidas com alívio e não com horror? Por que as pessoas não se sensibilizam com as imagens dos corpos resgatados por moradores e expostos em local público? O que se mobiliza no inconsciente coletivo para que a violência pareça justiça?
O poder do inconsciente coletivo
Para a psicologia analítica de Carl Gustav Jung os fenômenos sociais não se explicam apenas por fatores racionais ou políticos, mas também por forças simbólicas, arquetípicas e inconscientes.
Além de todo o repertório apreendido a partir de experiências pessoais e toda a gama de conteúdos do inconsciente que nunca tiveram energia psíquica para alcançar a consciência, há uma camada do inconsciente, mais profunda, a qual Jung chamou de inconsciente coletivo.
Segundo Jung, o inconsciente coletivo é o que nos faz igual a toda humanidade.
“Eu optei pelo termo ‘coletivo’ pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais sãocum grano salis os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo, portanto, um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo.
JUNG, 2012, OC 9/1, §3
A existência do inconsciente coletivo nos mostra que a consciência individual não é totalmente livre, neutra ou autônoma. Pelo contrário: ela é fortemente influenciada por fatores herdados e também pelas condições do ambiente em que vivemos, ou seja, do inconsciente coletivo.
As estruturas que compõem o inconsciente coletivo, Jung denominou-as inicialmente de “imagens primordiais” para em seguida chamá-las de arquétipos e instintos. Para a análise do fenômeno em questão, vamos nos ater aqui apenas ao conceito de arquétipo.
Arquétipos são imagens universais que moldam a experiência humana. Existe um arquétipo para cada situação típica da vida. As repetições destas situações ficam gravadas no inconsciente e quando vivemos novamente essas situações, agimos de acordo com a memória que está gravada pelos arquétipos.
Jung explica esse fenômeno:
Como fatores que influenciam o comportamento humano, os arquétipos desempenham um papel em nada desprezível. É principalmente mediante o processo de identificação que os arquétipos atuam alternadamente na personalidade total. Esta atuação se explica pelo fato de que os arquétipos provavelmente representam situações tipificadas da vida.
JUNG, 2013,OC 8/2, §254
Quando constelados por crises, medos ou tensões sociais, esses arquétipos assumem formas culturais específicas e podem dominar o comportamento coletivo — um processo que Jung descreveu como possessão arquetípica. Este termo é usado para descrever quando a consciência é tomada por um conteúdo inconsciente, através da sombra expressa pela voz dos complexos.
O complexo cultural da violência redentora
A violência policial no Rio de Janeiro, que já é considerada um dos maiores episódios de violações de direitos humanos da história do país, e a aprovação da ação do Estado pela população pode ser compreendida como a constelação de um complexo cultural da violência redentora — um padrão emocional e simbólico que associa o uso da força à eliminação do mal. Trata-se de um complexo, alimentado por séculos de desigualdade, escravidão, autoritarismo e exclusão social. Sua narrativa central é simples: “o mal precisa ser eliminado pela força”. Nesse imaginário, o Estado armado é o herói que vence o inimigo (o bandido, o favelado, o marginal). Este tipo de complexo cultural é constelado sempre que a sociedade sente medo e impotência.
Mas o que o é um complexo cultural?
Os autores Samuel Kimbles e Thomas Singer criaram a teoria dos Complexos Culturais a partir de uma leitura contemporânea da teoria dos complexos de Jung. Segundo os autores, o complexo cultural é a forma pela qual crenças e emoções profundamente arraigadas atuam tanto na vida de um grupo quanto na psique individual, servindo como mediação entre o sujeito e sua coletividade — seja ela uma comunidade, uma nação ou uma cultura específica (apud Cambray e Carter, 2020, p. 271). Portanto, podemos dizer que os complexos culturais também atuam de forma autônoma, influenciando o inconsciente coletivo do grupo, ao mesmo tempo que é influenciado pelo indivíduo. Esses complexos são constelados pelo contágio psíquico.
Quando o afeto coletivo domina o indivíduo
A partir deste triste e violento episódio podemos ver que foi constelado na sociedade, ou seja, emergiram do inconsciente coletivo, algumas emoções arquetípicas, tais como medo, raiva, desejo de vingança e de justiça. Estas emoções, como são coletivas, podem ser contagiosas.
Como explica Jung:
Via de regra, quando o inconsciente coletivo se torna verdadeiramente constelado em grandes grupos sociais, a consequência será uma quebra pública, uma epidemia mental que pode conduzir a revoluções, guerra, ou coisa semelhante. Tais movimentos são tremendamente contagiosos, eu diria inexoravelmente contagiosos, pois, quando o inconsciente coletivo é ativado, ninguém mais é a mesma pessoa.
JUNG, 2013, OC 18/1, §93
O processo pelo qual emoções, ideias e impulsos inconscientes se espalham entre indivíduos, criando uma identificação coletiva inconsciente é chamado de contágio psíquico. Nas redes sociais, esse contágio se intensifica. O indivíduo, tomado por esse afeto coletivo, acredita estar pensando com a razão, quando na verdade está identificado com um conteúdo inconsciente. Ele passa de sujeito autônomo para mera massa de manobra política e social.
Do pessoal para o coletivo
Mas qual mecanismo psíquico que conecta as pessoas ao complexo cultural? Essa identificação pode ser explicada e entendida a partir do complexo pessoal. Cada pessoa possui seus complexos, que são conteúdos inconscientes, carregados de afetos, cujos núcleos emocionais são formados por experiências de vida. De acordo com Jung, os complexos são autônomos, podendo atuar sobre a consciência e exercer influência (inconsciente) nas decisões e comportamentos dos indivíduos.
É a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência. Esta imagem é dotada de poderosa coerência interior e tem sua totalidade própria e goza de um grau relativamente elevado de autonomia, vale dizer: está sujeita ao controle das disposições da consciência até um certo limite e, por isto, comporta-se, na esfera do consciente, como um corpus alienum (corpo estranho), animado de vida própria.
JUNG, 2013, OC 8/2, § 201
Em sua obra, Jung chega a dizer que os complexos “se comportam como personalidades secundárias ou parciais, dotadas de vida espiritual autônoma” (OC/11, §21).
O complexo não é bom, nem ruim, mas sua função é nos mostrar um incômodo inconsciente. Sendo assim, podemos dizer que os complexos pessoais dos indivíduos que não se sensibilizaram com as imagens das vítimas da megaoperação policial no Rio de Janeiro ressoam com o complexo cultural da violência redentora quando há afinidade afetiva no campo pessoal. Quem cresceu sob um pai autoritário ou ausente tende a admirar o Estado punitivo; quem sentiu impotência ou humilhação por sua condição social encontra na violência uma forma de compensação; e quem teme perder o controle da própria vida projeta o mal no outro, sentindo alívio quando esse outro é eliminado. Estes são apenas alguns exemplos de complexo pessoal, conectados ao complexo cultural constelado. Dessa maneira, o cultural e o pessoal se alimentam mutuamente: a sociedade oferece a narrativa e o indivíduo fornece a emoção reprimida.
A sombra coletiva
Sob a luz da psicologia analítica junguiana, a violência aprovada pela maioria pode ser entendida com a projeção de uma sombra coletiva. Para Jung, a sombra é composta por partes reprimidas da nossa personalidade. Ele define como “a soma das propriedades ocultas e desfavoráveis das funções mal desenvolvidas e dos conteúdos do inconsciente pessoal” (OC 7/1, §103) e completa:
Todo indivíduo é acompanhado por uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente, tanto mais escura e espessa ela se tornará (…). Se as tendências reprimidas da sombra fossem totalmente más, não haveria qualquer problema. Mas, de um modo geral, a sombra é simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não de uma malignidade absoluta. Ela contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam vivificar e embelezar a existência humana; mas o homem se choca contra as regras consagradas pela tradição.
JUNG, 1978 OC 11 /1 §131 e 134
Quando não reconhecemos esses aspectos em nós mesmos — ou seja, quando não nos tornamos conscientes de sua existência —, tendemos a negá-los. Integrar a sombra exige justamente o contrário: reconhecer e aceitar essas partes reprimidas, o que implica assumir nossas imperfeições e enfrentar nossos dilemas éticos e morais. Como esse processo é difícil e muitas vezes doloroso, preferimos projetar nos outros essas qualidades incômodas, numa tentativa inconsciente de eliminá-las de nós.
Assim, transferimos aos outros nossas falhas e responsabilidades, sempre prontos a justificar nossos erros com desculpas externas. Como, por exemplo, esse tipo de justificativa que é tão comum: “Por que você se atrasou? Porque o trânsito estava ruim.”
Tudo aquilo que é negado com muita veemência se manifesta na mesma intensidade e vai ganhando corpo.
Jung (OC 7/1, §350) diz “que a sombra personifica o que o indivíduo recusa a reconhecer ou admitir e que, no entanto, sempre se impõe a ele direta ou indiretamente, tais como traços inferiores de caráter ou outras tendências incompatíveis”.
Ampliando esse conceito para o coletivo, podemos dizer que tudo aquilo que a sociedade nega em si mesma — o ódio, a revolta diante da falta de assistência digna do Estado, a submissão às regras impostas por facções criminosas e a culpa por, de algum modo, participar desse sistema injusto, seja como consumidor de drogas ou como conivente com as desigualdades sociais — é projetado sobre o outro, geralmente o mais vulnerável. O morador da favela, o jovem negro, o “bandido” passam então a encarnar o mal. O extermínio transforma-se em um ritual inconsciente de purificação simbólica — o sacrifício do bode expiatório, tema recorrente nos mitos e na história humana.
Anestesiamento social
O efeito desse cruel mecanismo social é a dessensibilização — a perda da empatia. A capacidade de reconhecer e se conectar à ferida do outro é o que nos torna humanos. A exposição contínua a cenas de brutalidade cotidiana produz um anestesiamento social, um embotamento afetivo que transforma o horror em rotina e a violência em espetáculo. Jung descreve esse processo como uma regressão do ego, isto é, um retorno a formas mais primitivas de funcionamento psíquico, em que os instintos dominam a consciência. Nesse estado regressivo, o pensamento crítico e a reflexão ética cedem lugar ao desejo de punição, o prazer inconsciente na destruição do outro e a adesão emocional a narrativas violentas.
Jung adverte que, quando a consciência perde contato com o inconsciente simbólico, com os mitos, por exemplo, “cria-se uma consciência desenraizada, que não se orienta pelo passado, uma consciência que sucumbe desamparada a todas as sugestões, tornando-se suscetível praticamente a toda epidemia psíquica” (OC 9/1, §267).
Essa “epidemia psíquica” é o que vemos na naturalização da violência. Como já vimos anteriormente, uma espécie de contágio emocional coletivo em que o medo, a raiva e o desejo de vingança passam a dominar o campo social. Assim, a repetição das imagens de morte e de exclusão não apenas banaliza o sofrimento, mas rebaixa o nível de consciência coletiva, alimentando a sombra social. A violência que se torna hábito é, no fundo, o sinal de uma psique coletiva adoecida, incapaz de conter ou simbolizar seus impulsos destrutivos.
Jung via nesses fenômenos não apenas sintomas sociais, mas avisos do inconsciente coletivo: quando o humano se desumaniza, é porque a cultura perdeu o vínculo com o eixo do Self. Também chamado de si-mesmo, não é só o centro da consciência, mas também, inclui todo o inconsciente.
Segundo Jung, o objetivo do nosso desenvolvimento psicológico (processo de individuação) é a realização do Self.
Para Jung, à medida que nossa psique vai se desenvolvendo e o si-mesmo vai emergindo do inconsciente, o indivíduo passa a se preocupar menos com sua individualidade e mais com o coletivo.
Essa consciência ampliada não é mais aquele novelo egoísta de desejos, temores, esperanças e ambições de caráter pessoal, que sempre deve ser compensado ou corrigido por contratendências inconscientes; tornar-se-á uma função de relação com o mundo de objetos, colocando o indivíduo numa comunhão incondicional, obrigatória e indissolúvel com o mundo. As complicações que ocorrem neste estágio já não são conflitos de desejos egoístas, mas dificuldades que concernem à própria pessoa e aos outros. Neste estágio aparecem problemas gerais que ativaram o inconsciente coletivo; eles exigem uma compensação coletiva e não pessoal. É então que podemos constatar que o inconsciente produz conteúdos válidos, não só para o indivíduo, mas para outros: para muitos e talvez para todos.
JUNG, OC 7/2, § 275
O caminho da redenção
Enquanto continuarmos negando a sombra coletiva, o país seguirá repetindo seus rituais de extermínio — como se a destruição do outro pudesse curar nossas próprias feridas. Mas a violência não redime, apenas se renova. O desafio é imenso e se dá em dois aspectos inseparáveis: o coletivo, que exige coragem política e compromisso social, e o individual, que demanda autoconhecimento e transformação interior.
No aspecto coletivo, precisamos enfrentar o que é concreto e visível: a desigualdade que empurra vidas para a margem, o racismo cultural que naturaliza quem deve morrer, a necropolítica que discrimina e criminaliza e o medo que autoriza o Estado a matar em nosso nome. É preciso construir políticas que humanizem — que tratem segurança como direito, não como guerra; que substituam o abandono por cuidado e a vingança por justiça. Exige, acima de tudo, dar educação e oportunidades de trabalho para a população carente.
No aspecto individual, o trabalho é mais silencioso e talvez mais difícil: olhar para dentro, reconhecer a própria sombra, admitir o ódio, o medo e a indiferença que habitam em nós.
Jung nos lembra que:
Quanto mais conscientes nos tornamos de nós mesmos através do autoconhecimento, atuando consequentemente, tanto mais se reduzirá a camada do inconsciente pessoal que recobre o inconsciente coletivo. Desta forma, vai emergindo uma consciência livre do mundo mesquinho, suscetível e pessoal do eu, aberta para a livre participação de um mundo mais amplo de interesses objetivos.
JUNG, OC 7/2, §275
Só quando deixamos de projetar o mal no outro é que o ciclo da violência começa a se romper. Transformar o país começa por transformar o nosso olhar interno. A verdadeira redenção não está no extermínio, mas na consciência. Somente uma sociedade que encara a própria escuridão — e aprende a nomeá-la — pode, enfim, escolher a luz.
Ana Paula Pessanha Lima – Membro Analista em formação IJEP
Ana Paula Maluf – Analista Didata IJEP
Referências:
AtlasIntel: 55% aprovam megaoperação que resultou em 121 mortes no Rio de Janeiro – Valor Econômico, 31 de outubro de 2025. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2025/10/31/atlasintel-55percent-aprovam-megaoperacao-que-resultou-em-121-mortes-no-rio-de-janeiro.ghtml. Acesso em 02 de novembro de 2025.
CAMBRAY, Joseph, CARTER, Linda (org.) Psicologia analítica – Perspectivas contemporâneas em análise junguiana. Rio de Janeiro, Editora Vozes, 2020.
JUNG, Carl Gustav. A psicologia do inconsciente. Obras Completas. v 7/1. 2014.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente. Obras Completas. v 7/2. 2014.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique. Obras Completas. v 8/2. 2013.
JUNG, Carl Gustav. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Obras Completas. v 9/1. 2014.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião. Obras Completas. v 11/1. 1978.
JUNG, Carl Gustav. A vida Simbólica. Obras Completas. v 18/1. 2013.

