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Intolerância – aspectos sombrios da psique

Com o crescente avanço do mercado da tecnologia e, principalmente da utilização de redes sociais, fica cada vez mais evidente que um clique inicial para unir pessoas de diferentes lugares e expandir conhecimentos, tornou-se também um espaço de reprodução da intolerância, dividindo pensamentos e afastando uns dos outros. Quero ressaltar a minha admiração e o reconhecimento dos aspectos positivos que o mundo virtual nos proporciona, porém são cada vez mais comuns as queixas nos consultórios sobre comentários inoportunos e ofensivos, que podem possibilitar contato com o mundo sombrio e patológico de quem os emite, como de quem os recebe, ativando a constelação de complexos. Ao mesmo tempo, ações impulsivas e radicais, podem evidenciar um sofrimento psíquico, resultante da falta de integração das diferentes polaridades. Neste sentido, trago reflexões acerca do tema: a intolerância sempre existiu ou se fortaleceu com o espaço de fácil acesso aos meios virtuais?  Embora tenhamos ao nosso dispor a tecla “delete” para bloquear ou excluir o que não nos interessa mais, não é tão simples deletar aspectos sombrios que se manifestam pelo psiquismo em forma de intolerância.  

Carl Gustav Jung, deixou-nos grandes reflexões e apresentou seis dimensões que interferem na nossa vida: família, trabalho, amor, vida social, corpo e espiritualidade. Quando harmoniosamente vividas, apresentam-se de forma saudável, permitindo a plenitude. Quando não bem vividas, transformam-se em questões patológicas. Para vivermos as diferentes dimensões, utilizamos recursos internos, que na psicologia analítica junguiana denominamos de personas e sombras. De acordo com diferentes autores, entende-se por persona, um processo consciente do ego, que envolve aspectos do eu que apresentamos ao mundo exterior como máscara social e ideal de nós mesmos, que é funcional e extremamente necessária, em função das adaptações. Fazem parte da sombra os aspectos ocultos ou inconscientes repletos de potencialidade, bons ou maus, que por alguma razão, o ego está reprimindo e nunca teve acesso, recusa admitir ou conhecer.  

Jung, em seu livro Psicologia e Alquimia (1994), deixou-nos estudos sobre a alquimia, que é metafórica e nos permite perceber o símbolo transformador de energia que cura, em contínuo processo de dissolver e coagular, ciclo evolutivo da ampliação da consciência, promovendo morte e renascimento. De uma forma resumida, a mortificatiouma das sete operações alquímicas, faz referência à experiência de morte e está associada ao negrume, ao que está na sombra, a derrotas e impossibilidades. O que é movido pelo ego cai nessa nigredo para sofrer as transformações necessárias para o aumento de consciência de si. As dores da alma (nigredo) vão se transformando e, tornando-se mais claras (albedo), para finalmente serem ressignificadas, com novo sentido e significado (rubedo). Outro olhar interessante é o que nos remete aos estudos da psicossomática, em que o ato de vomitar envolve o não digerido no processo digestivo. Simbolicamente, também está relacionado com a intolerância, sendo que ao “vomitarmos”, tiramos o ruim que está dentro de nós e o jogamos fora, para o coletivo e, pela sujeira e mau cheiro, requer limpeza do ambiente, que pode ser uma valiosa oportunidade de entrar em contato com a putrefação do nosso mundo interno e promovermos as transformações.  

No contexto de promovermos cada vez mais a tolerância, os meios social, histórico e cultural influenciam significativamente. Podemos usar como exemplo um marco que ocorreu em 1996, com a aprovação pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, o Dia Internacional da Tolerância. A ONU o instituiu no dia 16 de novembro de cada ano, em reconhecimento à Declaração de Paris (1995), ressaltando a importância dos direitos fundamentais, preservando a dignidade e o valor da pessoa humana. De forma idêntica, é possível percebermos a influência do meio em que estamos inseridos, reforçando comportamentos e valores por meio de expressões populares, que também ressaltam a ideia de praticarmos a tolerância. Algumas expressões exaltam aspectos positivos de uma construção social. Quem nunca ouviu a frase “só se atiram pedras em árvores frutíferas?” “Roupa suja se lava em casa” enfatiza o bom senso de resolvermos os problemas onde eles estão inseridos. Verdadeira ou não, “quem com ferro fere, com ferro será ferido”, é a expressão que nos convida a refletirmos sobre o que emitimos ao universo. Muitas vezes não prestamos atenção na força de algumas frases, porém aos poucos elas vão se estruturando, criando sentido e significado. Talvez agora muito mais, ao vermos pessoas de diferentes níveis culturais se exporem com intolerância diante de qualquer divergência de opinião, principalmente nas redes sociais. É como se a liberdade de expressão vivesse um retrocesso e o respeito mútuo precisasse ser repensado. 

Como foi sábia Cora Coralina (2007), que nos deixou sua simplicidade em forma de poesia, contendo a essência de vida: “Feliz aquele que transfere o que sabe e aprende o que ensina”. Como pedagoga, entre tantos autores renomados que admiro, permito-me mencionar também uma frase da educadora Maria Montessori, que vem ao encontro do tema proposto: “É para uma grande obra que somos chamados. Eis aí a grande tarefa social que nos espera: colocar em funcionamento o valor potencial do homem, permitir-lhe atingir o desenvolvimento máximo de seus dinamismos, prepará-lo verdadeiramente para mudar a sociedade humana, fazê-la mudar para um patamar superior” (2004, p.21). Ela propõe uma educação para a paz e não para a competição, que é o princípio de qualquer guerra. A competição, tão estimulada em nossa sociedade, pode ser o pano de fundo da falta de respeito com o próximo e a si mesmo. Da mesma forma, trago a contribuição da psicologia, que envolve uma amplidão de conhecimentos e se utiliza de diferentes compreensões para trabalhar aspectos conscientes e inconscientes do psiquismo. Entre tantas possibilidades, cito a função espelho, que ajuda o cliente perceber o aspecto sombrio que carrega dentro de si. Existem técnicas específicas nas diversas abordagens da psicologia, que estimulam entrar em contato com o outro e colocar-se no seu lugar, como a técnica da cadeira vazia e da imaginação ativa, possibilitando o contato com os conteúdos inconscientes, por meio da personificação. Esse exercício estimula o surgimento da empatia, que é a porta de entrada da alteridade.

Já dizia Nise da Silveira: “A criatividade é o catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções, pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si, a associarem-se, e mesmo tumultos internos adquirem forma”(1981, p.11). Ela também dizia que o mal pode ser combatido com música e poesia. Essa afirmação permite pensarmos sobre a intolerância em diferentes contextos, com a voz de Lenine: “Ela é quem dinamita a mina. É ela. Ela vem e espalha conflito. Ganha nem que seja no grito… Traz em cada mão o desassossego. Vai furar no chão, um buraco negro.” O grupo musical Legião Urbana, com a canção Os Anjos, convida-nos para refletir: “Hoje não dá… A maldade humana agora não tem nome… Como se faz uma receita pra intolerância e injustiça. Vamos lá…” Em contrapartida, Ana Carolina, com a música Tolerância, propõe a vivência do amor com respeito às diferenças: “Como água no deserto, procurei seu passo incerto, pra me aproximar a tempo… Não me importa a sua crença, eu quero a diferença, que me faz te olhar de frente, pra falar de tolerância e acabar com essa distância entre nós dois… Se pareço ainda estranho, se não sou do seu rebanho e ainda assim te quero… É que o amor é soberano e supera todo engano, sem jamais perder o elo. Com a música Inclassificáveis (Arnaldo Antunes-1996), regravada por Ney Matogrosso em 2008, fica evidente o convite para a valorização da mistificação da nossa cultura brasileira: “Somos o que somos, somos o que somos, inclassificáveis, inclassificáveis…”. Somos únicos e integrais, somos a conexão de diferentes dimensões em busca vivências e convivências harmoniosas.

A mitologia grega também nos oferece elementos para entendermos o mal e a intolerância humana. O Mito de Procusto, envolve a história de um bandido gigante, na serra de Elêusis, que conservava em sua casa uma cama feita de ferro, com a sua medida e que servia de arapuca para seus convidados. Ele amarrava nela as suas vítimas e as adaptava à medida da sua cama, cortando as partes maiores e esticando até caber na medida os tamanhos inferiores. Atená, uma das deusas gregas, cansada com as injustiças de Procusto e o clamor das vítimas, tentou convencê-lo a mudar de atitude, mas ele se negou, afirmando estar fazendo justiça ao acabar com as diferenças entre os homens. O monstro mitológico teve um fim trágico. Ele foi capturado pelo herói Teseu, que o amarrou na sua cama de ferro e lhe cortou a cabeça e os pés (Brandão, 2000). Analogicamente, o mito nos propicia reflexões sobre aspectos que envolvem a intolerância. Quantas vezes nos deparamos com o espírito de Procusto, descartando quem não cabe nas nossas medidas? Quantas vezes assumimos o papel de Procusto para apagar os que pensam e agem de forma diferente? Quantas vezes preparamos a cama de Procusto para cortar e esticar os outros? E o que fazemos com os nossos monstros internos? Monstros em forma de incitação à violência, discriminação e intolerância.

Ainda, segundo Jung, o lado sombrio da alma, é composto por instintos primitivos e sentimentos reprimidos, que podem ser ressignificados. É o que ele quis nos passar com a seguinte frase: “As pessoas, quando educadas para enxergarem claramente o lado sombrio de sua própria natureza, aprendem ao mesmo tempo a compreender e amar seus semelhantes; pelo menos, assim se espera. Uma diminuição da hipocrisia e um aumento do autoconhecimento só podem resultar numa maior consideração para com o próximo, pois somos facilmente levados a transferir para nossos semelhantes a falta de respeito e a violência que praticamos contra nossa própria natureza.” (2013, par.28). Esclarecendo que respeito, do latim respiciere, significa olhar outra vez, olhar com outras lentes, na mesma medida em que nos deixamos ser vistos, para que surjam reconsiderações. Com essa fala, imagino que Jung tentou nos dizer que o processo de cura envolve o contato com o sombrio em forma de angústia e, a partir da integração de polaridades, surge o espaço para a expressão criativa e ressignificação dos padrões patológicos. Desta forma, a alteridade é um dos caminhos que nos permite compreender, colocar-nos no lugar e aceitar o outro com sua singularidade.

Para culminar minhas ampliações, mais uma vez evidencio o “cantar com a alma” de Lenine, com sua música Paciência, metaforizando um convite para um mundo melhor: “Enquanto todo mundo espera a cura do mal, e a loucura finge que isso tudo é normal, eu finjo ter paciência. E o mundo vai girando cada vez mais veloz, a gente espera do mundo e o mundo espera de nós um pouco mais de paciência… Será que é o tempo que lhe falta pra perceber, será que temos esse tempo pra perder e quem quer saber, a vida é tão rara… Mesmo quando tudo pede um pouco mais de calma, até quando o corpo pede um pouco mais de alma, eu sei, a vida não para…”  Temos um tempo precioso e raro, que é o tempo presente e, o que vamos fazer com ele depende de cada um de nós. Tempo de ressignificarmos aspectos sombrios do nosso psiquismo, tempo de promovermos a tolerância. Sempre podemos fazer escolhas! A vida é tão rara e não para… A vida pede calma e envolve a alma!

Claci Maria Strieder, analista em formação pelo IJEP – clacims@gmail.com

Fontes de consulta:

BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991, 2.vols. 

CORALINA, Cora. Trecho do poema Exaltação de Aninha (O Professor) de Cora Coralina, in: Vintém de cobre: meias confissões de Aninha, 9. ed., São Paulo: Global, 2007.

JUNG, C. G. Psicologia e alquimia. Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1994.

 _________ Psicologia do inconsciente. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013. 

MONTESSORI, Maria (1870-1952). A educação e a paz. Trad. Sonia Maria Alvarenga Braga. Campinas, SP: Papirus, 2004.

SILVEIRA, Nise da. Imagens do inconsciente. Rio de Janeiro: alambra, 1981.

www.lyrics.com › lyric › Legião+Urbana › Os+Anjos

www.youtube.com › watch Ana Carolina — Tolerância – Clipe Oficial – YouTube

www.youtube.com › watch Arnaldo Antunes – Inclassificáveis – You Tube

www.youtube.com › watch  Lenine – Intolerância – You Tube.

www.youtube.com › watch  Lenine – Paciência – You Tube. 

Claci Maria Strieder

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