Resumo: Nanã chega devagar, mas transforma tudo. Nanã Buruquê é o pântano que guarda nossos segredos mais antigos. A Velha Sábia que nos ensina a parar, a decompor, a renascer. Este ensaio é sobre essa Orixá que devolve a alma ao tempo da terra. Venha mergulhar na lama sagrada onde a vida começa de novo. Se a tua alma anda cansada esse texto é para você.
Nanã Buruque não chega com alarde.
Ela vem devagar, pisando na lama que guarda o que apodreceu com dignidade. É a mais velha entre os Orixás, aquela que viu o princípio e permanece guardiã dos fins. Senhora das águas paradas, dos pântanos, do húmus fértil onde a vida se transforma em morte e vice-versa, Nanã é símbolo de uma sabedoria que não se impõe, mas que sussurra aos que se dispõem a escutar o tempo da terra.
Enquanto Iemanjá dança nas ondas e Oxum despeja ouro nos rios, Nanã permanece imóvel na margem, bastão em punho, olhos de lama, escutando o que a pressa da vida não permite ouvir. Seu silêncio é anterior à palavra. Seu tempo é outro. Seus passos afundam o solo, e é nesse afundar que ela nos ensina a parar. Em uma cultura que celebra a aceleração e teme o declínio, Nanã nos convida a cultivar o sagrado da decomposição.
No barro do qual viemos, ela molda corpos e histórias. É ela quem entrega à vida o que foi tecido na escuridão. Nanã chega sem pressa, como aquilo que sabe que não precisa provar nada. Ela pisa na lama devagar, com a dignidade das coisas antigas. É senhora das águas paradas, ponto de encontro entre a vida e a morte.
Em tempos de aceleração compulsória, a presença de Nanã é quase evolucionária.
Como escreve Zygmunt Bauman (2001, p. 8), na modernidade líquida “não há tempo para solidificar-se”, tudo escorre antes de adquirir forma. Nanã faz o contrário: ela nos devolve a consistência. Seu silêncio nos obriga a descer ao fundo, território tão evitado, mas onde mora a alma.
Na tradição iorubá, a lama de Nanã é origem. Pierre Verger descreve com precisão ritual que “Nanã entregou a Oxalá o barro primordial para que ele moldasse os corpos humanos” (VERGER, 1997, p. 42).
Antes de sermos nome, fomos lama.
Antes de sermos história, fomos húmus.
Juana Elbein dos Santos reforça essa cosmologia de forma contundente:
A morte, para os nagôs, é retorno. Retorno ao húmus original, ao ibá de Nanã, onde tudo se recompõe.
SANTOS, 1986, p. 112
Aqui, vida e morte não são opostas, mas fases de um mesmo ciclo.
Na tradição iorubá, descrita por Pierre Verger e por Juana Elbein dos Santos, Nanã é a guardiã da lama primordial. Foi desse barro, nem totalmente água, nem totalmente terra, que Oxalá moldou os primeiros corpos humanos. A criação, portanto, não nasce do céu, mas do pântano. Não emerge da pureza, mas da mistura.
A lama de Nanã não é sujeira: é matriz.
É o barro gestado pela memória da terra e pelo silêncio dos mortos. É a matéria que contém em si o princípio e o fim. É húmus, é origem, é destino. Ao reconhecer isso, compreende-se por que Nanã é também senhora da morte. Para a cosmologia iorubá, a morte não é castigo, mas retorno, retorno ao seio úmido de Nanã, onde tudo encontra repouso, acolhimento e transformação.
Na Psicologia Analítica, Nanã se aproxima do arquétipo da Velha Sábia (Crone), expressão da fase mais madura do feminino arquetípico. Jung observa que a Velha Sábia é aquela que não se apressa porque já viu o suficiente para saber que pressa não cura. Ela é o tempo coagulado, transformado em consciência, aquilo que só emerge depois que tantas camadas da vida já fizeram efeito. Jung afirma que “o encontro com o inconsciente é sempre uma experiência de morte e renascimento” (JUNG, 2017, §332).
É exatamente o movimento de Nanã: morrer para renascer, renascer sabendo que já se morreu.
Em Aion, Jung descreve símbolos de velhice como “imagens da culminação, do retorno ao essencial” (JUNG, 2017, p. 98). Ele ainda descreve simbolismos da velhice como imagens de completude, maturidade e recolhimento, falamos aqui de estados psíquicos que exigem que o ego saia do centro e permita que o Self conduza o processo. É justamente esse gesto que Nanã representa: ela desvia o ego da mania de controle e o conduz ao limite do suportável.
Nanã é essa culminação. Ela é o que resta quando tudo o que era supérfluo já caiu. Clarissa Pinkola Estés, com sua sabedoria ancestral, sintetiza essa passagem: “Para que algo novo nasça, algo velho precisa morrer” (ESTÉS, 1994, p. 38). E não há quem conduza esse morrer com mais ternura que Nanã.
Nanã é essa mestra da passagem.
Não apressa a morte, mas também não mente sobre ela.
O pântano sempre ocupou lugar ambíguo no imaginário humano: é território fértil e, ao mesmo tempo, assustador. Atualmente, nossa cultura teme tudo aquilo que não pode medir, controlar ou higienizar, mas o inconsciente não obedece tais limites. É o mesmo com o inconsciente.
Jung chama esse território de “camada úmida da psique” (JUNG, 2017, p. 212), onde repousam memórias, lutos e conteúdos que ainda não encontraram forma. É ali que Nanã mora. É ali que ela guarda as histórias que o ego não sustenta. A cultura contemporânea teme esse mergulho. Mas a alma não tem medo da lama, ela sabe que a lama cura.O pântano é símbolo da zona intermediária, do território liminar entre mundos.
Não é água nem terra: é entre. Não é vida nem morte: é transição.
É no pântano que o inconsciente deposita o que precisa ser decantado. Ali repousam:
– memórias transgeracionais,
– traumas antigos,
– afetos não vividos,
– lutos interditados,
– restos psíquicos do que não foi elaborado.
Jung, em A Vida Simbólica (OC 18), descreve esse processo como um “descer ao fundo”, uma experiência de mergulho no escuro úmido do psiquismo. Não se trata de regressão patológica, mas de retorno necessário ao ponto onde a alma se regenera.
Há clientes que chegam dizendo: “estou parado”, “nada anda”, “estou sem energia”. Frequentemente, é a presença simbólica de Nanã se anunciando. Verena Kast nos lembra que “a alma precisa de tempo, e tempo não é algo que se possa apressar” (KAST, 2010, p. 21).
O tempo da alma não é cronológico, mas orgânico. Quando um cliente entra em um período de silêncio profundo, de recolhimento extremo, a psicologia ocidental chama de estagnação; mas Nanã chama de gestação.
Jung descreve esse processo como “uma descida necessária às profundezas, onde a vida psíquica se reorganiza” (JUNG, 2017, p. 229). Não é regressão; é maturação.
Na clínica junguiana, é comum que Nanã apareça em sonhos sob a forma de:
– lama,
– águas turvas,
– velhas silenciosas,
– pântanos,
– buracos profundos,
– casas antigas deterioradas,
– objetos enterrados.
Essas imagens não anunciam estagnação, mas gestação. Há processos psicológicos que simplesmente não podem ser apressados. Há feridas que não cicatrizam enquanto o sujeito tenta fingir que não doem. Há lutos que só se resolvem quando o ego aceita afundar, não para morrer, mas para reencontrar o chão.O ego se desespera; a alma agradece.
Jung (2017, §332) afirma que “o encontro com o inconsciente é sempre uma experiência de morte e renascimento”. Nanã personifica exatamente esse limiar: a morte simbólica que precede todo verdadeiro Processo de Individuação. É impossível renascer sem antes entregar ao pântano aquilo que já não serve. É impossível crescer sem fazer luto das versões de nós que precisamos deixar para trás.
Jung afirma sem rodeios: “Não há transformação da personalidade sem um verdadeiro morrer”(JUNG, 2017, p. 236).
A morte simbólica é condição para o renascimento. E Nanã rege esse território. É ela quem recolhe:
– o que já não serve,
– o que já apodreceu,
– o que precisa voltar ao húmus para dar lugar ao novo.
Estés reforça: “A decomposição é necessária para a regeneração da psique”
(ESTÉS, 1994, p. 41).
E é nesse processo de decomposição que Nanã nos acompanha com firmeza maternal.
No campo arquetípico, Nanã nos ensina três verdades:
- Nem tudo que morre é perda.
Há mortes que libertam. - Nem tudo que dói é castigo.
Há dores que maturam. - Nem todo silêncio é vazio.
Há silêncios que gestam mundos.
Por isso Nanã assusta: ela não promete finais felizes imediatos.
Promete, sim, verdade.
E a verdade transforma, mas exige coragem.
Ailton Krenak, Leda Maria Martins e Grada Kilomba ampliam a compreensão de Nanã quando lembram que o tempo, nas matrizes africanas e indígenas, não é linear: é espiralar. “O tempo não está correndo para lugar nenhum. É nossa mente colonizada que acredita nisso” (KRENAK, 2020, p. 56).
A morte nunca é fim: é retorno.
O luto nunca é ruptura: é rito de continuidade.
A velhice nunca é decadência: é coroação.
O tempo de Nanã não corre — ele circula.
Ele retorna, contorna, dobra, espirala.
Leda Maria Martins descreve esse movimento como “tempo espiralar”, onde passado, presente e futuro coexistem como camadas de um mesmo corpo (MARTINS, 1997, p. 25).
É o tempo de Nanã: retorno constante à origem. Grada Kilomba complementa essa leitura ao afirmar: “A memória retorna sempre, mesmo quando não queremos vê-la.” (KILOMBA, 2010, p. 17). E Nanã é justamente a guardiã dessas memórias que insistem. Nesse sentido, Nanã é um convite para reconectar-se com o tempo ancestral, aquele que sabe esperar, aquele que reconhece que nada floresce sem um período de sombra.
A lama de Nanã guarda:
– a memória dos povos que resistiram,
– a sabedoria das mulheres antigas,
– os cantos que não foram registrados,
– as narrativas que o Ocidente tentou enterrar.
Quando Krenak fala da “insistência da vida”, está falando da mesma força que faz brotar a flor de lótus no brejo. Quando Leda Martins descreve a ancestralidade como performance contínua, descreve exatamente o movimento de Nanã: o eterno retorno ao início para que algo se recomponha.
Em uma sociedade obcecada pela juventude eterna, a figura de Nanã é um escândalo. Ela lembra que envelhecer é uma conquista e que a vida, ao perder velocidade, ganha profundidade. Em uma cultura que patologiza o envelhecimento, Nanã é contracorrente. Ela afirma o valor da velhice como potência, não como perda.
Estés escreve que a mulher madura “é aquela que finalmente possui sua própria voz” (ESTÉS, 1994, p. 412). Nanã personifica essa soberania: não dá explicações, não se justifica, existe. Jung chama esse estágio de “sabedoria condensada” (JUNG, 2017, p. 254), quando a consciência deixa de performar e passa a simplesmente ser.
Nenhum arquétipo ensina tanto sobre decomposição quanto Nanã. E nenhum símbolo acompanha tão de perto o processo psíquico de dissolução dos complexos. Estés afirma que “o que não cai de podre, não amadurece” (ESTÉS, 1994, p. 93). A decomposição é condição natural para a transformação.
Da mesma forma, Jung reconhece que “a psique só se renova quando libera o que estava morto dentro dela” (JUNG, 2017, p. 309).
A decomposição é bênção.
A Velha Sábia não é o feminino diminuído, mas o feminino coroado.
Ela não tem pressa porque conhece o valor do tempo.
Clarissa Pinkola Estés explica que, quando a mulher chega ao território arquetípico da Velha Sábia, finalmente pode abandonar papéis que antes lhe aprisionavam: o de agradar, o de sustentar tudo, o de salvar o mundo.
Em Nanã, a alma encontra soberania.
É por isso que tantas mulheres de terreiro, sobretudo mais velhas, incorporam sua força com tamanha altivez: elas carregam a memória da terra no corpo. Ao contrário do imaginário ocidental, que associa apodrecimento ao feio e ao inútil, a cosmologia de Nanã entende o apodrecer como etapa necessária do ciclo vital.
Para que algo nasça, algo precisa se decompor.
Para que uma consciência surja, uma identificação precisa ser dissolvida.
Ao final, Nanã nos lembra que:
Não há vida sem morte.
Não há luz sem escuridão.
Não há caminho sem pântano.
O pântano não é castigo — é rito de passagem.
É lá que o ego aprende humildade, e o Self encontra espaço para emergir.
Como escreve Krenak (2020, p. 88): “A vida insiste”.
E Nanã é essa insistência ancestral que nos conduz
de volta ao húmus, de volta à origem, de volta ao que somos.
A pedagogia de Nanã é a do húmus:
– deixar cair,
– deixar dissolver,
– deixar ir,
– deixar apodrecer.
Tudo isso para que a alma tenha terreno fértil para renascer.
No fim, Nanã nos ensina que não existe transformação verdadeira sem atravessar o pântano.
As águas claras dos rios não revelam o que a alma precisa ver.
É na água escura que o rosto verdadeiro aparece.
Nanã, a mais velha, nos convida a:
– aceitar o tempo,
– honrar o luto,
– suportar a pausa,
– amar a própria história.
Ela nos devolve ao barro do qual viemos,
não como punição, mas como cura.
Porque é da lama que tudo nasce.
E é para ela que tudo retorna.
E desse retorno, algo sempre brota.
Que possamos aprender a morrer e renascer com Nanã, devagar e profundamente, até que a sabedoria encontre espaço em nós.
Ms. Natalhe Vieni – Analista Didata em formação IJEP
Dra. E. Simone Magaldi – Membro Didata e Fundadora do IJEP
Referências:
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem. Tradução: Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
JUNG, C. G. Aion: estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo. Obras Completas, v. 9/2. Tradução: Maria Luiza Appy; Alayde Mutzenbecher. Petrópolis: Vozes, 2013.
JUNG, C. G. A vida simbólica: escritos diversos. Obras Completas, v. 18/1. Tradução: Daniel da Silva Lemos; Renata Cordeiro. Petrópolis: Vozes, 2014.
JUNG, C. G. A vida simbólica: escritos diversos. Obras Completas, v. 18/2. Tradução: Daniel da Silva Lemos; Renata Cordeiro. Petrópolis: Vozes, 2014.
KAST, Verena. A alma precisa de tempo: sobre ritmos interiores e crises criativas. Tradução: Maria Clara Cescato. Petrópolis: Vozes, 2010.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
KRENAK, Ailton. O futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1997.
SANTOS, Juana Elbein dos. Os Nàgô e a morte: Pàdê, Àsèsè e o culto Égun na Bahia. Petrópolis: Vozes, 1986.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás: deuses iorubás na África e no Novo Mundo. Salvador: Corrupio, 1997.

