O Brasil é um país de grande diversidade religiosa, com uma riqueza de manifestações que engrandece, em muito, a nossa cultura. Entretanto, também é território de muita intolerância, chegando mesmo ao discurso de ódio religioso. Estudar Exu é mergulhar nesse universo religioso e sociológico.
O estudo desta divindade é necessária para ampliar nossa compreensão sobre os aspectos dessa intolerância que estão presentes tanto pessoal como coletivamente, até em frases de cunho popular que soam como piada do tipo “chuta que é macumba”. Nosso objetivo aqui é ampliar a nossa consciência em relação ao quanto dessa intolerância fala do que existe em nós mesmos, enquanto indivíduos e enquanto nação. E justamente essa é a atribuição maior de Exu: a de psicopompo, aquilo que me conecta com o que desconheço em mim.
Dentre as figuras cultuadas pelas religiões afro-brasileiras Exu é a mais controversa. Estas religiões são marcadas pela inexistência de um pensamento maniqueísta e, por isso, nelas a polaridade entre o bem e o mal admite uma gradação de valores entre os dois conceitos. Exu é, portanto, uma figura dual por excelência, pois para ele o bem e o mal tem o mesmo peso.Tem um caráter debochado e embusteiro, e é figura representativa da vitalidade, da sexualidade, da irreverência, assim como da agressividade, da malandragem e da sedução.
Exu no Candomblé é um orixá que tem um âmbito de ação imenso, indo desde a cosmogonia até as atividades mais corriqueiras do dia a dia. É o orixá responsável por dar início ao dinamismo criativo se opondo à estagnação e à estabilidade. É também o responsável pela comunicação entre homens e orixás, fazendo a ponte entre o mundo da matéria e o mundo espiritual, a fim de levar aos orixás as oferendas e sacrifícios feitos pelos homens e trazer as mensagens enviadas pelos orixás aos seus filhos. Segundo Zacharias (2019) é Exu quem “abre e fecha os caminhos, portanto, senhor das encruzilhadas, portador da fortuna e do infortúnio”, representando todas as contradições. Exu subverte o tempo e o espaço, o que fica explícito no ditado bastante conhecido que diz que “Exu matou um pássaro hoje com uma pedra que jogou amanhã”. Subverte a ordem e sabe ficar de ambos os lados de uma questão, gerando intrigas e invertendo a lógica. É justo, porém, é também vingativo.
A figura de Exu, orixá no Candomblé, se transforma em entidade na Umbanda. Neste processo, de acordo com Zacharias (2019), Exu perde seu status de divindade para se tornar uma figura mais humanizada, espirito de pessoas mortas que tiveram a vida na marginalidade e que foram seduzidos pelos prazeres mundanos. Após a sua morte, esses espíritos tem a oportunidade de redenção, aceitando as leis da Umbanda num propósito de evolução espiritual e, assim, se tornam guardiões dos médiuns, das casas e das pessoas. Os espíritos mais rebeldes, que não aceitam as leis da Umbanda, se tornam agentes do mal. Seguindo a forte influencia do catolicismo na formação da Umbanda, os primeiros são os Exus batizados, e os últimos, os Exus pagãos.
Exu tem sido historicamente associado ao diabo cristão, desde a chegada dos europeus à África e o encontro destes com os sistemas religiosos africanos. No Brasil, tal associação sempre esteve presente, e no processo de sincretismo das divindades africanas com os santos católicos, que ocorreu com o passar do tempo, coube a Exu ocupar o lugar do inferno.
Com o crescimento das igrejas evangélicas, particularmente as igrejas neopentecostais, houve um acirramento da rejeição, não só de Exu, mas das religiões afro-brasileiras como um todo, com um aumento da hostilidade para com estas religiões. Segundo os dados do Disque 100 (disque direitos humanos) divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do Governo Federal, que trazia os dados das denúncias de discriminação religiosa ocorridas entre 2011 a 2018 é possível constatar números alarmantes: de 2011 a 2016 o número de denúncias subiram 4.960%, saltando de 15 denuncias para 759. Na grande maioria, as denúncias se referem a religiões de matriz africana.
A figura de Exu tem sido, portanto, associada a algo muito malévolo, e em função disto foi mal falado, proibido, achincalhado e por fim tornou-se um excluído.
A questão do mal sempre foi algo importante no pensamento cristão com o qual se deparou Exu. Conquanto no antigo testamento o mal pudesse vir de Deus sem nenhum dilema ético, segundo Sanford (1988), com o advento do Cristo, Satã passa a ter um papel importante, e muitos teólogos tentaram justificar a presença do mal na terra.
Jung (2013) se debruçou sobre a teoria da privatio boni, que considera que o mal não existe por si mesmo, o que existe é uma diminuição do bem. Entretanto esta teoria, segundo ele, torna o Cristo unilateral, identificado apenas com o bem, uma vez que o mal não existe, excluindo desta forma o lado noturno das coisas, fazendo surgir, portanto, um antagonista luciferino.
Jung (2013) nos mostra que o inconsciente se comporta de forma complementar ao consciente, e sempre que a consciência unilateraliza uma questão, levanta-se no inconsciente aqueles aspectos que não tiveram voz nem vez: a sombra. Na medida em que vivemos numa sociedade em que o código de conduta judaico-cristão nos ensina que devemos ser amáveis, tolerantes, sexualmente castos, rejeitamos nosso lado agressivo, vingativo e de impulsos sexuais incontroláveis. (Cf. SANFORD, 1988, p. 64-66)
Neumann (1991) chama de a velha ética ocidental ao tipo de pensamento excessivamente dualista influenciado principalmente pelo pensamento greco-judaico-cristão, que determina o ideal de perfeição humana seguindo uma tendência consciente à unilateralidade. Para que se atinja esse ideal de perfeição, todos os traços que o contradizem devem ser excluídos e isto se dá através da “negação do negativo”. Segundo ele, a negação do negativo se dá através de dois mecanismos: a supressão, que é uma ação consciente do ego onde este desliga os traços e tendências que não correspondem aos valores éticos; e a repressão, mais potente e poderosa para imposição desses valores éticos, na qual as características da personalidades que contradizem esses valores perdem a relação com a consciência, tornando-se inconscientes e esquecidos. Os conteúdos reprimidos perdem sua relação com o ego consciente, mas continuam subterraneamente levando uma vida autônoma e eficaz, o que é fatal, tanto para o indivíduo como para a coletividade.
Sendo a sombra um arquétipo, ela ultrapassa o limite do pessoal e atinge o âmbito coletivo. A constatação da sombra gera um sentimento de culpa, o qual deve ser afastado para que a consciência viva em paz. Este afastamento se faz, individual ou coletivamente, através do fenômeno de projeção da sombra. Porém, uma vez projetada, continua não podendo ser aceita, e então é combatida, punida e extirpada. Dá-se então o processo de surgimento do que alguns teóricos da psicologia analítica chamam de bode expiatório. Essa imagem pode ser observada da dimensão coletiva onde as projeções fatalmente se darão sobre as minorias, sejam elas de raça, religião, ou politica.
Essa imagem do bode expiatório é histórica e mitologicamente o receptáculo para onde é magicamente transferido todo o mal em rituais para então ser sacrificado. Essa imagem presta-se à expiação do mal e da culpa, e reconciliação da comunidade com Deus e com os seus semelhantes em muitas culturas. Exu presta-se a este papel de bode expiatório na medida em que representa aspectos rejeitados pela cultura judaico-cristã e, portanto, o mal.
Embora em sua origem os aspectos que representa não recebam um juízo de valor, quando Exu é submetido ao pensamento cristão, se depara também com todos os elementos reprimidos inconscientes, a sombra deste sistema. Exu enfrenta a consciência cristã, e também, como nos coloca Jung (2013) “o ser adversário recalcado e reprimido – o elemento bárbaro, anticristão”, que acabará sendo projetada sobre ele. Exu passa então a representar esses aspectos sombrios, não de si mesmo, mas da psique individual e coletiva.
Nosso povo é feito de diversas matrizes, contém narrativas das mais diversas e, não raro, a religião do outro incomoda e não entendemos o porquê. Em nosso cenário, deuses e orixás estão no nosso imaginário enquanto nação, e essa presença nos faz compreender melhor nossa origem, ampliar nossa consciência sobre o que somos.
Concluir que o ódio religioso do qual as religiões de matriz africanas são vitimas, e particularmente Exu, se fundamenta na projeção da sombra pessoal e coletiva, significa uma possibilidade de conscientizar essa sombra. Cumpre assim Exu o seu papel de psicopompo, conscientizando aspectos que antes eram inconscientes. Assim como a sombra é uma instância arquetípica, Exu também o é. E o confronto com a sombra é o primeiro passo rumo à totalidade.
Selma de Fátima Silva Canoas, analista em formação pelo IJEP
selmacanoas@gmail.com
Bibliografia
GOVERNO FEDERAL: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, c2019. Disponível em: <https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2019/junho/balanco-anual-disque-100-registra-mais-de-500-casos-de-discriminacao-religiosa>
JUNG, Carl Gustav. Civilização em transição. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2013d.
NEUMANN, Erich. Psicologia profunda e nova ética. São Paulo: Edições Paulinas, 1991.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014.
PRANDI, Reginaldo. Exu, de mensageiro a diabo: sincretismo católico e demonização do orixá Exu. Revista Usp. São Paulo, n. 50, p. 43-63, jun/ago. 2001a. Disponível em: < http://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/35275>. Acesso em: 15 dez. 2019.
SANFORD, John A. Mal, o lado sombrio da realidade. São Paulo: Paulus, 1988.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Exu: o guardião da casa do futuro. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.
ZACHARIAS, José Jorge de Morais. Exu – meu compadre. Uma abordagem analítica. São Paulo: Sattva, 2019