Ao ser apresentada ao termo Inconsciente Ecológico, muito usado na Ecopsicologia, uma certa inquietação acometeu-me: haveria uma relação com o Inconsciente Coletivo abordado por Carl Gustav Jung? Como se daria essa relação?
Nesse artigo, portanto, apresento uma breve reflexão sobre os termos Inconsciente Coletivo apresentado por Carl Gustav Jung e Inconsciente Ecológico apresentado por Theodore Roszac, dada a relevância desse assunto para o momento atual.
O tema é extremamente relevante para a atualidade, pois nos encontramos em uma crise ambiental marcada pela extinção de espécies, extremos de chuva e extremos de seca em diferentes regiões do globo, poluição do ar e da água, entre outros distúrbios que afetam o planeta Terra como um todo. Estamos sofrendo com a mudança climática causada pela emissão de gases de efeito estufa proveniente da queima de combustíveis fósseis e queimadas, pelos desmatamentos, entre outros fatores. Essa desordem pode nos levar à sexta grande extinção em massa, à extinção de nosso planeta, nossa casa comum, devido à ação, pela primeira vez, de uma única espécie, a espécie humana, diferentemente das cinco extinções anteriores ocasionadas por desastres naturais.
Há muitas consequências para a saúde humana advindas da crise ambiental, mencionada acima.
As alterações ambientais ocasionadas pela mudança climática, poluição sonora, atmosférica, do solo, química, …, afetam a saúde a nível físico (doenças respiratórias, doenças cárdio vasculares, intoxicação por metais pesados, câncer, entre outros problemas que levam à morte precipitada) e a nível psíquico (casos de ansiedade, depressão, TDAH etc.) (PNUMA, 2022) ocasionando sofrimento psíquico.
De acordo com a teoria de Gaia constatamos que somos fisicamente interconectados e interdependentes com o planeta, com Gaia. (THOMPSON, 2014) Psiquicamente também podemos constatar uma relação de conexão e interdependência com Gaia. Jung e Roszac contemplam essa proposição nas citações que seguem trazendo a psique fazendo parte de uma alma maior, a alma do mundo, a mãe universal. Para Jung, a psique (alma) é constituída pela consciência e pelo inconsciente.
Segundo Jung (2013c, p.13):
Segundo Roszac (ROSZAC, T., 1995, p.16):
Se estamos conectados ao planeta física e psiquicamente tudo o que ocorrer ao planeta está também nos afetando.
Essa compreensão pode nos aprofundar na aceitação da interdependência com Gaia e ao pertencimento à alma do mundo. A partir disso poderemos ter mais cuidado conosco (Gaia), mais amor e diminuir a distância de experienciar a alma, a alma do mundo. Cuidar do planeta é cuidar de si mesmo, um planeta saudável possibilita que o ser humano seja saudável física e psiquicamente. Com essa consciência abre-se a possibilidade do ser humano olhar com mais amor ao outro mais que humano podendo mudar a situação atual gerada pela exploração do planeta Terra, pela deficiência de amor e conexão para com Gaia.
É pertinente, diante do exposto onde se identificam ideias comuns, buscar a compreensão do que ambos os autores nos propõem com os termos Inconsciente Coletivo e Inconsciente Ecológico.
Theodore Roszak: conceitos
Roszac, T. (2010) propõe que no nível mais profundo da mente inconsciente se encontra o Inconsciente Ecológico onde a psique humana tem sua inserção no planeta. Nele se situa uma sabedoria ecológica responsável por sobrevivermos e nos desenvolvermos desde o Big Bang. O Inconsciente Ecológico, afirma, é a parte mais profunda do Inconsciente Coletivo, aquela que nos conecta com a natureza, com a sabedoria ecológica que existe desde os primórdios da origem do universo:
O inconsciente coletivo, no seu mais profundo nível, abriga a essência da inteligência ecológica das nossas espécies, a fonte da qual nossa cultura por fim se desenvolve como um reflexo autoconsciente da própria natureza que emerge continuamente como uma imagem da mente (mindlikeness). A sobrevivência da nossa espécie não teria sido possível sem essa sabedoria autoajustável e de evolução. Ela estava lá para guiar o desenvolvimento na tentativa e erro, seleção e extinção, assim como estava lá no instante do Big Bang para congelar o primeiro flash de radiação numa matéria durável e rudimentar. (ROSZAC, T., 1992, p. 305, Tradução livre de Elfriede Walzberg)
O inconsciente ecológico nos conecta “intimamente, cooperativamente, com flora e fauna, com montanhas, com rios, com o mundo natural ao nosso redor.” (ROSZAC, 2010)
O Inconsciente Ecológico, enfatiza Roszac (2010), é uma hipótese que ainda precisa ser explorada. Afirma que a própria psicologia é uma ideia especulativa, pois é o “estudo profundo da natureza humana onde se trabalha com palpites, suposições inspiradas e intuição” onde nunca se “pode “provar”, apenas persuadir.” (ROSZAC, 1995, p.14)
Segundo Roszac (1992), Jung com o termo Inconsciente Coletivo foi, dentre as contribuições teóricas da psicologia moderna, aquele que mais favoreceu a criação da Ecopsicologia. A Ecopsicologia tem a proposta de unir a Psicologia com a Ecologia, para legitimar a inserção do ser humano ao planeta e a sua interdependência com os seres mais-que-humanos que coabitam nossa casa comum. (CARVALHO, 2013) Roszac (1992) destaca o fato de ser o Inconsciente Coletivo um depósito da história psíquica da evolução de nossa espécie, onde herdamos imagens primordiais de nossos ancestrais humanos, pré-humanos e animais. Para ele, quando se olha para o inconsciente profundo com uma visão ecopsicológica o que se acha é a conexão com o mundo natural. (ROSZAC, 2010)
Roszac quando expõe o termo Inconsciente Ecológico traz o conceito de Inconsciente Coletivo proposto por Jung. Assim sendo, uma breve exposição sobre o Inconsciente Coletivo e alguns termos relacionados darão sequência a esta reflexão.
Carl Gustav Jung: conceitos
Para Jung (2013d) o inconsciente é um conceito psicológico, o qual não pode ser mensurado e nem se sabe ao certo o que ele contém. Ele é formado por conteúdos que não estão conscientes. Ele é constituído pelos inconscientes pessoal e coletivo.
Segundo Jung (2013a), nós nascemos com o inconsciente coletivo, com toda a experiência dos antepassados, e a partir dele se diferenciam o inconsciente pessoal e a consciência. O inconsciente coletivo é composto por conteúdos que provêm “da estrutura cerebral herdada. São as conexões mitológicas, os motivos e imagens que podem nascer de novo, a qualquer tempo e lugar, sem tradição ou migração históricas.” O inconsciente coletivo caracteriza-se por ser infinito, eterno, atemporal e universal. Nele se encontram instintos e arquétipos (imagens primordiais).
Através dos arquétipos perpetuam-se as experiências desde tempos remotos e através dos instintos, gera-se o impulso criador. Sendo o arquétipo “um princípio formador da força instintiva”. (JUNG, 2013a, p.162) O arquétipo tem caráter arcaico, mítico e universal, é irrepresentável, não é acessado diretamente (somente como imagem arquetípica) e tem caráter numinoso (espiritual).
O inconsciente coletivo constitui-se de “temas ou imagens de natureza mitológica”, sendo assim a mitologia dos povos os seus verdadeiros representantes. Para Jung o organismo vivo e a alma têm uma conexão íntima com o meio ambiente.
De acordo com isso, Jung (2013a, p.100) coloca que:
Jung (2013a, p. 75) exemplifica a presença de instintos e arquétipos em animais através da observação da reprodução da mariposa iúca (Pronuba yucassella). Esta deposita seus ovos na flor da iúca que se abre apenas por uma noite na qual a mariposa faz uma complicada operação para perpetuar sua espécie apenas uma vez em sua vida. Menciona que esta mariposa, provavelmente, traz dentro de si uma “imagem daquela situação que provocou o seu instinto” que lhe dá a capacidade de fazer esta operação de reprodução extremamente complicada.
Essa imagem primordial poderia ser descrita como “a percepção do instinto de si mesmo ou o autorretrato do instinto”. (JUNG, 2013, p.80)
Coloca que se a psique animal fosse capaz de apresentar imagens de fantasia, mitos, folclore a partir da linguagem apresentadas a um observador (como os seres humanos o fazem),
O ser humano pode através da linguagem manifestar a presença de sua alma. “A alma humana vive unida ao corpo, numa unidade indissolúvel […]” (JUNG, 2013a, p. 60). Isso não quer dizer que outros seres não tenham alma. Como exemplificado acima, a mariposa iúca está inserida no inconsciente coletivo, como todos os outros animais. Nas palavras de Jung (2013a, p.96):
Assim como os animais, os vegetais também não usam de uma linguagem como a dos seres humanos que, portanto, na sua maioria não conseguem ter acesso à sua mitologia. Jung coloca que a Mana – a atividade da alma, que remete a uma noção arcaica do “extraordinariamente poderoso”, do numinoso (JUNG, 2013a, p.184) – existe nas árvores:
Para Jung, perdemos a conexão com o mundo natural por perdermos esse contato emocional com a natureza, com a alma do mundo, que agora se encontra desaparecido no inconsciente:
Como visto acima, os inconscientes abordados têm uma íntima relação: o inconsciente ecológico é a conexão com o mundo natural inserida no inconsciente coletivo, onde se apresenta uma sabedoria ecológica. Os arquétipos constituintes do inconsciente coletivo trazem os temas míticos presentes no mundo natural. Esses manifestam-se através de imagens arquetípicas que trazem experiências míticas para os seres.
Carvalho (2013, p.23) coloca que: “esses mitos e essas experiências subjetivas de conexão com a matriz de vida e sua sabedoria correspondem à camada do Inconsciente Coletivo chamada por Roszak de Inconsciente Ecológico (1992, p. 301).”
Carvalho (2020) aborda que Roszac, com o termo Inconsciente Ecológico, dá ênfase à dimensão não humana do Inconsciente Coletivo de Jung, chamando a atenção para um mundo psíquico detentor de uma sabedoria ecológica, de um mundo que precisa ser experienciado:
A proposição do Theodore Roszac que é o inconsciente ecológico. Roszac pegou a ideia do inconsciente coletivo do Jung e realçou a dimensão não humana do inconsciente coletivo. Isso é o inconsciente ecológico. O inconsciente ecológico é a nossa vinculação psíquica ao mundo da vida. Num mundo que é todo psíquico, num mundo que é pleno de sensorialidade, de sensitividade. Então, nessa perspectiva, o que nós chamamos de inconsciente ecológico é a experiência da conexão sensível, da intuição e da sabedoria ecológica. É de onde vem a sabedoria ecológica. A sabedoria ecológica não é aprendida em livro, o livro cooperativo, mas bem na direção do Arne Naess ela exige a experiência. Ela exige o despertar dessa sensibilidade e aí a partir disso os conceitos ganham lugar. (CARVALHO, M. A. B., 2020, 1:41-1:42)
Escrevendo essa reflexão sugiro a seguinte questão: o inconsciente Ecológico de Roszak aponta para a ideia de Self de Jung?
Para Jung (2013d, p.485-486), Self (si-mesmo) é o arquétipo central (imago dei): símbolo numinoso; transcendente; representa a totalidade dos fenômenos psíquicos, com conteúdos conscientes e inconscientes; a união dos opostos; é apreendido apenas pela linguagem simbólica; abarca os primórdios da vida psíquica e as metas da vida dirigem-se a ele (JUNG, 2015, p.129) O Self é representado pelo mandala, assim como a alma do mundo o é.
Para Jung (2012b, p.32) o termo que mais se aproxima da ideia de alma do mundo, é o inconsciente coletivo com o si-mesmo como seu centro:
O que manifestamente paira na mente dos alquimistas é um ser que se acha em toda a parte e que tudo penetra uma anima mundi (alma do mundo) – para usar a terminologia deles – e ao mesmo tempo o maximus thesaurus (o maior tesouro), o numinoso mais íntimo e mais secreto do homem. Não existe decerto nenhum outro conceito psicológico que melhor convenha a esse estado de coisas do que o inconsciente coletivo cujo núcleo, centro e princípio ordenador (o “principale”) é o si-mesmo (das Selbst) (a monas dos alquimistas e dos gnósticos).
Nas duas primeiras citações dessa reflexão, tanto Jung como Roszac, enfatizam que há uma mãe universal, uma alma do mundo na qual estamos enraizados, detentora de uma inteligência maior, da qual descendemos e da qual somos apenas “a florada e a frutificação própria da estação”. (JUNG, 2013c, p.13)
Com essa sintética descrição de Self, considerando o acima escrito sobre a alma do mundo e as duas citações mencionadas, podemos inferir que o inconsciente ecológico se aproxima do conceito de Self?
Ambos os autores veem o afastamento da natureza como prejudicial à saúde humana. Ambos relatam a importância de uma conexão mais profunda com a alma do mundo. Roszac (1992, p.321) pontua que “[…] as necessidades do planeta são necessidades da pessoa, e os direitos da pessoa são os direitos do planeta” e Jung (2013a, p. 363) enfatiza que “a vida natural é o solo em que se nutre a alma.”
Elfriede Cristina Seidel Walzberg – Analista em formação IJEP
Ajax Perez Salvador – Analista Didata IJEP
BIBLIOGRAFIA:
CARVALHO, M. A. B. De Frente Para o Espelho: Ecopsicologia e Sustentabilidade. Tese de Doutorado, UNB, 2013.
_________________ (2020). Ecologia Profunda e Ecopsicologia – Prof. Dr. Marco Aurélio Bilibio Carvalho. In: Reconectar Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-nCj7c_fqHU Acesso em: 18 out 2024.
JUNG, C. G. A vida simbólica, Vol.2. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 2012a.
_________ Mysterium Coniunctionis: pesquisas sobre a separação e a composição dos opostos psíquicos na alquimia. Vol.2. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2012b.
__________ A natureza da psique. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
__________ A vida simbólica, Vol.1. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
__________ Símbolos da transformação. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 2013c.
__________ Tipos psicológicos. 7.ed. Petrópolis: Vozes, 2013d.
__________ Seminários Sobre Análise de Sonhos. Petrópolis: Vozes, 2014
__________ O eu e o inconsciente. 27.ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
ROSZAC, T. The Voice of the Earth – an exploration of Ecopsycology, 2.ed. New York: Simon & Schuster, 1992.
ROSZAK, T.; GOMES, M. E.; KANNER, A. D. Ecopsychology: Restoring the earth, healing the mind. San Francisco: Sierra Club Books, 1995.
ROSZAK, T. (2010). Theodore Roszak: Towards an Eco-Psychology (excerpt) — Thinking Allowed DVD w/ Jeffrey Mishlove. In: Thinking Allowed TV Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=83VHiA2HhkM Acesso em: 16 out 2024.
PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (2022) Quatro maneiras como a crise planetária está impactando a saúde mental In: ONU programa para o meio ambiente. Disponível em: https://www.unep.org/pt-br/noticias-e-reportagens/reportagem/quatro-maneiras-como-crise-planetaria-esta-impactando-saude#:~:text=O%20relat%C3%B3rio%20Danger%20in%20the,TDAH)%2C%20ansiedade%20e%20depress%C3%A3o Acesso em: 09 nov 2024.
THOMPSON, W. I. (Org.). Gaia. Uma Teoria do Conhecimento 4.ed. São Paulo: Gaia, 2014.
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