Resumo: Ainda que não tenhamos uma estatística formal, a percepção tácita indica que cada vez mais pessoas de diversas formações pessoais e profissionais têm se interessado pelas ideias junguianas, seja para atuarem como terapeutas/analistas, seja para aplicarem sua psicologia em áreas de pesquisas eminentemente das humanas, tais como Comunicação, Ciências da Religião, Administração e outras. Entram nesse grupo também os entusiastas das terapias holísticas (barras de access, florais de bach, aromaterapia etc.) e práticas mânticas (tarot, astrologia, “arquétipo-terapeutas” e outras).
A questão observada é que vários desses movimentos deturpam as ideias junguianas, assim como expropriam alguns de seus conceitos, utilizando-os para defender seus pontos de vistas que, muitas vezes, não encontram respaldo genuíno na teoria.
Um dos exemplos mais recentes é a onda dos “arquétipo-terapeutas”, que são aqueles que usam os, supostos, “12 arquétipos de Jung” para ajudar a pessoa a desenvolver seu autoconhecimento. Segundo consta, o livro “Herói fora-da-lei” teria atribuído a Jung a “honra” de ter “criado” 12 arquétipos. A quantidade de erros nesta pequena acepção é o suficiente para causar um grande estrago: sites vendendo testes que “identificam” qual é o “seu” arquétipo. Diversas áreas utilizando a ideia, deturpada, de arquétipos para compor uma determinada vestimenta, decoração de ambiente ou estratégia de marketing (essa última parece ser a menos deturpada). Enfim, uma série de iniciativas que visa o lucro de quem está por trás disso e em nome da enganação de centenas ou milhares de pessoa. Pior: alguns desses “arquétipo-terapeutas” estimulam que o sujeito “ative” seu arquétipo, como se isso fosse possível!
Para deixar claro, vejamos o que Jung diz sobre os arquétipos:
[…] o inconsciente contém não só componentes de ordem pessoal, mas também impessoal, coletiva, sob a forma de categorias herdadas ou arquétipos. Já propus antes a hipótese de que o inconsciente, em seus níveis mais profundos, possui conteúdos coletivos em estado relativamente ativo; por isso o designei inconsciente coletivo.
(OC 7/2, §220).
Se os arquétipos estão em estado relativamente ativo, parece que não é possível ativá-los. Em outras palavras, como se acende uma luz que está acesa? Ainda sobre isso, a confusão fica mais generalizada quando se personifica um arquétipo, uma vez que esta estrutura é coletiva e jamais individual.
Ainda sobre os arquétipos, Jung deixa clara sua natureza impessoal quando explica os arquétipos de anima e animus:
Se o enfoque psicológico com o qual empreendemos esse confronto for excessivamente personalista, não estaremos levando na devida conta o fato de que se trata de um arquétipo coletivo, o qual não deve de forma alguma ser entendido de um modo pessoal. Ele constitui, muito pelo contrário, um pressuposto universal, e isto a um ponto tal, que muitas vezes nos parece aconselhável referir-nos não a minha anima ou meu animus e sim à anima e ao animus simplesmente.
OC 16/2, §469
O arquétipo é impessoal e nunca individual, mas ele encontrará o seu correspondente pessoal, em certo nível, na manifestação dos complexos, esses sim conteúdos pessoais e com núcleos arquetípicos. Mas não nos convenceria a hipótese de que os charlatões dos 12 arquétipos estariam substituindo complexo por arquétipo, uma vez que complexos, assim como os arquétipos, são estruturas autônomas do inconsciente, jamais podendo ser ativados ou inativados pela vontade do ego, estrutura da consciência.
O que o ego pode, no máximo, é minimizar os efeitos negativos da manifestação de um complexo, até porque um complexo só se torna mal quando ego quer apartá-lo forçosamente da consciência, fazendo com que estes se tornem muito incômodos e sintomáticos:
“O complexo prova a sua autonomia pelo fato de não se ajustar à hierarquia da consciência, ou seja, de opor uma resistência efetiva à vontade” (OC 16/1, §196) e ainda “Um complexo só se torna patológico, quando achamos que não o temos” (OC 16/1, §179).
No fim das contas, parece que os aplicadores dos “12 arquétipos” querem mais empurrar o indivíduo a identificar-se com um determinado personagem (persona) do que de fato “ativar” um arquétipo, até porque isso é impossível para o ego.
A mitologia grega deixa claro que quando um mortal era colocado diante de um deus, ele explodia e morria, pois não tinha condições de absorver a magnitude da deidade. Traduzindo, isso representa simbolicamente que o ego não tem condições de lidar com uma força arquetípica, e que se tiver de fazer isso muito provavelmente irá sucumbir, a exemplo da explicação que Jung dá sobre a emanação do arquétipo de Wotan (Odin) na época da Alemanha Nazista e suas consequências desastrosas e catastróficas para a humanidade (OC 10/2).
Também é preciso dizer que não existe uma lista finita de arquétipos. Na verdade, eles são infinitos ou, pelo menos, incontáveis. E ainda que fossem contáveis, Jung nos dá esta lição sobre isso: “É inútil decorar uma lista de arquétipos. Estes são complexos de vivência que sobrevêm aos indivíduos como destino e seus efeitos são sentidos em nossa vida mais pessoal” (OC 8/2, §62).
Podemos, no máximo, sentir os efeitos dos arquétipos via complexos, mas jamais controlá-los ou ativá-los.
Contudo, as deturpações não param por aí. Atualmente menos comentado publicamente, mas ainda trabalhado especialmente nas empresas, estão os tipos psicológicos, que de uma investigação brilhante de Jung sobre a questão dos opostos, se transformaram em uma categorização empobrecida, que visa descrever a pessoa a partir de uma “sopa de letrinhas”.
Reconhecemos a importância da teoria junguiana quanto à tipificação tipológica como uma certa bússola para entender o funcionamento da consciência, mas isso nada tem a ver com o reducionismo caracteriológico que os inventários tipológicos, oficiais ou extra-oficiais, tendem a estabelecer.
Separamos algumas afirmações do Jung sobre a sua teoria tipológica, que desconstrói a ideia de que ela seria para categorizar pessoas.
Começando por este trecho de Cartas:
Prezado Dr. Schäffer, muito obrigado por sua amável e interessante carta. Sua tentativa original de tipificar os indivíduos humanos mostra que o problema tipológico pode ser abordado de todos os lados possíveis e, em geral, com considerável proveito para aquele que inventou o esquema correspondente. Sua tentativa é essencialmente caracterológica, o que não posso dizer de minha tipologia. Minha intenção também nunca foi caracterizar personalidades e por isso não coloquei no início de meu livro a descrição dos tipos. Procurei antes criar um esquema claro de conceitos que se baseia cm fatores empiricamente verificáveis. Minha tipologia não tem por isso a intenção de caracterizar personalidades, mas reunir em categorias simples e bem dispostas o material empírico-psicológico tal qual ele se apresenta a um psicólogo e terapeuta na prática diária. Nunca considerei a minha tipologia como um método caracterológico, nem a usei com este fim
(Cartas Vol. 1 – 27/10/1933 – p. 145)
Na obra Tipos Psicológicos, que é extremamente profunda, Jung diz que: “A conformidade das pessoas é apenas um lado delas, o outro lado é sua peculiaridade. A psique individual não se explica por nenhuma classificação (OC 6, §960-961).
Também em Cartas, Jung explica que:
“No que se refere a Tipos psicológicos devo dizer que a tipologia em seu sentido mais estrito sempre me serve como um dispositivo crítico, sendo também a ideia de uma tipologia psicológica uma tentativa propriamente dita de uma psicologia crítica. Mas eu considero isto apenas um aspecto do meu livro. O outro aspecto trata do problema dos opostos, levantado pela crítica. Esta questão eu a abordei sobretudo nos capítulos 2 e 5 (Schiller e Spitteler). Ali está propriamente o específico do livro, o que a maioria dos leitores não percebeu, pois foram induzidos de imediato a classificar tudo e cada um tipologicamente, é em si um procedimento bastante estéril.
(Cartas Vol. 1 – 18/02/1935 – p. 199).
Com isso, fica muito claro que Jung jamais previu que seus Tipos Psicológicos se transformassem em instrumentos de avaliação, categorização e apartação de pessoas.
Além desses temas que mencionamos, diversas outras atribuições são dadas à Jung, colocando-o como entusiasta/praticante do tarot, da astrologia, e de outros conhecimentos mânticos, o que também não encontra correspondência literal em sua biografia.
É verdade que Jung explora a astrologia em sentido simbólico em algum momento de sua obra, mas longe de, por isso, poder ser chamado de astrólogo. Mesmo o tarot, tema de entusiasmo de praticantes da psicologia junguiana, é algo que não tem relevância na obra de Jung, mas também reconhecemos a validade de seu estudo em sentido simbólico por aqueles que o fazem.
Por fim, algo que causa curiosidade especialmente entre os que estão iniciando o estudo da obra junguiana, é a pergunta: “qual seria a religião de Jung?”
Em nossa experiência já ouvimos que Jung era espírita, ou que Jung acreditava no Deus metafísico, afinal, conforme argumentam alguns, ele afirmou que “sabe que ele existe” ou até mesmo que Jung acreditava em Jesus como um ser humano que viveu. Convidamos novamente Jung a responder estas questões pela sua própria obra.
O fato dele ser aproximado ao espiritismo por parte de alguns talvez se dê por ele ter investigado os chamados fenômenos ocultos no início de sua carreira, tendo classificados estes fenômenos como manifestações dos complexos do inconsciente e não como espíritos no sentido religioso.
Sobre a crença em Deus ou Jesus, na literalidade, Jung deixa muito claro em obras tais como 7/1, 9/2, 11/2 e 12 (só para ficar nessas) que sua preocupação repousava em entender, exclusivamente, a realidade psicológica de Deus e/ou de Jesus, sem com isso querer adentrar num terreno investigativo que visasse explicar a existência literal de um e de outro. Não colocamos as citações aqui até para convidar nossos leitores a buscarem por seus próprios meios estes estudos na Obra Completa.
Já sobre Jung crer ou não em Deus, se trata de um imbróglio surgido após ele ter sido questionado sobre isto em uma entrevista de TV para a BBC de Londres, e a sua resposta em inglês, traduzida literalmente, foi: “Difícil de responder. Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei” (https://www.youtube.com/watch?v=bTf7vTpcsRQ). Dada a resposta um tanto polêmica, o próprio Jung teve de se explicar sobre isso em um texto que foi publicado no volume 11/6 da Obra Completa.
Vejamos o que ele diz neste longo trecho, no qual ele também se descreve como um cristão, mas em sentido amplo, pois, na prática, Jung, na condição de pesquisador, transitou por várias religiões:
“Grande parte das cartas que tenho recebido se preocupa principalmente com a minha afirmação de que conheço Deus. Minha opinião a respeito do 4 m‘conhecimento de Deus’ se fundamenta em uma maneira de pensar que nada tem de convencional, e eu compreendo, sem dificuldade, que alguém venha me dizer que não sou cristão. E apesar de tudo considero-me cristão, porque me baseio simplesmente em concepções cristãs. Só que procuro fugir às suas contradições, esforçando-me por manter uma atitude de modéstia que leve em conta o imenso lado da psique humana ainda não investigada. A ideia cristã – como, de resto, também o Budismo – mostra-nos sua vitalidade por sua evolução constante e permanente. Nossa época, evidentemente, exige concepções realmente novas, sob este aspecto. Não podemos mais pensar em termos antigos ou medievais, quando se trata da esfera da experiência religiosa.
Eu não disse, na entrevista: ‘Há um Deus’, mas: ‘Não preciso crer em Deus; eu sei’. Isto não quer dizer: Sei que há um determinado Deus (Zeus, Javé, Alá, o Deus trinitário), mas antes:
Sei que me acho claramente confrontado com um fator desconhecido em si e ao qual denomino ‘Deus’, in consensu omnium (‘quod semper, quod ubique, quod ab omnibus creditur’)?. É nele que penso, é por Ele que chamo, todas as vezes que invoco seu nome, nos momentos de medo ou de raiva, todas as vezes que digo espontaneamente: ‘Ó Deus!’
(OC 11/6, p. 145-146).
Certa vez, em conversa particular por WhatsApp, uma pessoa comentou sobre a “ligação” (?) de Jung com xamanismo.
Expliquei que, na prática, essa ligação literal não existia, porém, naturalmente se poderia fazer diversas leituras simbólicos-arquetípicas do xamanismo a partir do pensamento junguiano – como se pode fazer da mitologia grega, iorubá, indígena, celta, egípcia, romana, sem qualquer hierarquia sobre elas A pessoa me respondeu com um áudio de 7 minutos tentando me convencer do contrário…
O “amor” que despendemos ao Jung e à sua obra carece de conhecimento, repertório, estudo de sua Obra e também de sua vida, para evitarmos colocá-lo em nosso próprio leito de Procusto, ou seja, querer enquadrá-lo em nossas crenças e desejos, quem nem sempre condizem com a originalidade de sua Obra. Ao fazer isso, perdemos o horizonte e a profundidade de sua teoria e prática analítica, o que é, essencialmente, mais um ato de desamor do que de amor à vida e Obra de Jung.
Sabemos quão frustrante pode ser descobrir que um pensador que tanto amamos, na verdade, tem perspectiva diferente da nossa crença. A verdade é que uma atitude de pesquisa genuína, implica em estar aberto ao contrário ao discordante. Naturalmente, também podemos discordar de Jung como de qualquer outro autor, mas se assim o for, que seja com consistência e com conhecimento profundo de sua obra. Quantas pessoas do Brasil na atualidade, por exemplo, demonizam Paulo Freire sem terem lido uma frase sequer da obra dele? Essa categoria de demonização é rasa, ilógica e fruto de um apaixonamento pelas próprias convicções que não encontram respaldo na realidade.
Em nome de uma prática da psicologia analítica que se propõe séria, devemos nos opor a esse tipo de atitude e continuarmos firmes na jornada da propagação de um pensamento junguiano que seja honesto e responsável para com o seu legado.
Rafael Rodrigues de Souza – Analista Didata do IJEP
Referências:
JUNG, Carl Gustav. Tipos psicológicos (OC 6). 7 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente (OC 7/1). 24 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. O eu e o inconsciente (OC 7/2). 25 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique (OC 8/2). 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Aspectos do drama contemporâneo (OC 10/2). 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
JUNG, Carl Gustav. Escritos diversos (OC 11/6). 3 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia (OC 16/1). 16 ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Ab-reação, análise dos sonhos, transferência (OC 16/2). 9 ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Carl Gustav. Cartas, Volume 1 (1906-1945). Petrópolis: Vozes, 2002.

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