“E se de fato tudo isso tiver sido feito de forma consciente e não como tolice, se você tinha mesmo um objetivo definido e firme, então como é que até agora não deu sequer uma olhada na bolsa e não sabe o que lhe coube, por que assumiu todos esses sofrimentos e se meteu conscientemente numa coisa tão vil, infame, sórdida?” – Raskólnikov (Dostoiévski, 2019, pág. 117).
A frase acima é um pequeno trecho de uma das diversas reflexões existenciais de Raskólnikov, personagem central no clássico “Crime e castigo” de Dostoiévski. Nesta passagem ele conversa consigo e questiona seu feito cruel, o assassinato vil de uma senhora e sua irmã, sem uma razão aparente, do ponto de vista da consciência, mas com forte carga emocional. Seu drama pessoal o faz transitar entre o entorpecimento da culpa, a ponto de não averiguar o conteúdo da bolsa que tinha roubado quase que aleatoriamente (afinal não era a materialidade do crime que o interessava), e a profundidade que aquele ato poderia revelar sobre si, como se fosse um brutal processo analítico.
Apesar da introdução acima ter sido pautada por Dostoiévski, este artigo não ambiciona analisar a obra do autor russo; ela foi um preâmbulo – e base reflexiva – para este texto, que intenciona explorar aquele o conteúdo mais desconhecido da nossa psique: a sombra – e suas manifestações no dia a dia.
Jung explica a sombra da seguinte maneira: “O inconsciente pessoal contém lembranças perdidas, reprimidas (propositalmente esquecidas), evocações dolorosas, percepções que, por assim dizer, não ultrapassaram o limiar da consciência (subliminais), isto é, percepções dos sentidos que por falta de intensidade não atingiram a consciência e conteúdos que ainda não amadureceram para a consciência. Corresponde à figura da sombra, que frequentemente aparece nos sonhos (OC 7/1, § 103, 2014).
O processo de formação da sombra é complexo, pois contém a) componentes com núcleos arquetípicos, ou seja, inatos; b) componentes que nos são “depositados” ao longo de nosso desenvolvimento psicológico, da infância até a velhice; c) componentes do nosso processo educacional e cultural, formal e informal. Dessa miríade de experiências que vivenciamos, parte fica retido pela consciência e outra parte repousa na sombra. Contudo, não se trata de assumir que a sombra é negativa. Na verdade, ela parece negativa ao ego, justamente por representar aquilo que é mais desconhecido por ele.
Reconhecer a sombra difícil, mas o surpreendente é que ela se manifesta diariamente, em nossos pequenos atos. Considerando o cenário de polarização política, por exemplo, é comum vociferarmos contra aqueles que fazem oposição àquilo que acreditamos. Não importa se nossa crença é produto de, dentre várias coisas, da nossa sombra. Que tipo de ameaça representa a alguém, um indivíduo que quer ter uma sociedade mais justa, equânime e com menos desigualdade? Ao atacar ideias como estas, o que seria despertado na pessoa que ataca? Seria uma fantasia sombria de poder, que quando ameaçada, se defende com frases prontas e irrefletidas como “eu conquistei tudo na minha vida, portanto todos devem fazer isso”?
Frans de Waal (2010), biólogo holandês, argumenta que a empatia é algo inatamente humano, e que pode ser desenvolvida em sua plenitude. Apesar disto, na perspectiva junguiana, quando faltam recursos à consciência para que os conteúdos da sombra e dos complexos sejam diferenciados e a empatia prospere, o que resta é projeção da sombra, que pode ser observada em frases tais como “Eu sou empático. Só não sou empático com vagabundos”, que poderia ser facilmente proferida por pessoas muito próximas de nós.
A sombra reside nos pequenos detalhes, ela é sorrateira. Quantas vezes não nos deparamos com argumentos que foram construídos na “minha humilde opinião”, revelando o desejo de grandeza opinativa da pessoa? Que sombra é essa que se disfarça na sutil inclusão da palavra “humilde” no momento de emitir uma opinião qualquer? Mas a sombra não é um mal que deve ser expulso. Oposto, ela é uma potência que deve ser reconhecida.
Raskólnikov em Crime e castigo decide testar o limite de sua sombra, cometendo um crime sangrento. Mas a sombra não precisa de sangue para se expressar. Onde estaria a sombra, silenciosa e aceitável, quando ações tais como a precarização do trabalho, redução sistemática de salários, falta de apoio educacional e social aos funcionários, são compartilhadas e aprovadas por um corpo de liderança? São esses mesmo funcionários, também entorpecidos por suas sombras, que agredirão, inadvertidamente, até a morte, pessoas e animais – afinal, eles eram “problemáticos”. Quem é o criminoso e quem é o culpado?
A busca pelo autoconhecimento e enfrentamento da sombra deveria ser algo apresentado desde os primeiros momentos no processo educacional das crianças, para que estas tivessem a possibilidade de ampliarem suas consciências, saindo de um dos maiores problemas da contemporaneidade que é a autorreferência. É como se tudo aquilo que cremos, não importando de onde isso veio, fosse o suficiente para analisar todos os acontecimentos do mundo. É essa autorreferência que vai, sombriamente, criar as fake news, as correntes do WhatsApp e as “humildes” opiniões.
Como explica Jung, nada daquilo que vivenciamos é apenas algo externo e observável, conforme suas palavras “[…] toda experiência contém um número indefinido de fatores desconhecidos, sem considerar o fato de que toda realidade concreta sempre tem alguns aspectos que ignoramos […] (Jung, 2008, pág. 23). Emma Jung e Von Franz, ajudam a compreender esta noção, argumentando que os conteúdos internos são experimentados externamente pela projeção, de modo que ela não é apenas um mecanismo de defesa, conforme apresentou Freud, e sim um mecanismo que também tem como fim “permitir que as coisas se tornem conscientemente perceptíveis e distinguíveis, ao se confrontarem com o não-eu” (1980, pág. 36), e são nas projeções, além dos sonhos e expressões criativas, que a sombra apresenta um caminho possível de ser reconhecida.
A questão é que, com grande esforço, é possível pelo menos assumir uma postura de aprendiz diante destes fatores desconhecidos, apresentados sutilmente pela sombra do dia a dia. Dizer que eles podem ser reconhecidos em sua plenitude seria uma ousadia, ou um atestado de iluminação plena, assim como Jesus Cristo e Buda atingiram (Jung, OC 12, 2012), mas ter uma postura ativa para buscar a compreensão da obscuridade do inconsciente é fundamental para despertarmos nossa potência criativa e curativa, individual e social.
No exercício de imaginação ativa, em que busca o reconhecimento e enfrentamento da própria sombra no Livro Vermelho, Jung traz a seguinte passagem:
“’Jung: Então, por que andais juntos pelo mundo se não estais satisfeitos e se não sois amigos?’
‘Alma: O que fazer? Também o demônio é necessário, caso contrário não se tem nada para incutir temor às pessoas’.
‘Vermelho: É absolutamente necessário que eu compactue com o clero, senão perco a minha freguesia’” (Jung, 2015, pág. 242).
De outra forma, o que Jung provavelmente intencionava dizer, conforme descrito também ao longo de sua obra, é que pares de opostos são necessários, portanto, a sombra não é algo que se elimina ou se desfaz. Ela é parte integrante e necessária da psique. Porém, quando não reconhecida e não integrada, pode gerar toda a sorte de patologias individuais e coletivas.
Que tipo de aspectos da sombra são constelados numa depressão ou num processo de ansiedade? O que nossa sombra quer revelar quando somos tomados por uma angústia? Até mesmo situações triviais, como brigas e desentendimentos com amigos e parentes, estão o tempo todo influenciadas pela nossa sombra. O mesmo vale para o apaixonamento: por que uma pessoa, outrora objeto de nossa atração e desejo, torna-se repulsiva e odiosa?
Gosto quando Hillman (1993, pág. 11) afirma: “O exterior provoca sofrimento, mas ele não é em si sofrimento”. Em outras palavras, o sofrimento é aquilo que fazemos com o conteúdo interno que é despertado por uma situação exterior. Reconhecer a sombra não é sinônimo de reduzir sofrimento, mas sim atribuir um sentido a este, porque o sofrimento é parte integrante da vida, por mais que a sociedade contemporânea busque constantemente estratégias de anestesiamento, seja com os celulares, passando freneticamente as telas das redes sociais, por meio de medicamentos ou entorpecentes (álcool, drogas, açúcar).
Escutar o que a nossa alma quer expressar – missão de Jung em O Livro Vermelho – não é tarefa fácil, e esta tarefa fica um tanto mais pesada quando ela nos coloca diante dos conteúdos apresentados pela sombra, por meio dos complexos constelados, nos sonhos ou em nossas projeções. Cabe ao indivíduo “resolver-se” consigo e compreender suas dimensões sombrias, pois uma sociedade não passa de um grupo de indivíduos, como nos lembra Jung: “’Sociedade’ é um simples conceito para a simbiose de um grupo humano. Um conceito não é portador de vida. O único portador natural de vida é o indivíduo, e assim é na natureza inteira”(OC 16/1, §224, 2013b).
Nossos “crimes”, enquanto não reconhecidos como parte de nossa totalidade, continuarão sendo projetados e, muitas vezes, aplicados como castigo àqueles que absorvem, involutariamente, a nossa projeção. É fundamental que o ato de pensar e reconsiderar nossos posicionamentos diante da vida seja uma meta constante, mesmo que isso comece a ser feito agora. Atribuir a alguém ou a algo a responsabilidade pela nossa mudança é assumir a normose, ou seja, a incapacidade de enfrentar sua própria sombra e se despir da identificação com a(s) persona(s). É pertinente a citação de Jung quando ele diz que “Ser ‘normal’ é a meta ideal para os fracassados e todos os que ainda se encontram abaixo do nível geral de ajustamento. Mas para as pessoas cuja capacidade é bem superior à do homem médio, pessoas que nunca tiveram dificuldades em alcançar sucessos e cujas realizações sempre foram mais do que satisfatórias, para estas, a ideia ou a obrigação moral de não ser mais do que normal, significa o próprio leito de Procusto*, isto é, o tédio mortal, insuportável, um inferno estéril, sem esperança” (OC 16/1, § 161, 2013b).
É na “normalidade” que a sombra se esconde e, ao mesmo tempo, revela seu potencial. Ao normalizarmos tudo aquilo que é desumano, atribuindo ao outro a responsabilidade das mudanças, assumimos a persona de criminosos sociais, mas que é legitimada pela aceitação coletiva: “faço isso porque todos fazem”. Contudo, a ética do Self, aquela que não é refém dos desígnios coletivos, sempre provocará o indivíduo a sair de sua normalidade. Mas a resistência egóica do indíviduo, de não escutar as revelações de suas secreções sintomáticas, de dor, patologias, angústias existenciais e frustrações constantes, é que o colocará num estado de inércia. É uma inércia destrutiva, que atribui aos governantes, às organizações ou às instituições a responsabilidade pela mudança de algo, sem se dar conta de que esses conglomerados se reduzem a nada quando se exclui o fator humano.
Ao analisar as etapas da vida humana, Jung faz uma poderosa provocação, especialmente ao indivíduo adulto, que se recusa, na melhor perspectiva sísifica** possível, a morte simbólica: “A vida natural é o solo em que se nutre a alma. Quem não consegue acompanhar essa vida, permanece enrijecido e parado em pleno ar. É por isso que muitas pessoas petrificam na idade madura, olham para trás e se agarram ao passado, com um medo secreto da morte no coração. Subtraem-se ao processo vital, pelo menos psicologicamente, e por isto ficam paradas como colunas nostálgicas, com recordações muito vívidas do seu tempo de juventude, mas sem nenhuma relação vital com o presente” (OC 8/2, § 800, 2013a).
Mas o que devemos esperar quando enfrentamos a sombra do dia a dia e reconhecemos seus potenciais positivos e negativos? Dostoiévski esboça uma resposta ao descrever os sentimentos de Raskólnikov: “Ademais, o que significavam todos, todos esses suplícios do passado? Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no primeiro impulso, pareciam-lhe algum fato externo, estranho, até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele não conseguia pensar de forma demorada e constante em nada de modo consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar à vida, e na consciência devia elaborar-se algo bem diferente” (Dostoiévski, 2019, pág. 562).
Notas:
* leito de Procusto: cama em que Procusto impingia às pessoas a tortura de cortar ou esticar seus membros caso elas fossem maiores ou menores que o tamanho da cama; ele mesmo seria vítima disso ao ser colocado lateralmente na cama e ser cortado por Teseu.
**”sísifica” se refere ao rei Sísifo, que por diversas vezes recusou a morte, sendo condenado a uma danação eterna.
Rafael Rodrigues é Analista em formação no IJEP e Mestrando em Comunicação na UNIP. Atende online e em seu consultório particular na Vila Mariana em São Paulo.
Referências:
DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Crime e castigo, 8ª ed. São Paulo: Editora 34, 2019.
HILLMAN, James. Cidade & alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.
JUNG, Carl Gustav. A natureza da psique, OC 8/2, 10ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013a.
JUNG, Carl Gustav. A prática da psicoterapia, OC 16/1, 16ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013b.
JUNG, Carl Gustav (Org). O homem e seus símbolos, 2ª ed. especial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
JUNG, Carl Gustav. O Livro Vermelho: edição sem ilustrações, 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 2015.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente, OC 7/1, 24ª ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, Carl Gustav. Psicologia e alquimia, OC 12, 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2012.
JUNG, Emma & VON FRANZ, Marie-Louise. A lenda do Graal: do ponto de vista psicológico. São Paulo: Cultrix, 1980.
WAAL, Frans de. A era da empatia: lições da natureza para uma sociedade mais gentil. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.