Resumo: Francisco de Assis, que há 800 anos compôs o Cântico das Criaturas e Papa Francisco, que celebrou e ampliou o hino no atual contexto de conscientização e engajamento por uma ecologia integral, convidam a ver o mundo não apenas como um problema a resolver, ou nas próprias palavras do Papa Francisco: “mas como um mistério que contemplamos na alegria e no louvor”. Ambos não sucumbiram diante do Sagrado. Deixaram-se tocar e mergulharam no mistério, deram atenção ao próprio Self. Neste sentido, foram além do espaço da religião católica no qual estavam imersos e abraçaram de forma cuidadosa as pessoas das mais diferentes tradições religiosas.
A atitude silenciosa dos peregrinos diante dos túmulos de São Francisco, em Assis, e do Papa Francisco, na basílica de Santa Maria Maggiore em Roma, impressiona. Em clima de reverência e encanto, cristãos ou turistas das mais diferentes expressões religiosas, ou mesmo sem vínculos de fé, vivenciam momentos marcados pela comunhão com homens que de alguma forma convidam ao diálogo com o numinoso, com o(s) símbolo(s) do sagrado.
O que têm em comum esses homens que viveram em momentos históricos tão diferentes? Como continuam mobilizando pessoas para esta atitude de respeito e reverência, ou mesmo de fascínio que envolve personagens como Jesus Cristo, Buda, Maomé e tantos seres encantadores considerados iluminados em diferentes culturas?
Francisco de Assis
O filho do negociante de tecidos Pietro Bernardone, ao ser batizado recebeu de sua mãe Joana – também chamada Dona Pica – o nome de Giovanni di Pietro (pai) di Bernardone (avô). Ao regressar de uma das suas muitas viagens, o pai deu-lhe o nome de Francisco. Nascido entre 1181 e 1182, viveu em uma família próspera no contexto do período de guerras entre Assis e Perúgia, na região da Úmbria (Itália).
Em uma das batalhas Assis é vencida e Franscisco, aos 23 anos, passa um ano como prisioneiro, acometido por longa doença, até ser resgatado pelo pai. Entre o fim de 1204 ou início de 1205, parte para a guerra em Apúlia, tem uma visão em Espoleto e volta para Assis onde começa a prestar serviços a leprosos.
Entra em conflito com o pai e, conforme cena recordada no filme Irmão Sol e Irmã Lua (1972), dirigido por Franco Zeffirelli, despoja-se de suas vestes diante da cidade e do Bispo Guido, veste um hábito de eremita e trabalha na restauração de três pequenas igrejas: São Damião, São Pedro e a de Santa Maria dos Anjos ou Porciúncula.
A opção seguinte por um hábito rude, as atividades como pregador itinerante e a formação de um grupo de homens engajados nas mesmas causas, os franciscanos, até sua morte em 1226, estão registrados nas biografias, em produções cinematográficas, nas chamadas Fontes Franciscanas e Clarianas e nas coletâneas denominadas Florilégios de São Francisco, compilações de pequenas “flores” ou breves narrativas derivadas da tradição oral.
Um dos vinte e oito afrescos atribuídos ao pintor Giotto (1267-1337) ou a um grupo de artistas nele inspirados, registra a cena de Francisco ouvindo uma voz que o levou a iniciar os trabalhos de reforma da igrejinha de São Damião: “Vai e reconstrói a minha igreja”. Alguns de seus biógrafos enfatizam que as palavras não se limitavam à pequena igreja ou mesmo à Igreja Católica, mas remetiam ao conjunto dos seres, a todos os homens e mulheres compreendidos no sentido do termo grego “católico” (καθολικός), romanizado como “universal”.
Com fina percepção sentia o laço de fraternidade e de sororidade que nos une a todos os seres. Ternamente chama a todos de irmãos e de irmãs: o Sol, a Lua, as formigas e o lobo de Gubbio. As coisas têm coração. Ele sentia seu pulsar e nutria veneração e respeito por cada ser, por menor que fosse. Nas hortas, também as ervas daninhas tinham o seu lugar, pois do seu jeito, elas louvavam o Criador.
(Boff, 1999, p. 169)
O reconhecimento da importância de Francisco vai além do mundo cristão e permeia o universo denominado esotérico.
Os seguidores da denominada Grande Fraternidade Branca, por exemplo, o consideram uma encarnação de Pitágoras, o filósofo grego que propunha um modelo de sociedade onde Ciência e Religião caminhavam juntas, “uma elucidando a outra, trazendo estabilidade às emoções humanas, gerando respeito, fraternidade, cooperação, igualdade e desenvolvimento” (Magaldi, 2021, p. 18 e p. 134).
Também no ambiente dos centros espíritas das mais diferentes regiões brasileiras o santo de Assis é estudado e vivenciado especialmente por meio do livro Francisco de Assis de João Nunes Maia:
Francisco de Assis viveu a mensagem do Evangelho de modo a consolidar a palavra Amor, fazendo-a sair da teoria e avançar para a prática do dia-a-dia. Não há jeito na Terra de se pensar e escrever sobre a Caridade, sem se lembrar do Homem da Úmbria: todos os caminhos por onde ele passou falam dele. Deixou impregnado no tempo e no espaço, nas coisas e na própria natureza, algo de divino, que somente o tempo poderá revelar no futuro, para a grandeza da fé. Não se pode lembrar dos hansenianos sem encontrar a figura extraordinária de Francisco; não se pode falar da assistência social, sem que ele esteja no meio; não se pode referir ao amor sem a sua benfeitora irradiação.
(Maia, 1983, p. 5)
Papa Francisco
Jorge Mario Bergoglio nasceu em Buenos Aires em 17 de dezembro de 1936, filho de imigrantes italianos. Seu pai, Mario, era ferroviário e sua mãe, Regina Sivori, dona de casa. O casal teve cinco filhos. Bergoglio formou-se técnico químico e, em seguida, decidiu seguir o caminho do sacerdócio. Em 1958, entrou para o noviciado da Companhia de Jesus. Completou os estudos de humanidades no Chile e voltou para Buenos Aires em 1963 para dar aulas de filosofia, literatura e psicologia em colégios católicos. Foi ordenado padre em 1969 e em 1973 fez sua profissão perpétua com os jesuítas. Em 1986, concluiu uma tese de doutorado na Alemanha. Em 1992, foi nomeado bispo-auxiliar de Buenos Aires, pelo papa João Paulo II. Em 1998 foi nomeado Arcebispo e Primaz da Argentina. Em 2001, João Paulo II deu a ele o título de cardeal (Angelini, 2014).
Na dissertação de mestrado com o título “Os gestos dos Papas no Brasil: relações entre o presencial e o midiatizado”, a jornalista Cristina Angelini destaca muitos gestos do Papa Francisco: antes da dar a benção no dia que foi eleito papa, 13 de março de 2013, inclinou-se diante da multidão e pediu para ser abençoado; residiu na Casa Santa Marta até seu falecimento em 21 de abril de 2025, um local de convivência com muitas pessoas, e não na residência oficial destinada ao Papa no Vaticano.
O simples fato de carregar a própria mala de mão em suas viagens denotava o gesto de quem, ainda como cardeal de Buenos Aires, frisava que “o meu povo é pobre e eu sou um deles”, residia em um apartamento simples, cozinhava a própria comida, e usava transporte público para acessar as comunidades empobrecidas da Grande Buenos Aires. Isso sem contar uma das tiradas de humor registradas no encontro com 3,5 milhões de jovens na Praia de Copacabana, em 2013, durante a Jornada Mundial da Juventude: “O papa é argentino, mas Deus é brasileiro”.
Voltemos as perguntas que mobilizaram os fios que compõem o texto desta pequena ampliação de alguns elementos da vida dos dois homens separados por aproximadamente 800 anos.
O que eles têm em comum mesmo vivendo em momentos históricos tão diferentes? Como continuam mobilizando pessoas para esta atitude de respeito e reverência para com eles e para com as vivências do encontro com o sagrado que representaram? De que forma ainda cativam as pessoas com a atenção similar que envolve personagens como Buda, Moisés, Jesus Cristo, Maomé, Paramahansa Yogananda, Madre Teresa de Calcutá e tantos seres considerados iluminados em diferentes culturas?
A pergunta e a ampliação de possíveis respostas nos remetem a necessidade de nos deixarmos interpelar pela voz do outro. Ou, nas palavras do Papa Francisco, em sua carta sobre O papel da literatura na educação: “Aqui está uma definição de literatura que tanto me agrada: ouvir a voz de alguém. Não esqueçamos o quanto é perigoso deixar de ouvir a voz do outro que nos interpela” (Francisco, 2024, § 20).
800 anos do Cântico das Criaturas
A delicadeza das imagens e sons do já citado filme Brother Sun, Sister Moon ou Irmão Sol e Irmã Lua (1972) lembra a canção Doce é Sentir, repetidamente entoada em grupos de jovens daquela década, nos quais participamos. Trata-se de uma memória sonora que remete às nossas histórias de vida e integram o universo simbólico da autora e do autor destas linhas.
Doce é sentir
Em meu coração
Humildemente
Vai nascendo amor
Doce é saber
Não estou sozinho
Sou uma parte
De uma imensa vida
Que generosa
Reluz em torno a mim
Imenso dom
Do teu amor sem fim
O céu nos deste
E as estrelas claras
Nosso irmão sol
Nossa irmã lua
Nossa mãe terra
Com frutos, campos, flores
O fogo e o vento
O ar, a água pura
Fonte de vida
De tua criatura
Que generosa
Reluz em torno a mim
Imenso dom
Do teu amor sem fim
Uma das execuções de Doce é Sentir disponíveis na internet é a do coral Meninas Cantoras de Petrópolis, que interpretam com delicadeza a versão brasileira da canção-título do filme Brother Sun, Sister Moon, de Donovan Phillips Leitch.
A versão popularizou o Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas composto provavelmente entre o inverno europeu de 1224 e 1225, quando Francisco estava bem doente, um ano antes de sua morte. Uma das versões disponíveis do original em italiano antigo revela um estilo extremamente simples, direto, sem rodeios e sem elucubrações conceituais, conforme registra Frei Celso Márcio Teixeira, organizador do livro Escritos de São Francisco, publicado pela Editora Vozes em 2013.
1 Altíssimo, onipotente, bom Senhor, a ti o louvor, a glória, a honra e toda a bênção.
2 Somente a ti, ó Altíssimo, eles convêm, e homem algum é digno de te nomear.
3 Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente, o senhor Irmão Sol, o qual faz o dia e por ele nos iluminas.
4 E ele é belo e radiante, com grande esplendor: de ti, Altíssimo, traz o significado [nos dá ele a imagem].
5 Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas: no céu as formaste, claras, e preciosas, e belas.
6 Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno, e por todo o tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento.
7 Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água, que é muito útil e humilde e preciosa e casta.
8 Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo, pelo qual iluminas a noite, e ele é belo e agradável e robusto e forte.
9 Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa, e produz variados frutos, com coloridas flores e ervas.
10 Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam pelo teu amor e suportam enfermidade e tribulação.
11 Bem-aventurados aqueles que as suportam em paz, porque por ti, Altíssimo, serão coroados.
12 Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal, da qual nenhum homem vivente pode escapar.
13 Ai daqueles que morrerem em pecado mortal! Bem-aventurados os que ela encontrar na tua santíssima vontade, porque a morte segunda não lhe fará mal.
14 Louvai e bendizei ao meu Senhor, e rendei-lhe graças e servi-o com grande humildade.
Passamos então a ampliar uma das posturas comuns entre São Francisco de Assis e Papa Francisco.
Uma das narrativas do dia da eleição do Papa Francisco conta que Dom Cláudio Hummes, arcebispo de São Paulo entre 1998 e 2006, um dos cardeais brasileiros que participaram do conclave, a reunião dos cardeais para eleição de um papa, teria abraçado o recém-eleito e dito: “Não se esqueça dos pobres”. O próprio Papa Francisco chegou a afirmar que aquilo entrou na sua cabeça e imediatamente lembrou de São Francisco de Assis: “Tomei o seu nome por guia e inspiração, no momento da minha eleição para Bispo de Roma”
Nesta aproximação e ampliação das narrativas lembramos que a carta encíclica publicada pelo Papa Francisco em 1995 começa justamente com as palavras Laudato Si’, do Cântico das Criaturas.
“Laudato si’, mi’ Signore – Louvado sejas, meu Senhor”, cantava São Francisco de Assis. Neste gracioso cântico, recorda-nos que a nossa casa comum se pode comparar ora a uma irmã, com quem partilhamos a existência, ora a uma boa mãe, que nos acolhe nos seus braços. “Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã, a mãe terra, que nos sustenta e governa e produz variados frutos com flores coloridas e verduras”. (Papa Francisco, Laudato si’, sobre o cuidado da casa comum,1).
Segundo o Papa Francisco, “Francisco é o homem da paz. E assim seu nome entrou no meu coração: Francisco de Assis. Para mim, é o home da pobreza, o homem da paz, que ama e cuida da criação. Ele nos traz essa paz” (Hesse, 2019. Contracapa).
O escritor alemão Herman Hesse (1877-1962), agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1946, em sua monografia poética sobre Francisco de Assis considera que antes de sua morte ele uniu-se aos primeiros companheiros e buscou a tranquilidade no silêncio e no campo “a fonte mais profunda de seu ser, fonte que jamais secou e à qual devemos seu maravilhoso canto do sol” (Hesse, 2019, p.71).
Na profunda sensibilidade à natureza reside também a magia misteriosa que Francisco exerce até hoje, mesmo sobre pessoas indiferentes à religião. O sentimento de gratidão e de alegria com que saúda e ama todas as forças e criaturas do mundo visível, como se fossem irmãos e seres aparentados, é isento de qualquer simbolismo eclesiástico e, em sua humanidade e beleza atemporais, consiste numa das aparições mais insólitas e nobres de todo aquele mundo medieval tardio.
(Hesse, 2019, p. 72)
Ecologia interior e ecologia exterior
A atenção às pessoas respeitadas como santas, tal como Francisco de Assis e Papa Francisco, nos leva a ampliar nossa contemplação do universo sagrado no qual participamos como seres vivos.
Vivemos e nos movemos no campo do que Carl Gustav Jung chamou de antigas imagens do inconsciente coletivo da humanidade. Dentre as figuras arquetípicas dos grandes arquétipos Jung ficou fascinado pelos símbolos de completude e integração que denominou como os símbolos do Si-mesmo presentes em muitos sistemas religiosos de diferentes culturas.
Como psicólogo, mais do que como filósofo ou teólogo, Jung notou que este arquétipo organizador de totalidade era particularmente bem apreendido e desenvolvido por meios de imagens especificamente religiosas e ele, então, veio a compreender que a manifestação psicológica do Si-mesmo era realmente a vivência de Deus ou da ‘imagem-Deus dentro da alma humana. (…) O objetivo dele era mostrar como a imagem de Deus existe dentro da psique e age de modo apropriadamente semelhante ao de Deus, seja a crença em Deus da pessoa consciente ou não.
(Hopcke, 2011, p. 111)
O estilo de pesquisa e escrita de Jung o levou a circular ao redor de noções para ampliá-las até que vários aspectos fossem compreendidos, processo que ele chamava de circumambulação.
Assim ampliou o termo arquétipo da totalidade com outros termos como arquétipo central, Imago Dei, Si-mesmo, Self, representação divina, centelha divina, Cristo em nós, e outros.
Mas seus símbolos empíricos muitas vezes possuem significativa numinosidade (por exemplo, o mandala), isto é, um valor sentimental apriorístico (por exemplo, ‘Deus é círculo’, a tetraktys pitagórica, a quaternidade etc.), demostrando, pois, ser uma representação arquetípica que se distingue de outras representações do gênero por assumir uma posição central correspondente à importância de seu conteúdo e numinosidade.
(Jung, OC 6, § 902)
Francisco de Assis e Papa Francisco, cada um a sua maneira e no contexto da época em que viveram, manifestaram este encantamento pelo sagrado presente na natureza, no conjunto dos seres vivos do qual fazemos parte.
Neste universo grávido da presença do sagrado o teólogo Leonardo Boff enfatiza que Francisco de Assis estabeleceu fraternidade com os mais discriminados, como os leprosos, e com todas as pessoas, “como o sultão muçulmano Melek el-Kamel, no Egito, com quem manteve longos diálogos. Rezavam junto. São Francisco assumiu o título mais alto que os muçulmanos dão a Alá: “Altíssimo”. O Cântico das criaturas começa com o “Altíssimo” (Boff, 2025).
Ao dar sua contribuição no contexto da celebração dos 800 anos (1225-1925) da composição do Cântico do Irmão Sol ou Cântico das Criaturas, no mesmo texto acima citado Boff explicita a conexão entre a ecologia interior e a ecologia exterior:
Ali encontramos uma síntese completa entre ecologia interior (os impulsos da psique) e ecologia exterior, a relação amigável e fraterna com todas as criaturas. Estamos celebrando o 800º aniversário do Cântico do Irmão Sol em um contexto tão lamentável como o atual. Embora possa parecer estranho, faz sentido porque, em meio a uma dor física e espiritual insuperável, Francisco de Assis teve um momento de iluminação e criou e cantou com seus irmãos este hino, que está repleto do que mais precisamos: a união do céu com a Terra, o significado sacramental do Irmão Sol, da Lua, da água, do fogo, do ar, do vento e da Mãe Terra, vistos como sinais do Criador e, finalmente, a paz e a alegria de viver e coexistir em meio às tribulações que estava vivenciando e pelas quais também nós estamos assolados.
(Boff, 2025)
No Cântico, cruzam-se, segundo Boff, duas linhas, horizontal e vertical, que juntas constituem os símbolos maiores da totalidade: a vertical do Altíssimo que nenhum homem é digno de mencionar e a horizontal das criaturas e da fraternidade universal.
O hino ainda ressalta outro símbolo arquetípico da totalidade psíquica do homem: o masculino e o feminino.
Todos os elementos estão ordenados em pares, onde se combina o feminino com o masculino; sol – lua; vento – água; fogo – terra. Todos os pares são englobados pelo grande casal, Sol – Terra, de cujo matrimônio cósmico nascem todos os demais pares. Inicia-se cantando o senhor e irmão Sol, símbolo arquetípico da virilidade e de toda a paternidade, e conclui-se com o louvor à mãe e irmã Terra, arquetípica da feminilidade e de toda fecundidade.
(Boff, 1982, p. 61)
O mesmo autor enfatiza que esta representação não traduz a ordem objetiva do mundo, mas a ordem de significação profunda. “Por ela o inconsciente mais radical, na sua sede de unidade e totalidade, encontra seu adequado caminho de expressão” (Boff, 1982, p. 61).
Podemos dizer que Francisco de Assis, que compôs o Cântico na Idade Média, e Papa Francisco, que celebrou e ampliou o hino no atual contexto de conscientização e engajamento por uma ecologia integral, ambiental, humana, econômica e social, está a necessidade de se ver o mundo não apenas como um problema a resolver, ou nas próprias palavras do Papa Francisco: “o mundo é algo mais que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (Papa Francisco, 2015, p. 12).
Ambos não sucumbiram diante do Sagrado. Deixaram-se tocar e mergulharam no mistério, não deixaram de dar atenção ao próprio Self, o que em linguagem religiosa poderia ser expresso como não pecaram contra a ética do Self. Neste sentido, foram além do espaço da religião católica no qual estavam imersos e abraçaram de forma cuidadosa as pessoas das mais diferentes tradições religiosas.
Lembram assim uma afirmação de Antônio Gouvêa Mendonça, professor de Ciências da Religião em diversas instituições: “a igreja a que estou vinculado não me basta”. Ou então a delicadeza de um nosso amigo que quando questionado a respeito de sua formação teológica afirmou que “atualmente sou muito mais católico, muito mais católico no sentido ‘universal’ do termo, mais aberto a acolher a diversidade das manifestações religiosas em diversas expressões religiosas, do que simplesmente católico”. Nesta linha, Francisco de Assis é o mais “holista e ecológico de todos os santos católicos, cuja cosmovisão rompeu com a hierarquia eclesial e atraiu os jovens de Assis saciando-os no Sagrado” (Magaldi, 2021, p. 17)
Estamos tratando de pessoas encantadas em reconhecer a natureza como “um livro esplêndido onde Deus nos fala e transmite algo de sua beleza e bondade”. Assim, nas palavras do Papa Francisco, “a pobreza e a austeridade de São Francisco não eram simplesmente um ascetismo exterior, mas algo mais radical: uma renúncia a fazer da realidade um mero objeto de uso e domínio” (Papa Francisco, 2015, § 11).
Fica para outro momento a ampliação da relação fraterna entre Francisco e Clara, a forma como viveram o masculino e o feminino. Por hora, podemos dizer que Francisco de Assis e o Papa de origem argentina são pessoas que têm alma, isto é, são discípulos de Maria, conforme palavras do Papa Francisco, da “Rainha de toda criação”. Cada um tratou cuidadosamente de sua “anima”, conforme o termo junguiano para o arquétipo do feminino inconsciente presente na personalidade masculina.
A contemplação dos santos Francisco e Francisco levam a um encantamento para com eles e para com o sagrado que contemplaram e manifestaram em suas vidas. Eles se colocaram a serviço do sagrado ou, em linguagem junguiana, se colocaram a serviço do Self. Quando deixamos o Self se manifestar, quando permitimos que Ele tensione nossas vidas entre as luzes e sombras que nos constituem, podemos dar alguns passos no caminho do encontro com nossas próprias almas.
Estamos a serviço de quem? Fica a pergunta e o desafio. Que Francisco de Assis, Francisco e também Jung nos perdoem por ousarmos nos aventurar, como eles, a ouvir o que deseja e o que pode nossas almas. Tudo isso porque há 800 anos “il Poverello” (o pobrezinho) de Assis reverenciou o sagrado vínculo entre o Altíssimo e as Criaturas.
Dr. José Eugenio de O. Menezes – Membro Analista em Formação do IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Analista Didata do IJEP
Referências:
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BOFF, Leonardo. A Oração de São Francisco. Uma mensagem de paz para o mundo atual. Rio de Janeiro: Sextante, 1999.
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